MRAI FINAL – Fábio C. Pereira – Parte VI – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

Nota DefesaNet

DefesaNet lança a análise do Marco Regulatório da Atividade de Inteligência  produzidas pelo Especialista em Inteligência Estratégica e Defesa Nacional Fábio Costa Pereira.

Parte I (Introdução) – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

Parte II (Justificativa do Projeto, Capítulo I e Capítulo II) – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

Parte III – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

Parte IV – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

Parte V – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

Parte VI Final  – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência

O texto na íntegra do Projeto de Lei nº 2719/2019, pode ser acessado em Link

O Editor

FINAL – O Marco Regulatório da Atividade de Inteligência – Parte VI

Fábio Costa Pereira
Especialista em Defesa e Inteligência Estratégica

I.    Introdução

No presente artigo, o último da série sobre o MRAI, mais três pontos do Projeto de Lei serão analisados: o Capítulo IX, que trata do Controle da Atividade de Inteligência, o Capítulo X, que trata do Compartilhamento de Informações e o Capítulo XI,  que trata das Disposições Finais.

II.  Capítulo IX: O Controle da Atividade de Inteligência

O Capítulo IX, que trata do controle da atividade de inteligência, tanto interno quanto externo, é composto de apenas um artigo, o artigo 38 que, em seus dois parágrafos, enumera os legitimados ao exercício desse controle nos níveis federal (parágrafo 1º) e estadual (parágrafo 2º).

Em termos federais, são os seguintes legitimados:

–  A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional;

–  O Tribunal de Contas da União;

–  A Controladoria-Geral da União;

–  O Poder Judiciário Federal; e

–  O Ministério Público Federal.

Por sua vez, em termos estaduais, figuram como legitimados, de forma simétrica ao parágrafo anterior:

–  O Tribunal de Contas dos Estados;

–  O Poder Judiciário Estadual; e

–  Os Ministérios Públicos Estaduais.

II.1)   O Controle dos Guardiães

O signatário do presente artigo, em Trabalho de Investigação Final (TIF) apresentado na conclusão do Curso de Defesa Nacional (2018/2019), realizado no Instituto de Defesa Nacional de Portugal, intitulado “A Atividade de Intelligence no Contexto dos Estados Democráticos de Direito: o sigilo versus a transparência e a necessidade da supervisão/controle da atividade: uma análise comparativa entre os Sistemas de Informações/Inteligência de Portugal e do Brasil”, discorreu sobre o controle dos guardiães e o controle da atividade de inteligência no Brasil.

Acerca do tema, diz o TIF:

“No capítulo 6 de sua obra, Silent Warfare – Undersanding the World of Intelligence, Shulsky e Schmitt (2002) abordam tema crucial para a compatibilização da intelligence ao universo democrático. Questionam, no capítulo, quem deve guardar os guardiões? Segundo os autores (Shulsky & Schmitt, p. 130), há uma constante tensão entre a necessidade de preservação do sigilo e o efetivo controle da atividade, ainda mais quando os serviços de intelligence gozam da prerrogativa chamada de plausible denial, em regra associada às ações encobertas [1], mas que pode ser aplicada a outros segmentos da inteligência, e que consiste na possibilidade de, justificadamente, negar-se a ocorrência de determinado fato, notícia ou atuação do serviço em dada situação. A negação, em muitos casos, é essencial para evitar o embaraço dos governos por conta da violação de leis internacionais ou outras razões (Shulsky & Schmitt, 2002, p. 130). No ponto que interessa à supervisão e o controle da intelligence, importante referir que ele pode e deve se dar de diferentes formas, interna ou externamente, direta ou indiretamente, ampliando-se, assim, o seu espectro de efetividade.  Genericamente falando, o controle estatal sobre os serviços de intelligence pode incidir sobre o orçamento destinado atividade, o chamado power of the purse (Shulsky & Schmitt, 2002, p.132), na capacidade de resposta às necessidades políticas, no controle das operações e na adequação das ações desenvolvidas (Lowenthal, 2009, p.199).  No particular, este controle é desempenhado, internamente, pelas unidades correcionais, bem como pelas chefias mediatas e imediatas, e externamente, de outro lado, este controle se dá em todas as esferas de poder, tanto via legislativo, quanto executivo e judiciário.  Outra forma de se impedir o mau uso da inteligência, de sua aplicação como instrumento político, é a permissão, também via legal, das inteligências, motivadamente, recusarem missões quando não digam respeito aos seus efetivos objetivos, bem como a submissão da escolha do coordenador da atividade de inteligência a organismos externos ao executivo, tal como o parlamento (Johnson, 2006, p. 70).

Ainda, em um universo mais amplo, o controle também é exercido pela sociedade civil organizada por intermédio da mídia e das Organizações Não Governamentais (ONGs).  O controle externo da atividade, é importante referir, não se resume à questão da legalidade das ações. Ele deve abranger, também, a verificação da preservação dos direitos humanos, da própria efetividade da Inteligência e da correta utilização dos recursos a ela destinados, constituindo-se, no ponto fundamental, a supervisão dos Tribunais de Contas. Possíveis desvios no exercício do dever de fiscalização, com o objetivo de atender interesses políticos ou partidários, trazem consigo potenciais efeitos negativos, tais como a superveniência da descrença e da desmoralização dos serviços perante a opinião pública.  Serviços de informações não controlados podem se constituir, no âmbito interno, em vetores de crises políticas e focos conspiratórios, e, no externo, podem desenvolver uma pauta de interesses próprios divorciada dos interesses governamentais (Cardoso, 1978, p. 120) [2] .

Adiante, sobre o controle externo da atividade de inteligência no Brasil segue o TIF:

“No Brasil, de outro lado, o controle da intelligence não é tão amplo e plural quanto em Portugal. Enquanto em Portugal, de forma direta, a accountability é feita pelo Poder Executivo, pelo Poder Legislativo, com importante contribuição da sociedade civil organizada, e pelo Ministério Público, em sede de inteligência brasileira apenas o Poder Executivo e Legislativo exercem-no, respectivamente, interna e externamente. Ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e à própria sociedade civil, via organizações não governamentais e mídia, é reservado o controle meramente indireto. O Poder Legislativo, através da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), do Congresso Nacional, que é de natureza permanente, exerce o chamado controle externo da atividade de inteligência brasileira. Fazem parte deste órgão de controle os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e do Senado Federal, assim como os Presidentes das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (art. 6º, § 1º). A CCAI, no entanto, teve o seu funcionamento regulamentado apenas no ano de 2013, quase quatorze anos após a criação do SISBIN, através da Resolução nº 3 [3], firmada pelo então Presidente do Senado, Renan Calheiros, altura na qual os integrantes da comissão foram amiúde definidos e as competências de controle e fiscalização da atividade de inteligência disciplinadas [4]. Em termos de controle interno, a teor do art. 5o da Lei No 9.883, de 07 de setembro de 1999, a Câmara de Relações Exteriores (Creden), do Conselho de Governo, é a responsável pela supervisão da execução da Política Nacional de Inteligência (PNI). Além disso, segundo a ENINT (2017), “[…]existe um controle que é efetuado pelo titular do organismo de Inteligência. Esse controle enfoca o comportamento dos seus subordinados, a legitimidade e a adequação das suas ações à legislação vigente”.Especificamente no que diz respeito à ABIN, órgão central do sistema de inteligência brasileiro, o controle interno é feito pela Secretaria de Controle Interno da Presidência da República (art. 14º) [5], bem como pela  Assessoria de Controle Interno da própria agência, “[…]a quem cabe analisar atos administrativos de forma a assegurar, preventivamente, a legitimidade, a eficácia e a eficiência da gestão orçamentária, financeira, patrimonial, de pessoal e demais sistemas administrativos” (ABIN, 2019) [6]. Tal como em Portugal, no Brasil, cabe ao Poder Judiciário o controle indireto da atividade de inteligência. Ao Judiciário incumbe julgar os desvios de conduta e inobservância dos limites da lei e da constituição praticados por integrantes do sistema. Há, no entanto, outra forma mais sutil do controle da atividade, estepraticado tanto no Brasil quanto em Portugal, que diz respeito à limitação ao espectro de atuação dos serviços de informações, vedando-lhes a prática de atos e o exercício de competências tipicamente investigativas. Em Portugal, o art. 4º da Lei nº 30/84, com as alterações procedidas ao longo dos anos, delimita o âmbito de atuação dos serviços de informações, vedando que estes pratiquem atos ou desenvolvam atividades próprias dos tribunais ou das polícias (Nunes, 2015, p.14). No Brasil, ao seu turno, o art. 5º, incisos, VIII, IX e X da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias individuais, ao mesmo tempo em que dispõe ser inviolável a vida privada e a casa, salvo quando ocorrer delito flagrante ou existir ordem judicial, assegura a inviolabilidade das comunicações, excepcionando as hipóteses previstas em lei, precedida da devida autorização dada pelo juízo competente, quando esta violação for indispensável para a investigação criminal ou ao processo judicial. Não há a previsão, em nenhum dos casos, de exceções às inviolabilidades constitucionais para os fins de inteligência.

O que há de inovador no modelo de controle proposto pelo MRAI, como facilmente se pode perceber, é a ampliação do rol de legitimados ao exercício desta atividade, alcançado ao Poder Judiciário, aos Ministérios Públicos, à Controladoria-Geral da União e aos Tribunais de Contas o poder-dever de fiscalizar os órgãos e instituições dedicadas à inteligência de Estado e de Segurança Pública no país, o que dantes faziam apenas indiretamente.

III.   CAPÍTULO X:  DO COMPARTILHAMENTO DA INFORMAÇÃO

O Capítulo X, que trata do compartilhamento das informações de inteligência, é composto por dois artigos, o artigo 39 e o artigo 40.  O primeiro deles define o que é o compartilhamento de informações e o segundo disciplina os requisitos necessários a este compartilhamento.

Segundo o artigo 39 do MRAI, compartilhar informações de inteligência “consiste no ato de permitir que outro órgão de inteligência tenha acesso a conhecimentos de inteligência”. Tal compartilhamento pode se dar através de documentos, relatórios de inteligência ou da permissão de acesso a banco de dados que o detentor das informações possua.

Em qualquer hipótese, a qualidade da informação, espelhada por sua confidencialidade, integridade e autenticidade deve ser garantida tanto por quem envia quanto por quem recebe (parágrafo único do artigo 39).

No ponto, importante ressaltar que, em termos de compartilhamento de informações, como referido em artigo anterior, a necessidade de conhecer de dado conhecimento inteligência por aquele que quer o acesso é o norte primeiro a ser seguido. Em não havendo a real necessidade de conhecer, o detentor da informação, após um juízo prévio de conveniência e oportunidade,  não deverá a compartilhar.

Ultimando o capítulo, o artigo 40 disciplina que o compartilhamento de informações entre órgãos de inteligência deverá ser regido por termos de cooperação e convênios específicos, não facultando o compartilhamento informal de conhecimentos de inteligência. Tal formalização dos meios e hipóteses de compartilhamento de informações entre as diferentes agências dedicadas à de inteligência, permitirá, de forma mais segura e precisa, os controles externos e internos da atividade.

IV.    CAPÍTULO XI DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

O capítulo XI, que trata das disposições finais, é composto por três artigos. O artigo 41 dispõe que os Órgãos Centrais de Inteligência, criados pelo MRAI, serão os responsáveis pela formatação de regras específicas para que os balizadores gerais estabelecidos em lei sejam cumpridos.

O artigo 42, ao seu turno, dispõe que todas as disposições em contrário serão revogadas, o que, como apontado no segundo texto desta série, pode se constituir em um grave problema, porquanto a imprecisão em muitos pontos do marco regulatório pode levar à ruptura do sistema de inteligência brasileira como hoje o conhecemos.

Finalizando o capítulo e o texto legal, o artigo 43 diz que a lei entrará em vigor na data de sua publicação, não havendo a previsão de vacatio legis [7],  o que se configura um equívoco, porquanto as profundas alterações propostas pela lei necessitam de um razoável lapso temporal para que os órgãos de inteligência façam as necessárias reformulações internas e adequações protocolares impostas pelo MRAI.

V.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dos seis artigos que integraram a série de análises sobre o Marco Regulatório da Atividade de Inteligência, os pontos positivos e negativos do projeto ora em trâmite no Senado Federal foram abordados.

Muito embora o projeto apresente muitos pontos a corrigir, é fundamental que se diga que ele é um importante ponto de partida para a criação de um microssistema legal próprio que dê suporte e regulamente a atividade de inteligência no país, em especial no que diz respeito à busca do dado negado.

A mobilização daqueles que operam na atividade de inteligência de Estado e Segurança Pública, com o envio de propostas e sugestões ao relator do projeto, faz-se fundamental para o aprimoramento e correção de rumos do MRAI.

Há uma janela de oportunidades que, caso adequadamente aproveitada, poderá atender aos históricos reclamos daqueles que atuam na área inteligência brasileira.

A hora da inteligência é agora!


[1] Marco Cepik (2003) diz que ações encobertas são :“[…]utilizadas por um governo ou organização para tentar influenciar sistematicamente o comportamento de outro governo ou organização através da manipulação de aspectos econômicos, sociais e políticos relevantes para aquele autor, numa direção favorável aos interesses e valores da organização ou governo que patrocina a operação” (p. 61).

[2] Disponível em; “https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/2950/1/NeD05_PedroCardoso.pdf”. Recuperado em 25 de nomembro de 2019.

[4] Art. 3º A CCAI tem por competência:

I – realizar o controle e a fiscalização externos das atividades de inteligência e contrainteligência, inclusive das operações a elas relacionadas, desenvolvidas por órgãos do SISBIN em conformidade com a Constituição Federal e demais normas do ordenamento jurídico nacional;

II – examinar e apresentar sugestões à Política Nacional de Inteligência a ser fixada pelo Presidente da República, na forma da Lei;

III – examinar e emitir parecer sobre proposições legislativas relativas à atividade de inteligência e contrainteligência e à salvaguarda de assuntos sigilosos;

IV – elaborar estudos sobre a atividade de inteligência;

V – examinar as atividades e o funcionamento dos órgãos do SISBIN em conformidade com a Política Nacional de Inteligência;

VI – apresentar recomendações ao Poder Executivo para a melhoria do funcionamento do SISBIN;

VII – manifestar-se sobre os ajustes específicos e convênios a que se refere o art. 2º, § 2º, da Lei nº 9.883, de 07 de dezembro de 1999;

VIII – apresentar proposições legislativas sobre as atividades de inteligência, contrainteligência e salvaguarda de informações sigilosas;

IX – acompanhar a elaboração e disseminação da doutrina nacional de inteligência e o ensino nas escolas de inteligência e supervisionar os programas curriculares da Escola de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (ESINT/ABIN) e das instituições de ensino da matéria;

X – elaborar relatórios referentes às suas atividades de controle e fiscalização das ações e programas relativos à atividade de inteligência;

XI – receber e apurar denúncias sobre violações a direitos e garantias fundamentais praticadas por órgãos e entidades públicos, em razão de realização de atividade de inteligência e contrainteligência, apresentadas por qualquer cidadão, partido político, associação ou sociedade;

XII – analisar a parte da proposta orçamentária relativa aos órgãos e entidades da administração direta ou indireta que realizem atividades de inteligência e contrainteligência, bem como as propostas de créditos adicionais destinados ao custeio ou investimento em atividades e programas de inteligência e contrainteligência, em especial dos órgãos civis e militares que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência, encaminhando o resultado de sua análise à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO);

XIII – apresentar emendas ao parecer preliminar do Relator-Geral do projeto de lei orçamentária anual;

XIV – acompanhar a execução das dotações orçamentárias dos órgãos e entidades da administração direta ou indireta que realizem atividades de inteligência e contrainteligência.

[5] Art. 14. As atividades de controle interno da ABIN, inclusive as de contabilidade analítica, serão exercidas pela Secretaria de Controle Interno da Presidência da República.

[6] Disponível em http://www.abin.gov.br/acesso-a-informacao/controle-e-fiscalizacao/. Recuperado em 22 de novembro de 2019.

[7] Vacatio legis é o nome dado ao prazo temporal ocorrente entre a publicação da lei e a sua vigência. Este prazo é previsto na própria lei.

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