Luiz Carlos Azedo
Publicado originalmente no Correio Braziliense (29/05/2008)
Sempre tive vontade de conhecer Cuba, a ilha rebelde de Fidel Castro, que desde 1959 desafia os Estados Unidos. Também queria ter uma escultura de Dom Quixote que me agradasse. Encontrei o meu La Mancha em Havana Velha, numa loja de artesanatos.
Peça única, com 50cm, foi esculpida em cedro de demolição. Barba hirsuta e chapéu, Quixote está sentado sobre o livro de Miguel de Cervantes ao qual empresta o nome, com as pernas cruzadas, um pé calçado e outro descalço. Segura o escudo e a lança com a mão direita e outro livro com a esquerda. Quem o sustenta é Sancho Pança, o escudeiro fiel, ajoelhado, que guarda a espada do cavaleiro andante.
A cortina
Minha volta para Brasília foi uma nova aventura para Quixote. Embalado numa velha caixa de papelão, despertava desconfiança das autoridades aduaneiras. O vôo da panamenha Copa Airlines para São Paulo foi tormentoso. No Panamá, onde fez a conexão, aconteceu o previsível: não havia lugar para o nosso herói entre os demais passageiros.
Acabou viajando no compartimento de bagagem. Chegou a São Paulo já troncho. Desembarcou em Brasília com cabeça ainda sobre os ombros, mas sem o braço direito e o pé esquerdo, que foram decepados. Quase desabou dos ombros de um intacto Sancho Pança.
Em férias, havia me prometido não escrever sobre Cuba, mas me senti obrigado a fazê-lo. Afinal, quando Miguel de Cervantes mandou Dom Quixote viajar, rasgou a cortina mágica, tecida de lendas, que estava suspensa diante do mundo. A vida se abriu com a nudez cômica de sua prosa. “Assim como uma mulher que se maquia antes de sair apressada para o primeiro encontro, o mundo, quando corre em nossa direção no momento em que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado ( pré-interpretado) como digno de revolta”, destaca o escritor tcheco Milan Kundera (A Cortina, Companhia das Letras).
O comunismo
Um grande painel em Havana, dos muitos que fazem propaganda do regime comunista, assinala que 70% dos cubanos nasceram depois da revolução. Outros falam dos prejuízos que o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos acarretaram à Saúde, à Educação e aos Transportes na ilha.
“Pátria ou morte”, tudo se legitima e se justifica por causa disso: os salários baixíssimos, o desemprego mascarado, a prostituição de menores, os oito ovos e um quarto de frango por mês para cada cubano pobre. Vigora uma espécie de “comunismo de guerra”, como se a suposta invasão ianque fosse iminente.
A arquitetura belíssima de Havana está semi-destruída. Alguns prédios vão sendo recuperados ao longo do Malecon, a grande avenida à beira-mar, mas os sítios históricos mais importantes estão preservados. Porém, a maioria dos sobrados e mansões ocupados pela população depois da revolução virou cortiço. Quem se aventura pelas ruas de Havana Velha, fora do circuito turístico, se espanta com a degradação e o mau cheiro que emana da criação clandestina de porcos e outros animais dentro das habitações.
Escolas e postos de saúde, o que havia de melhor no plano social, também sofrem os efeitos do fim da antiga União Soviética. Novos mesmo só os complexos turísticos das cristalinas praias do Varadero e dos cayos (ilhas), aos quais até abril não era permitido o acesso de cidadãos cubanos. O Estado é dono de quase tudo; até o flanelinha é funcionário público. Não é difícil avaliar a qualidade dos serviços e como são burocratizados.
A espera
O cidadão cubano é engenhoso para obter um “resultado”, a esperteza que garante um troco a mais. Não se sente dono dos bens públicos. A idéia do “homem novo”, da qual tanto se jactavam os dirigentes cubanos ao criticar os soviéticos, acabou sufocada pelo anacronismo do mesmo modelo leninista. A sensação de um visitante comum é de que a elite cubana só espera a morte de Fidel para iniciar as reformas capitalistas, mas o povo não acredita que Raúl Castro seja muito diferente do irmão a quem sucedeu.
A maior novidade é a liberação do uso de celulares, símbolo pop do mundo pós-moderno. O grande mérito de Cervantes foi resgatar a felicidade perdida na Idade Média. Enquanto assiste às novelas da Globo, Cuba aguarda um outro Dom Quixote que lhe devolva a esperança do novo.