Uma nova Guerra Fria na Ucrânia I

Uma nova Guerra Fria na Ucrânia

O relato dos bastidores do conflito pelo único jornalista especializado que esteve na zona de operações

Artigo originalmente publicado na Revista Tecnologia e Defesa

Era uma noite do mês de dezembro de 2014 e eu desembarcava no Aeroporto Internacional de Boryspil. Na fila da imigração, policiais da Guarda de Fronteira, usando uniformes camuflados e armados com fuzis Kalashnikov, checavam documentos e observavam atentamente quem chegava ao país. Perguntei a razão para tanta segurança, e me foi dito que o serviço de inteligência havia alertado para presença de supostos agentes estrangeiros e insurgentes com passaportes falsos, usando aquele aeroporto para chegar a Kiev, a capital ucraniana, para ações terroristas ou desestabilizadoras, por isso era necessário controlar com rigor quem passava por ali.

Mas o que se via no saguão era aparentemente diferente. Caixas com quipamentos de vídeo, microfones e câmeras estavam por todo lugar. A imprensa mundial estava vindo à Ucrânia para cobrir um dos momentos mais intensos da guerra que assolava o país, cujo território por séculos foi o eixo entre Oriente e Ocidente, estrategicamente localizado no coração geográfico da Europa, tornando-se mais uma vez a trincheira entre dois blocos geopolíticos antagônicos. Uma situação que havia provocado a maior crise entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a Rússia desde o fim da União Soviética.

No lado de fora do aeroporto esperava Oleh, um coronel de Comunicações que fora adido militar na Embaixada da Ucrânia em Brasília, e que ocupava um importante cargo na diretoria do Departamento de Cooperação Internacional do Ministério da Defesa. Ele havia se encarregado de organizar a primeira parte da minha viagem ao leste onde, em alguns locais, ainda aconteciam intensos combates entre forças governamentais e separatistas.

Oleh me levou para jantar “borsch”, uma sopa de beterraba típica que ajudou a espantar o frio que fazia, afinal, faltavam poucos dias para a chegada do inverno. Juntou-se a nós um jovem chamado Anton, que havia sido tenente do Exército Ucraniano durante a missão de paz no Kosovo, e que seria meu motorista, segurança e intérprete durante a viagem. Para tal, um rigoroso protocolo de segurança devia ser cumprido, além de resolver uma burocracia de autorizações especiais para que nós pudéssemos entrar na região.

A caminho do Leste

Terreno de passagem para grandes conquistadores, as estepes do largo território  ucraniano definiram para sempre o fim do sonho expansionista do Império Sueco e fizeram surgir uma nova potência, o Império Russo, para séculos depois serem  novamente disputadas; alguns a chamando de Espaço Vital ou simplesmente “Lebensraum”, enquanto outros chamariam de “Novorossiya”. Naqueles campos de trigo foram travadas importantes e decisivas batalhas desde épocas imemoriais.

Depois de seis horas por estradas esburacadas chegamos a Kharkiv, uma das maiores e mais importantes cidades da Ucrânia, situada a apenas 50 km da fronteira russa. A beleza das catedrais ortodoxas com suas cúpulas douradas e brilhantes disputava a atenção com a passagem de comboios militares vindos diretamente da Malyshev, uma das mais tradicionais fábricas de carros de combate do mundo, responsável pelo desenvolvimento e fabricação do lendário T-34, e que hoje se ocupa da produção do BM Oplot e também do T-64 BM Bulat, este a espinha dorsal da tropa blindada ucraniana.

Devido à sua localização e poder econômico, a cidade tornou-se importante centro de apoio logístico no contexto das operações militares no Donbas, rica região industrial e carbonífera que leva este nome por ser banhada pelo Rio Donets. Depois de passar a noite em Kharkiv pegamos a estrada E40 por mais 100 km rumo ao sul. Esta era conhecida como a rodovia da morte, devido ao intenso fluxo de comboios militares, ambulâncias e caminhões frigoríficos que iam e vinham das regiões separatistas de Donetsk e Luhansk. Nas entradas de qualquer vilarejo e nas estações da polícia rodoviária haviam postos de checagem feitos de concreto e reforçados com sacos de areia. Com olhar desconfiado, soldados da Guarda Nacional e policiais armados com fuzis paravam todos os veículos pedindo as identificações e fazendo muitas perguntas. Fotos ali eram absolutamente proibidas, sinal de que estávamos próximos da área dos combates.

A primeira cidade a ser visitada foi Izyum, no estado de Kharkiv (Kharkiv Oblast), onde fomos logo recebidos pelo dono de um dos principais jornais locais. Seu editor disse que tão logo a crise estourou, homens armados e encapuzados invadiram a sede do seu jornal, ameaçaram jornalistas e os obrigaram a publicar artigos contra o governo de Kiev e em favor da separação da Ucrânia. Segundo ele, essas pessoas falavam russo com sotaque da Rússia e seguiam procedimentos muito bem ordenados, estavam equipados com modernos sistemas de comunicação e não pareciam em nada com os separatistas “velhos, bêbados e desocupados” que apareciam na televisão.

Eles usavam uniformes militares verdes, sem qualquer identificação ou insígnia e mantinham o rosto sempre coberto com balaclavas. Quando eles se recusaram a colaborar com os invasores, o jornal foi fechado, mas o mesmo não aconteceu com outros veículos de comunicação da cidade que, da noite para o dia, viraram colaboracionistas, publicando e colocando no ar propaganda separatista, veiculando somente informações da imprensa russa. Izyum está muito ligada a Kharkiv e no decorrer da crise recebeu as tropas governamentais como libertadoras.

Spetsnaz em Donetsk Oblast

Anton recebeu um telefonema informando que nossa escolta já estava no local combinado e que devíamos seguir para lá. Na saída de Izyum estavam nos esperando duas viaturas camufladas tipo Humvee, com quatro soldados em cada uma. Estavam armadas com uma metralhadora pesada KT-12,7 (NSV), de 12,7mm, carregavam a bandeira da Ucrânia e tinham listras brancas pintadas sobre o capô, que as identificavam como pertencentes ao Exército, o jeito encontrado para diferenciá-las daquelas capturadas e utilizadas pelas forças separatistas.

 Aqueles soldados não eram comuns, vestiam fardamento com camuflagem MultiCam, usavam balaclava com rádio intercomunicador, carregavam fuzil tipo AKS-74, com lançador de granadas de 30mm GP-34. No corpo do fuzil, uma camuflagem branca para neve foi improvisada com tiras de esparadrapo. Nos bolsos do colete carregavam vários pentes de munição, sinalizadores, baioneta, duas pistolas e muitas granadas de mão tipo F1.

Embarquei em uma das viaturas onde, sob meus pés, estava uma caixa de granadas e, ao meu lado, muitos pentes de munição. O motorista não falava, dirigia com muita atenção e sempre que parava, olhava para fora com uma das mãos segurando o Kalashnikov.

Já estávamos dentro da zona de operações daquela que havia sido batizada de Operação Antiterrorista, ou simplesmente ATO. Ao passar por um posto de checagem da Guarda Nacional, guarnecido por viaturas blindadas de combate de infantaria e de transporte de pessoal tipo BMP-3, BTR-4 e BTR-70 entramos em Sloviansk, a cidade que foi o epicentro do conflito e principal reduto dos separatistas pró-russos. O que mais se via pelas ruas era militares armados em patrulha ou voluntários e membros da Guarda Nacional, força que havia sido criada há pouco tempo e que estava ubordinada ao Ministério do Interior.

Veículos blindados de transporte BTR-70 e 80, o moderno BTR-3 e as viaturas blindadas leves Dozor e Cougar estavam estacionados nos principais cruzamentos, com suas metralhadoras prontas para atirar em qualquer veículo suspeito ou que ameaçasse a tropa. O clima parecia de normalidade, mas era apenas aparente. Estava em andamento uma cooperação cívico-militar (CIMIC) com o objetivo de restabelecer a segurança e reconstruir a cidade, cujas marcas do conflito podiam ser vistas na maioria dos prédios; e reconquistar a população, quem mais sofreu e ficou entrincheirada entre os separatistas e as unidades militares.

Conquistar o coração e as mentes das pessoas é o principal desafio, pois quem teve sua casa destruída ou perdeu alguém da família carrega consigo uma cicatriz difícil de fechar e sempre terá suas razões para protestar ou se indignar. Elas também ficaram muito tempo sendo bombardeadas por propaganda e reféns de uma imprensa que distorcia os fatos, e chegavam até a acreditar que aqueles separatistas, parte deles soldados profissionais realizando uma missão especial, estavam lá para protegê-los.

Reconstruir uma cidade bombardeada, retomar o funcionamento dos serviços públicos, das redes de água e esgotos destruídas, dos hospitais e escolas e, consequentemente, restabelecer a ordem são essenciais para ganhar o apoio popular que, por mais que as tropas tenham sido bem recebidas, o descontentamento cresce na medida em que as autoridades não conseguem trazer de volta a normalidade e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. O clima de tensão era muito forte e podia ser percebido nos olhares desconfiados daqueles soldados.

Atentados contra os militares, bombas improvisadas colocadas nos acostamentos de estradas ou em lugares públicos e sequestros de ativistas pró-Kiev aconteciam frequentemente, fazendo muitas vítimas entre civis e militares, com muitos colaboracionistas pró-russos trabalhando ativamente de forma encoberta, como quinta colunas. Assim, continuava o trabalho diuturno das tropas tentando identificar e desmantelar as células “terroristas” que ainda operavam. É uma tarefa difícil identificar um inimigo que fala o mesmo idioma, tem os mesmos hábitos e comportamento e se mantém oculto em meio aos civis, como se fosse um deles. Essas ações eram principalmente conduzidas por unidades especiais, treinadas para operações descaracterizadas e de alta complexidade.

As Forças Especiais do Exército Ucraniano são formadas por dois regimentos, o “3º Separate Spetsnaz Regiment”, de Kirovograd, e “8º Separate Spetsnaz Regiment”, de Khmelnitskyi, além de mais dois outros destacamentos operativos especializados, o “10º Separate Spetsnaz Detachment”, em Kiev, e o “801º Anti-diversionary Detachment”, de Mykolaiv, que como sua denominação diz, é especializado em operações antidiversionistas. Deste último eram parte aqueles operadores que me escoltavam. Eles estavam muito focados na missão, que era me acompanhar onde quer que eu decidisse ir.

Nunca descobriam seus rostos, chamavam-se apenas por números de identificação e tinham recebido treinamento no exterior. Alguns deles eram oriundos e tinham família vivendo nos estados separatistas. Diziam que não falavam inglês, mas pareciam escutar atentamente e entender minhas conversas com Anton, que fazia também o trabalho de intérprete. Com certeza tinham conhecimento de outras línguas, e contaram para Anton, com orgulho, que somente um dos seus membros havia sido morto em combate durante todo conflito.

Conforme averiguado, esses militares estiveram presentes nas principais batalhas, trabalhando de forma independente das demais forças, muitas vezes sem o  conhecimento delas, sendo a única tropa do Exército que estava preparada antes mesmo de o conflito começar. A maior parte das suas operações fora realizada além das linhas separatistas e também na fronteira com a Rússia. Buscavam localizar, identificar, capturar ou eliminar lideranças dos rebeldes, sabotar instalações inimigas, assim como operações especiais de reconhecimento e de destruição com explosivos, ação típica de Comandos.

Um dos principais objetivos era identificar e, se possível, neutralizar e capturar Spetsnaz adversários que estivessem em missão no território ucraniano, e esta guerra era, na sua fase inicial, lutada em segredo pelas unidades de inteligência militar e de Forças Especiais dos dois lados, que usavam técnicas e táticas similares, sendo que muitos deles podem ter sido treinados conjuntamente. Dois grupos operativos das Spetsnaz ucranianas compostas por doze homens cada um eram responsáveis por uma faixa de mais de 450 km de extensão. As Forças Especiais do 3º Regimento ficaram mundialmente conhecidas pela feroz resistência às forças separatistas na defesa de uma área do aeroporto internacional de Donetsk. Aqueles poucos elementos foram apelidados pelos próprios inimigos de “ciborgues”, porque pareciam “invencíveis e imortais”.

Seguimos então para o vilarejo de Seleznivka, a poucos quilômetros de Sloviansk, onde fomos ver como ficou a cidade que esteve na linha de frente. A escolta seguia com fuzil em punho, passo firme e olhar atento, entrando primeiro em cada casa e vasculhando o pátio antes que eu pudesse entrar. A maioria dos imóveis estava abandonada e seus moradores fugiram para outras regiões, notadamente no oeste do país. À frente e atrás de mim sempre havia alguém fazendo a segurança.

Ninguém podia se aproximar sem que eles deixassem. Fomos recebidos pelo prefeito no que restou do prédio da administração municipal. Ele disse que quando as forças separatistas começaram a perder terreno, decidiram entrar na cidade com peças de Artilharia de onde fizeram fogo contra as tropas do Exército, que respondeu com fogo de contrabateria, danificando as estruturas de casas adjacentes, mas sem fazer vítimas. A intenção dos separatistas era imputar ao Exército a culpa por supostamente bombardear alvos civis e ganhar apoio da opinião pública, uma tática covarde já consagrada por forças irregulares e terroristas em outros conflitos pelo mundo.

Sloviansk – Onde tudo começou

Na noite de 12 de abril de 2014, cerca de 50 homens mascarados e fortemente armados chegaram à cidade. Usavam uniformes militares verdes e coletes à prova de balas. Tomaram a prefeitura e o posto de polícia, onde capturaram todas as armas, e também a sede do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU- Sluzhba Bezpeky Ukrayiny). Logo foi iniciada uma operação de sabotagem ao capturarem os transmissores de TV e rádio e na interrupção das comunicações telefônicas e de internet de toda região. A partir daquele momento, a população não teve mais acesso às informações vindas do resto do país, e nem sequer canais de TV locais podiam ser vistos.

Só estavam disponíveis programas vindos da Rússia, de reportagens com forte apelo patriótico e de propaganda, retratando os fatos ocorridos na capital de uma maneira distorcida e até mentirosa, instigando a população a se rebelar, afirmando que o “governo nazista da Junta Militar que havia tomado o poder em Kiev” planejava perseguir os russos e os ucranianos russófonos para colocá-los em campos de concentração, da mesma forma como fizera Hitler com os judeus.

A propaganda condenava a nova expressão do nacionalismo ucraniano e a comparava com os grupos antissoviéticos que lutaram pela independência da Ucrânia, na fronteira oeste, durante as décadas de 1930/40. Conclamava os cidadãos “a se unirem e resistirem tal qual seus pais e avós” durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial. Este apelo aos tempos da “Grande Guerra Patriótica” mexeu com a sensibilidade de parte significativa das pessoas e ganhou forte apoio.

Desempregados, desocupados, criminosos, ex-militares soviéticos aposentados e pessoas insatisfeitas com o novo governo se voluntariaram e se uniram àqueles mascarados “Homens de Verde”, que se intitulavam combatentes pró-russos, sob a bandeira da recentemente autoproclamada República Popular de Donetsk, na região que acreditam ser a Novorossiya, nome dado às terras mais ao sudeste durante os tempos imperiais. Os Homens de Verde, que se diziam vir de várias partes, majoritariamente da Crimeia, mas falavam russo com sotaque diferente dos ucranianos, eram liderados por um homem que ficaria muito conhecido durante todo conflito. Seu nome, Igor Ivanovich Strelkov, que a inteligência ucraniana afirma ser o pseudônimo de Igor Vsevolodovich Girkin, um coronel russo nascido em Moscou, que teria participado dos conflitos na Transnítria, Bósnia e Chechênia, tendo se envolvido em massacres e crimes de guerra por onde passou.

Fontes internacionais alegam que ele era um membro da inteligência militar russa, da temida e respeitada “Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravlenie” (GRU). Strelkov era especializado em operações encobertas no exterior e, em Sloviansk, comandava um destacamento que, segundo foi revelado pela SBU, seria pertencente ao “45º Separate Guards Spetsnaz Regiment” das forças aerotransportadas russas, uma unidade de elite das Forças Especiais (Spetsnaz), especializada em conduzir operações psicológicas, de reconhecimento e sabotagem em território inimigo. Utilizando técnicas e táticas especiais, este efetivo de cerca de 50 operadores, muito bem equipado e treinado, dava prosseguimento à segunda fase de uma operação que havia sido muito bem sucedida na Crimeia, resultado de uma nova e hábil doutrina que se revelou uma inédita forma de se fazer a guerra.

A primeira grande batalha do Leste

Barricadas foram colocadas nas principais vias de acesso ao centro da cidade, enquanto todos os prédios públicos foram ocupados e suas entradas guarnecidas pelos “misteriosos” e bem armados “insurgentes”. A presença estatal já não existia mais. Na sequência irromperam os primeiros embates que envolveram elementos das Forças Especiais ucranianas e unidades da Guarda Nacional. A violência escalou e se espalhou para cidades próximas, entre elas Kramatorsk, que se tornou um dos principais bastiões rebeldes, onde dez dias depois um helicóptero Mi-8 do Exército foi destruído por um disparo de RPG. Durante três meses essas cidades seriam o ponto mais quente do confl ito e o principal objetivo a ser alcançado. O recém eleito presidente Petro Poroshenko ordenou às Forças Armadas neutralizar os grupos armados e retomar o controle da região, uma situação que desde o início era vista por Kiev e seus aliados como uma agressão encoberta russa.

A criação da Operação Antiterrorista deu amparo legal para que os militares pudessem ser largamente empregados em combate dentro das fronteiras do país e contra seus próprios cidadãos. A secessão, como é comum no mundo todo, era proibida pela Constituição e precisava ser combatida, e manter a integridade territorial era o principal objetivo, pois a Crimeia já havia sido perdida.

Mais de 15 mil soldados foram mobilizados, junto com 160 carros de combate, 230 veículos blindados e mais de 150 peças de Artilharia. Aproveitando a chegada da primavera, as principais unidades de combate – que já estavam todas mobilizadas – foram enviadas para a zona de operações, incluindo aquelas forças aerotransportadas e unidades blindadas subordinadas ao 6º Exército, com sede em Dniepropetrovsk.

A 25ª Brigada Aerotransportada (paraquedista) realizou o bloqueio da cidade, mas sua reputação foi manchada quando seis das suas viaturas blindadas tipos BMD-1 e BMD-2 recusaram-se a lutar e se renderam aos separatistas. Dois desses veículos foram, dias depois, recuperados pelas tropas paraquedistas da 95ª Brigada Aeromóvel de Zhytomyr, a principal força de reação rápida do Exército Ucraniano.

As intervenções da Aviação do Exército, principalmente as missões de assalto aéreo, EVAM, observação, reconhecimento armado e de apoio aéreo aproximado, intensificaram-se e mostraram-se fundamentais para o avanço das tropas. Em 25 de maio, com a cidade já cercada, dois helicópteros de ataque Mi-24 Hind foram derrubados por mísseis de ombro (MANPADS). Foi um choque com o qual não contavam os comandantes ucranianos, pois seus pilotos eram muito bem treinados, com experiência em missões similares na Libéria e República Democrática do Congo, além de as aeronaves estarem equipadas com modernas suítes de contramedidas eletrônicas. MANPADS são itens altamente controlados justamente para evitar que caiam nas mãos de organizações terroristas ou de forças irregulares, e sua presença no campo de batalha representa a principal ameaça à liberdade das operações de helicópteros ou de aviões voando à baixa altura.

O pesadelo, neste aspecto, estava apenas começando. Logo depois um Mi-8 foi derrubado por mísseis antiaéreos de ombro, desta vez causando a morte de 12 militares, entre eles o general de brigada Serhiy Kulchytsky, que comandava o departamento de treinamento e combate da Guarda Nacional. A prefeita colaboracionista da cidade, subordinada à autodenominada República Popular de Donetsk, decretou uma caçada àqueles que falassem ucraniano. Várias covas coletivas viriam a ser encontradas nos arredores. A imprensa internacional chegou para cobrir o conflito, entretanto, 11 jornalistas estrangeiros foram capturados pelos insurgentes acusados de espionagem, numa violação à liberdade e neutralidade do trabalho dos correspondentes de guerra. Outros 13 observadores militares da Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE) foram detidos por supostamente serem espiões e foram declarados “prisioneiros de guerra”.

A Força Aérea Ucraniana começou a ser largamente empregada no conflito. Aeronaves de ataque Sukhoi Su-25, da 299ª Brigada de Aviação Tática, operavam a partir da Base Aérea de Kulbakino, no sul, para missões de apoio aéreo aproximado, utilizando o  canhão de 30mm, foguetes e bombas contra alvos em solo. Quando a ameaça antiaérea se tornou evidente, e à medida que os combates se acercavam das áreas urbanas de Sloviansk, as aeronaves começaram a empregar munições guiadas a laser, para maior precisão, diminuindo os danos colaterais e evitando a exposição aos mísseis.

Durante o cerco, as tropas do Exército e da Guarda Nacional fizeram o “debut” do novo veículo blindado de combate de infantaria de fabricação ucraniana BTR-4. Grades protetoras tiveram que ser instaladas nas laterais contra os ataques de RPG, sendo a forma mais eficaz para isso. Segundo dito, uma única viatura aguentou oito disparos de RPG sem que nenhum tripulante tenha sido ferido. Com design moderno, o veículo, que é anfíbio, pode levar até oito soldados equipados e atingir uma velocidade de 110 km, e está dotado com estações de armas controladas remotamente nas versões com metralhadora 7,62mm, e com canhão ZTM-2, de 30mm, tendo utilizado também outra versão com uma torreta SHKVAL equipada com o míssil anticarro BAR’ER, desenvolvido e fabricado pelo escritório de projetos Luch, de Kiev.

A utilização desse armamento foi fundamental já que possibilitou combater outros veículos e fortificações mantendo-se a uma distância segura, permanecendo muitas vezes indetectável, saindo da posição apenas para desferir o ataque, já que o míssil de guiagem a laser tem um alcance efetivo de 5 km e pode destruir alvos em movimento (corrige automaticamente a trajetória após o lançamento). Os comandantes ucranianos entenderam que seus veículos blindados de transporte de pessoal deveriam se tornar veículos de combate de infantaria, capazes de se proteger e engajar alvos estáticos e móveis, e conduzir missões noturnas fazendo uso de modernos sensores e de câmeras infravermelho, já que muitos deslocamentos eram feitos à noite justamente pela segurança e o efeito surpresa proporcionado pela escuridão.

A batalha por Sloviansk continuaria até a primeira metade de julho, quando tropas do Exército fi nalmente entraram na cidade enfrentando forte resistência dos insurgentes, que perderam cerca de 10% dos seus efetivos. Os combates aconteciam nas ruas e em cada esquina, com extensa utilização de helicópteros de ataque e infantes munidos de lançadores de RPG 7 e RPG 22, além de “snipers”. Motivados pela propaganda (e muita vodka), os populares que se uniram aos Homens de Verde (principalmente os locais) estavam imbuídos do que acreditavam ser um forte sentimento patriótico, de que deveriam resistir heroicamente às “tropas invasoras de Kiev”. Esta percepção histórica equivocada, fruto da guerra de informações e propaganda, norteou a maioria daqueles pobres homens e mulheres durante as batalhas urbanas que se seguiriam. Em fuga para Donetsk, a capital do estado que leva o mesmo nome, eles colocaram escudos humanos sobre seus veículos para evitar serem alvos da aviação ucraniana e dos veículos que os perseguiam.

A bandeira da Ucrânia foi novamente hasteada na prefeitura e a cidade foi liberada, para alívio da metade da população que se sentia refém de criminosos e terroristas. Alguns colaboracionistas se esconderam e a grande maioria teve que fugir junto com os rebeldes. Sloviansk voltava a ser parte da Ucrânia, após uma batalha que levou a vida de pelo menos 20 civis e 51 soldados. Esses  números seriam uma pequena mostra do que estava por vir, pois os combates se acirrariam e continuariam por muito mais tempo, bem perto de lá.

Lições aprendidas

Sloviansk serviu para ensinar que as Forças Armadas ucranianas precisavam se reformular e adaptar as velhas doutrinas soviéticas de combate convencional a uma nova realidade, e se transformar para lutar um tipo novo de conflito, uma Guerra Híbrida, com características de combate convencional e irregular num mesmo teatro de operações, contra um inimigo bem armado e treinado, cujas fileiras eram compostas por seus próprios nacionais e de combatentes voluntários e tropas regulares estrangeiras especializadas, que tinham o apoio financeiro, midiático, de propaganda e de inteligência dos seus respectivos governos. Elas aprenderam que o moderno combate urbano é difícil, complexo e impõe aos comandantes a responsabilidade da tomada de decisões rápidas e seguras, que se não forem bem avaliadas podem custar tanto a vida dos seus comandados quanto de civis que vivem na área que eles deveriam proteger e libertar.

Para esses comandantes, ter informações de inteligência confiáveis e em tempo real, fornecidas por diversas fontes e sensores, seria fundamental para uma plena consciência situacional, mas poucas vezes tiveram acesso a isso, pois o Exército Ucraniano não estava preparado para lutar este tipo de conflito, muito menos dentro das suas fronteiras.

Nessas operações, principalmente dentro das cidades, o emprego das forças terrestres teve que ser limitado e a utilização dos helicópteros de ataque com modernos sensores eletro-ópticos, capazes de lançar armamento de precisão se mostrou tão importante quanto os grandes blindados, que tinham pouca liberdade de movimento e ação, sendo facilmente emboscados, ficando frequentemente expostos a armamento lançado de prédios ou de janelas, embora o poder de choque da tropa blindada tenha sido essencial para bloquear as unidades separatistas, e as viaturas sobre lagartas foram as únicas capazes de ultrapassar as barreiras feitas de entulhos colocadas nas principais vias. Uma importante lição apreendida foi a necessidade de ações rápidas, precisas e com poder de destruição limitado ao alvo, evitando o uso de armamento de alta carga explosiva ou de saturação, que aumentam consideravelmente a possibilidade de danos colaterais. Tais ações devem ser executadas por pequenas frações e sempre acompanhadas por atiradores de precisão.

Aliás, os “snipers” mostraram-se uma solução de baixo custo altamente eficaz em áreas urbanas. Outro fator é a utilização de tropas especializadas, de Infantaria Leve ou de Forças Especiais, por tradição preparadas para operar naquele ambiente e que devem estar aptas e equipadas para fazer da escuridão da noite sua maior aliada. Dentro da cidade, a vantagem tática está ao lado do defensor, mas se o atacante estiver usando equipamentos especiais para transformar a noite em dia, poderá mudar as regras do jogo, tendo a oportunidade de decidir o combate antes do sol nascer.

O estopim da crise

A Ucrânia, tendo como principal exemplo e estímulo a vizinha Polônia, e no afã de vir a ser aceita na União Europeia, já negociava um acordo de livre comércio com o bloco europeu como um primeiro passo naquilo do que seria sua guinada final ao Ocidente, dando as costas aos antigos parceiros da ex-União Soviética, sobretudo à Rússia de Vladimir Putin, vista por muitos como imperialista, antidemocrática, oligárquica, corrupta, e uma crescente ameaça à independência e segurança nacional ucraniana.

O presidente do país, Viktor Yanukovich, um oligarca pró-russo acusado de corrupção e que era natural da região do Donbas, onde tinha sua base eleitoral, e que no passado foi pivô da chamada Revolução Laranja – um ensaio da crise que estava por vir – deixou  que a população nutrisse sérias expectativas com a assinatura desse acordo, mas poucos dias antes de confirmá-lo, em novembro de 2013, para consternação geral decidiu-se por apoiar os esforços de Putin na sua União Eurasiana, um bloco econômico formado por ex-integrantes da URSS.

Convocados pela internet, grupos de jovens foram para a principal praça da cidade, a Maidan Nezalezhnosti, para protestar e cobrar explicações do governante. O povo estava decepcionado e se sentia enganado. A cada dia mais pessoas se juntavam ao grupo que não saiu mais de lá. À medida que a praça era lotada por milhares de manifestantes, crescia a repressão. Pessoas de diferentes classes sociais e representativas da sociedade ucraniana, desde trabalhadores assalariados, profissionais liberais, líderes políticos de diversos partidos e religiosos, uma maioria de estudantes e até de membros da comunidade diplomática, sobretudo europeus – e inclusive da América Latina – estavam lá para cobrar o que o governo havia prometido, e este movimento ficou conhecido como EuroMaidan. A violenta reação da polícia foi o combustível que faltava para botar mais fogo no movimento e fazer com que ganhasse repercussão internacional.

Acampados em tendas protegidas por barricadas, os manifestantes resistiram com pedras e coquetéis Molotov por quase três meses, enquanto aguentavam o inverno, com temperaturas que ultrapassavam os 20 graus negativos. Foi quando os primeiros manifestantes começaram a sumir e os primeiros mártires a aparecer, momento que o protesto mudou de rumo para virar uma batalha campal entre repressores e aqueles que lutavam pela liberdade e a democracia. Era um problema de segurança interna e as Forças Armadas não quiseram ser envolvidas, não manchariam suas mãos com o sangue do próprio povo. Foi então que a polícia de elite, a Berkut, conhecida pela corrupção e por realizar trabalhos como mercenários para oligarcas, decidiu desferir o golpe final ao utilizar armamento real, provocando um massacre nas ruas do centro de Kiev. Nos 93 dias de acampamento, morreram 125 pessoas.

O presidente Yanukovich, com receio de ser responsabilizado, decidiu fugir para Rússia, abandonando o cargo de presidente. De acordo com a Constituição, e em resposta à comoção nacional, o Parlamento votou sua destituição e a formação de um governo provisório até as novas eleições. Em público, trocas de farpas e acusações sobre o papel que cada um teve na crise; nos bastidores, uma luta entre a Rússia e o Ocidente era travada pela influência no futuro da estratégica Ucrânia.

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