O pensamento crítico e sua prática

Coronel R1 Marcelo Oliveira Lopes Serrano

Pensar criticamente é ponderar fatos e circunstâncias para formar juízo sobre a verdadeira condição do objeto pensado. Baseia-se no estudo racional e imparcial das evidências. Deve ser exercido, conscienciosamente, e com autonomia, pois, para ser crítico, o pensamento precisa ser independente, e retroalimentar-se com regularidade. Pressupõe a busca de graus mais elevados de excelência, necessita ser convincente nos argumentos e positivamente cético diante de padrões e procedimentos usuais. Não deve se deixar influenciar por egocentrismos ou por exclusivismos e presunções de grupos específicos. Caracteriza-se por ser objetivo, pragmático, livre de dogmas culturais, o que demanda remar contra a maré em não raras situações, e seu exercício depende de predisposição.

Esse modo de pensar não é espontâneo. Precisa ser motivado, pois a força do hábito e as rotinas têm o poder negativo de favorecer a inércia ou a apatia intelectuais, e o orgulho pessoal ou organizacional por realizações feitas pode gerar empatia com os resultados alcançados, dando a impressão, nem sempre verdadeira, de práticas irretocáveis. A ausência de pressões que obriguem à eficácia é capaz de afastar a preocupação reflexiva, criando um sentimento de acomodação, já que a inconveniência de protelar medidas recomendáveis não se mostra claramente nesse caso. Mudanças superficiais ou periféricas podem sugerir uma organização flexível a mudanças, entendimento parcialmente falso se o cerne dela se excluir do processo reflexivo.

Certas disfunções genéricas, redutoras da eficiência organizacional, podem ocorrer, sobretudo em organizações culturalmente conservadoras, podendo assumir, ocasionalmente, a peculiaridade de passarem despercebidas,

A acomodação satisfeita, o desvirtuamento da prática conservadora, induz a preocupar-se mais com processos ou meios de execução que com fins necessários; ela desatenta do sentido da eficácia e, mediante aceitação acrítica, favorece a anuência com práticas costumeiras. Deixa-se consequentemente de perceber eventuais necessidades, de modificar posturas ou procedimentos, salvo questões periféricas ou pontuais, não observando deficiências e inadequações que afetem a organização de modo amplo e profundo.

O alheamento ao fato de a dinâmica das circunstâncias poder tornar inconveniente ou transformar em novo problema o que antes fora solução gera inapetência pela reflexão crítica, uma certa inércia ou indisposição para pensar objetiva e profundamente questões organizacionais básicas.

O excessivo apego ou respeito por práticas consolidadas, facilitado pela inexistência de pressões que ressaltem as deficiências, pode levar a essa inapetência. Decorre daí a carência de ideias novas genuinamente próprias, o que resulta no esforço de manter o dinamismo organizacional compensando-se esse déficit reflexivo com a expectativa de incorporar avanços concebidos por outras organizações, principalmente estrangeiras. Essa expectativa, todavia, não será inteiramente satisfatória se se julgar que tais avanços sejam diretamente aplicáveis, que certas peculiaridades da organização não os impeçam de produzir os mesmos efeitos.

Essa incorporação de melhorias é benéfica1, mas, se não se acompanhar o pensamento crítico, torna-se simplesmente acumulativa, sobrepondo uma nova camada às anteriores, num processo de sedimentação, mas não necessariamente de integração: assim como charcos e desertos são impróprios para plantar – requerem drenagem ou irrigação para tornarem-se produtivos –, as estruturas e práticas organizacionais podem não se ajustar bem ao avanço incorporado, impedindo de extrair-lhe todo o potencial. Esforços de inovação sem pensamento crítico resultam em avanços meramente acumulativos.

O foco nos processos e meios e a postura acrítica diante de práticas rotineiras ou cristalizadas demandam o pensar crítico. A primeira consiste na escamoteação dos reais problemas ou objetivos preservando-se, porém, o senso de ação, mas ação pouco fecunda, concentrada nos processos e, por isso, de reduzida produtividade ou mesmo ineficaz em muitos casos. A segunda é a desatenção em ajuizar criticamente as circunstâncias. São causas dessas disfunções o respeito excessivo a decisões e atos de antigos chefes, considerados práticas consagradas e valores em si mesmos, a inibição ou receio de apontar erros ou inconveniências que desagradem chefes atuais e a própria carência de visão crítica, resultante de seu não exercitamento. A falta de coragem pode integrar essas causas, pois “a coragem consiste também em saber se opor a opiniões, quando for o caso, e afirmar seu desacordo” (HUDE, Henri, A Ética do Decisor, Bibliex).

A possibilidade dessas disfunções ocorrerem indica a precaução necessária contra a falta de objetividade e contra a passividade perante eventuais deficiências nas práticas costumeiras. As organizações precisam se manter abertas à livre discussão dos assuntos a elas relacionados e compreender que “a coragem intelectual consiste também em não temer o efeito de certos descontentamentos” (Ibidem).

A liberdade de discussão pode ser distorcida para acobertar o conformismo se for praticada tão estreitamente a ponto de transformá-la em “astucioso procedimento”, que desqualifique para o debate, por pretensa irrazoabilidade, o pensamento discordante (Ibidem).

Opiniões coletivas possuem considerável grau de autoridade, mas não são garantia de veracidade ou conveniência, pois não são verdadeiras por serem coletivas, e a atração pelos consensos pode induzir a postura de tácito consentimento, de “silêncio conveniente”, propícia para se surfar sempre a onda tímida da preocupação carreirista (Ibidem).

O sentido da realidade é imprescindível: “o pior desregramento do espírito é ver as coisas como se quer que sejam e não como são […] Ter o sentido da realidade é desconfiar das fórmulas pré-fabricadas. […] próprias de burocratas” (COURTOIS, Gaston, A Arte de Ser Chefe, Bibliex). Esse sentido, como qualquer capacitação humana, precisa ser exercitado, senão mingua.

Um comandante de Esqd C Mec fez, em certa ocasião, uma pergunta aos oficiais e sargentos: o que imaginavam quando pensavam no esquadrão? A resposta foi invariável: imaginavam o quartel. Essa unanimidade evidenciou o desvio no modo de pensar daqueles militares, pois baseava-se no patrimônio imobiliário da subunidade, mero meio para abrigá-la administrativamente, e não em sua finalidade: o conjunto estruturado de pessoal, viaturas, armas e equipamentos destinados a um tipo específico de emprego operacional. Aqueles militares demonstraram subjetivamente maior propensão para focar processos e meios e, consequentemente, teriam pouca inclinação para o pensar verdadeiramente crítico.

No início deste século, o Programa de Excelência Gerencial, exemplo mais concreto, incidiu no mesmo equívoco de focar o processo. Buscou-se basicamente adaptar de forma burocrática as organizações militares aos padrões teóricos da ciência gerencial, em vez de utilizar as boas normas de gestão para identificar e corrigir deficiências. O ganho que porventura propiciou foi pouco se comparado com a energia dispendida e com o que se poderia ganhar se o foco fosse o fim. A gestão é uma ferramenta e atribuiu-se à própria ferramenta a capacidade de corrigir defeitos por sua presumida existência, mas ela só seria produtiva na medida em que fosse apropriadamente utilizada.

Exemplos passados nada dizem sobre a condição atual do Exército, mas são úteis como alerta de ele não estar livre de sofrer disfunções semelhantes se carecer de objetividade e pensamento crítico.

Também é disfuncional a tendência de apreciar desempenhos pessoais e organizacionais de modo predominantemente laudatório.2 Embora agradáveis, manifestações de louvor nem sempre expressam devoção verdadeira. Erros e deficiências, nunca ausentes, não se autocorrigem; se não forem reconhecidos e apontados, o resultado será sempre prejudicial. Alimenta-se, assim, uma equivocada e perigosa ilusão de excelência maior que a de fato existente.

Críticas francas, objetivas e bem intencionadas retratam preocupação genuína e zelo verdadeiro pelo objeto criticado e podem evitar erros. Elas não ferem a disciplina – esta exige obediência, não concordância –, também não constituem impertinência ou transgressão se dirigidas à esfera de atuação de escalões superiores, desde que se possua capacitação para tanto, pois não há indisciplina em manifestações francas de caráter funcional. Quem as faz, porém, precisa manter-se disciplinado, pois o fruto de seu pensamento não se impõe à tomada de decisão; cabe-lhe tão somente apontar os aspectos problemáticos a quem compete decidir.

Aperfeiçoar o Exército requer esforço constante. O bom cumprimento de suas missões depende da precisão com que seus objetivos são definidos, da sinergia de funcionamento de suas organizações, da efetividade de seus meios, da pertinência de seus procedimentos internos e da flexibilidade de seus traços culturais. Sua eficiência repousa acima de tudo na perspicácia de seu pessoal em examinar as circunstâncias vigentes, perceber os aspectos problemáticos e conceber soluções apropriadas. Disfunções no modo de pensar e julgar repercutem negativamente na eficiência da Força e merecem permanente atenção e, se necessário, correção.

“É menos difícil criar uma instituição do que mantê-la em bom estado de funcionamento, porque a vida é algo tão móvel que se deve renovar, incessantemente, suas concepções para adequá-las às novas condições das circunstâncias e das pessoas (Ibidem).

Não confundir esse aprendizado mediante a experiência alheia com o mero espírito de imitação.

Numa reunião de estudo com instrutores da ECEME que serviram no Haiti, após todos salientarem os êxitos da tropa brasileira, o S Cmt perguntou o que dera errado. Silêncio. Novo silêncio depois de repetida a pergunta, até que um deles apontou falhas, mas cometidas por uma tropa estrangeira.

Sobre o autor:

Marcelo Oliveira Lopes Serrano, coronel de cavalaria, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras em 1977.

Cursou a EsAO em 1986 e a ECEME em 1993-94. Foi estagiário do Collège Interarmées de Défense em Paris, França, em 1997-98. Serviu como adjunto da 2ª Seção do Comando Militar da Amazônia e do Adido do Exército junto à Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Comandou o 3º Esquadrão de Cavalaria Mecanizado e o 3º Regimento de Carros de Combate. Transferido para a reserva em agosto de 2008, sua última função no serviço ativo foi subcomandante da Escola de Comando e Estado Maior do Exército.

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