Indígenas brasileiros lutaram contra nazistas na Segunda Guerra Mundial

Paula Sperb

Porto Alegre

Folha Sã Paulo 02 Janeiro 2021

O calor e a paisagem verde das aldeias de clima tropical foram substituídos pelo branco da neve e um frio que chegava a -15°C em vilarejos italianos. Entre os cerca de 25 mil de soldados brasileiros que combateram as tropas nazistas de Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) estavam dezenas de indígenas, de etnias como terena, cadiueu, kinikinau e guarani.

A história dos indígenas brasileiros que ajudaram os Aliados a derrotar as potências do Eixo ainda é pouco conhecida, mas tem sido resgatada. Outro exemplo de resgate da história é sobre a participação feminina, com as enfermeiras voluntárias.

Os indígenas integraram a FEB (Força Expedicionária Brasileira), espalhados em diferentes divisões como infantaria, responsável por atacar e defender, e engenharia,com funções como desmontar armadilhas, desarmar minas e até abrir estradas.

O Brasil declarou guerra a Hitler em 1942, depois que 35 navios brasileiros foram atacados na costa brasileira e 32 afundaram, deixando centenas de mortos. Os soldados embarcaram para a Itália em 1944.

A FEB foi criada especialmente para enfrentar o nazismo no conflito que assolou o mundo. As tropas atuaram na Itália, onde venceram batalhas históricas, como as de Monte Castello e Castelnuovo. Após a derrota de Hitler, a FEB foi extinta pelo governo brasileiro de Getúlio Vargas.

Em plena ditadura do Estado Novo, um dos motivos para o encerramento da FEB era o temor de que soldados preparados e que lutaram por democracia e liberdade pudessem se revoltar.

“A FEB vai combater um regime totalitário e aqui era totalitário”, afirma Helton Costa, pesquisador com pós-doutorado em história pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). De acordo com ele, a FEB era um “recorte do Brasil” e diversa como o próprio país. Havia negros, indígenas e até comunistas, como o gaúcho Carlos Scliar, por exemplo.

Além de comunista, Scliar era pintor e retratou as paisagens do conflito em seu bloco de papel entre uma tarefa e outra de sua função de cabo na central de tiros, onde analisava mapas para calcular distância e direção de tiros.

Diversos indígenas integravam o Nono Batalhão de Engenharia, que chegou a capturar uma bandeira nazista quando rendeu a 148ª Infantaria do Exército alemão em abril de 1945. Cerca de 20 mil soldados alemães se renderam aos brasileiros.

A bandeira está preservada e exposta no Museu Marechal José Machado Lopes, em Aquidauana, a 118 km de Campo Grande. A maioria dos indígenas identificados por pesquisadores é de Mato Grosso do Sul.

Na aldeia de Ipegue, em Aquidauana, é possível encontrar o túmulo de Irineu Mamede, indígena terena que foi soldado do Primeiro Regimento de Infantaria, o mesmo que atuou na tomada de Monte Castello, um morro íngreme de 977 metros. Naquele inverno de 1945, coberto de neve, o domínio do local era fundamental para barrar as tropas de Hitler na Itália.

Dedicado a preservar a história dos indígenas da FEB, o jornalista Geraldo Ferreira localizou o jazigo de Mamede. O lugar é decorado com o símbolo da FEB: uma cobra fumando. Mamede morreu em 1996.

Ferreira encontrou também Aurélio Jorge, que concedeu a ele uma entrevista na língua dos terenas, em 2000. O indígena morreu quatro anos depois. “A minha mulher é índia terena, ela conversou na língua materna. Então, ele se abriu, chorou e se emocionou. Porque era na língua dele, questionado por alguém como ele. Ele colocou sua medalha e vestiu sua boina”, lembra o jornalista.

Jorge chegou a aprender palavras em italiano e relatou que os pracinhas brasileiros eram tratados como heróis pelos italianos libertados do domínio nazista. Em combate, porém, usava a língua indígena. Vucapanavo era o grito de guerra dos terenas, revelou Jorge em entrevista a Ferreira. O termo significa algo como “em frente!”.

Outro indígena, Otacílio Teixeira, foi duplamente discriminado, segundo o jornalista. Isto porque era filho de um negro e uma índia. Morto em 2019, ele é um dos inúmeros veteranos de guerra que ficaram com sequelas psicológicas e traumas. “Quando voltou, assim como muitos, também não quis saber de cidade, não quis mais contato”, conta Ferreira.

Além dele, o soldado José Quevedo, morto em 2016, também tinha más memórias dos combates. “Depois do retorno, levou mais de 20 anos para pegar uma espingarda para caçar porco do mato”, relata Ferreira. Quevedo também não gostava de fogos de artifício, por causa do barulho que lembrava disparos.

Os veteranos, além do trauma da guerra, testemunharam o ocaso dos anos que seguiram a extinção da FEB, quando eram vistos com desconfiança pelo próprio governo. Enfrentaram também a discriminação pela condição indígena ou negra, como explica Costa, pesquisador.

De acordo com ele, um tenente da FEB relatou que um general chegou a ordenar que os soldados de pele escura, possivelmente incluindo os indígenas, desfilassem nas colunas internas, enquanto os brancos desfilariam nas laterais, visíveis ao público. Os soldados desfilaram antes do embarque e também no retorno, no Rio de Janeiro. “Ninguém cumpriu a ordem e ficou por isso mesmo”, diz Costa.

Em outro episódio de racismo, o comando da FEB teria pedido uma guarda de honra sem negros para recepcionar o príncipe Humberto, da Itália. Os relatos integram a obra “Depoimento de Oficiais da Reserva sobre a FEB”, publicado em 1949.

Há, ao menos um caso registrado de um indígena que chegou ao posto de segundo sargento e, portanto, comandava outros soldados: Venceslau Ribeiro, do Nono Batalhão de Engenharia. Há inúmeras fotografias de Ribeiro na Itália.

“Ele chegou ao posto mais alto entre os indígenas, era alguém que liderava cabos e soldados, a maioria brancos. Vemos nas imagens de seu arquivo que ele é querido pela tropa”, diz Costa.

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