Nuclear – JUÍZO FINAL

SERGIO DUARTE
Embaixador, ex-Alto Representante das
Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash sobre
 Ciência e Assuntos Mundiais.

A conceituada revista Boletim dos Cientistas Atômicos acaba de publicar a atualização do “Relógio do Juízo Final”, símbolo dos riscos existenciais decorrentes tanto da possibilidade de uso de armas de destruição e massa quanto da deterioração do meio ambiente. O Relógio, que é acertado anualmente desde 1947, foi adiantado em relação a 2022, passando de 100 a 90 segundos para a meia-noite, o que sinaliza aumento do perigo, que já era alarmante, de um desastre nuclear, ambiental ou biológico de proporções planetárias.

A diretoria do Boletim, composta por especialistas entre os quais dez detentores do Prêmio Nobel, explica que o adiantamento do Relógio se deve em grande parte à invasão da Ucrânia pela Rússia e consequente risco de escalada nuclear, mas também à continuada ameaça da crise climática e ao colapso das normas e instituições globais necessárias para mitigar as ameaças decorrentes de novas tecnologias, assim como de fatores biológicos, como a COVID-19.

No comunicado de imprensa publicado no último dia 26 de janeiro, a revista afirmou que o Relógio representa um sinal de alarme para toda a humanidade. “Estamos à beira de um precipício”, prossegue o texto. “No entanto, nossos líderes não estão agindo com rapidez suficiente e nem na escala necessária para assegurar um planeta pacífico e habitável. Esse panorama tem que mudar em 2023 se quisermos evitar a catástrofe. Estamos vivendo diversas crises existenciais. Os governantes precisam ter consciência da crise” .

O principal risco decorre da proliferação nuclear a que as duas principais potências armadas, Rússia e Estados Unidos, vêm se dedicando com crescente intensidade, com o aperfeiçoamento tecnológico de seus arsenais e o  desenvolvimento de novas armas cada vez mais velozes, precisas e mortíferas. Em contraste com as características da corrida armamentista em que ambos em empenharam durante grande parte da Guerra Fria, focada no aumento do número e poderio explosivo de suas armas, esses países deram prioridade ao desenvolvimento de vetores hipersônicos de difícil detecção que tornam ineficazes ou obsoletos os sistemas defensivos do rival.

Ao mesmo tempo, utilizam tecnologias avançadas, como a inteligência artificial, e cibernética e a exploração do espaço exterior para dotar-se de sistemas ofensivos com elevado poder destruidor. Possuem também explosivos nucleares de potência relativamente baixa, cujo uso em operações limitadas poderia provocar uma escalada e levar ao enfrentamento entre ambos com força máxima.  

Dentre os instrumentos bilaterais concluídos entre os dois países nas décadas passadas para o controle de armamentos o único que se encontra ainda em vigor é o tratado New START, de 2010, que limitou o número de ogivas nucleares e vetores de que cada qual pode dispor. Muitas das novas armas, no entanto, não estão cobertas por esse instrumento.

A expressão “armas do Juízo Final” foi usada em 2018 pelo presidente russo Vladimir Putin ao anunciar diversos tipos de armas em fase adiantada de desenvolvimento e que hoje estão sendo incorporadas ao arsenal da Rússia: o míssil balístico Kynzhal, recentemente utilizado na guerra contra a Ucrânia, capaz de atingir velocidades dez vezes superiores à do som e de transportar tanto cargas nucleares quanto convencionais; o míssil de cruzeiro com propulsão nuclear Burevstnik, lançado de terra, de difícil detecção e alcance intercontinental; o míssil hipersônico nuclearmente armado Avangard, e finalmente o drone submarino não tripulado Poseidon, também de propulsão nuclear, para o lançamento de torpedos com cargas atômicas a partir de grandes profundidades, que poderia provocar um “tsunami radioativo” e tornar inabitáveis extensas zonas costeiras. Já está em serviço o míssil balístico Tsyrkon, para combates navais.

Sistema de drone nuclear Poseidon
Nota DefesaNet

Publicamos com exclusividade em 2018, a transcrição do discurso do presidente Vladimir Putin, com os anexos (videos) descrevendo cada equipamento

Vladimir PUTIN – Presidential Address to the Federal Assembly Defense Part I

Vladimir PUTIN – Presidential Address to the Federal Assembly Defense Part II

Por sua vez, os Estados Unidos mantém em constante operação a chamada “tríade” de terra, mar e ar, composta por mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs) baseados em silos terrestres, mísseis balísticos lançados de submarinos (SLBMs) e bombas de gravidade a bordo de bombardeiros estratégicos. Essas forças dispõem de cargas nucleares e são mantidas permanentemente em estado de alerta, preparadas para serem utilizadas a qualquer momento contra possíveis agressores.

A bomba B-83-1, recentemente aperfeiçoada, é capaz de penetrar instalações subterrâneas fortificadas e tem elevado poder explosivo.  O país vem desenvolvendo também o sistema ofensivo conhecido pela sigla LRHW, que utiliza um foguete de dois estágios para lançar um projétil planador a uma velocidade superior a Mach 5.

Ao mesmo tempo procura elevar a eficiência de suas defesas anti-míssil, a principal da quais é o GMD (Ground Based Midcourse Defense), baseado no Alaska e na Califórnia, com sensores em terra, no mar e em órbita terrestre, capaz de destruir mísseis balísticos ofensivos na fase terminal de suas trajetórias. A Marinha norte-americana projeta colocar em operação novos projéteis para destruição de mísseis a partir de 2025, a serem disparados de navios de superfície e de submarinos. Existe igualmente um sistema altamente móvel, de alcance curto e médio denominado THAAD (Terminal High Altitude Area Defense).   

Sistema de Míssil Hipersônico Kinzhal

A China tem feito esforços consideráveis para dotar suas forças armadas de maior poderio, inclusive nuclear. Os sistemas ofensivos nucleares chineses estão em sua quase totalidade baseados em terra e segundo observadores ocidentais o país deverá quintuplicar o número de ogivas e lançadores até 2035. Outra área de expansão militar chinesa é a frota naval, que já é a mais numerosa do mundo e à qual vêm sendo continuamente acrescentados submarinos e porta-aviões com propulsão nuclear. Pequim tem também demonstrou preocupação com o anúncio da parceria entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália para dotar este último país de uma força de submarinos de propulsão nuclear, embora convencionalmente armados. A rivalidade sino-americana no oceano Pacífico tende a crescer nos próximos anos.

O Reino Unido anunciou há dois anos a intenção de aumentar de um terço o número de mísseis nucleares a bordo de seus submarinos.

Entre as atividades dos países possuidores de armas atômicas não reconhecidos pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares devem-se igualmente mencionar os esforços da Índia e do Paquistão para a modernização de seus arsenais nucleares e os avanços realizados nos tempos mais recentes pela Coreia do Norte no desenvolvimento de mísseis de curto e longo alcance, inclusive intercontinentais. Os recentes testes norte-coreanos com esses mísseis levaram setores de opinião no Japão e na Coreia do Sul a advogar a aquisição de capacidade nuclear própria.

Outro aspecto preocupante é o aumento da capacidade iraniana de enriquecer urânio sem que até o momento tenha sido encontrada uma solução para revitalizar o acordo conhecido pela sigla JCPOA.

Enquanto isso, o conjunto de normas e instituições multilaterais elaboradas desde os primeiros anos da Guerra Fria para evitar a proliferação do armamento nuclear a um número maior de países e para buscar progressos no sentido do desarmamento e controle de armamentos mostra-se inadequado para lidar com os desafios contemporâneos.  

Primeiro míssil hipersônico chinês DF-17 apresentado em 2019

Parece haver uma lógica inexorável segundo a qual cada avanço tecnológico por parte de uma potência leva a outra a esforçar-se por obter novos recursos bélicos para anular a vantagem do rival e por sua vez colocar-se em situação vantajosa, que durará até que o adversário a alcance ou ultrapasse. A fim de quebrar esse círculo vicioso e evitar a constante aceleração da competição armamentista é essencial retomar o diálogo entre os países armados e iniciar imediatamente entendimentos bilaterais e globais que levem à negociação de instrumentos bilaterais e globais para a redução e eliminação do perigo nuclear, que exige em última análise medidas eficazes e irreversíveis de desarmamento.

No atual ambiente internacional de incerteza, desconfiança e temor, e em meio a uma guerra que já se prolonga por quase um ano, o recrudescimento da rivalidade e hostilidade entre países nuclearmente armados torna ainda mais urgente buscar avanços significativos para conter e reverter a corrida armamentista, trazendo estabilidade e segurança para toda a comunidade internacional. Esta tem o dever de engajar-se decisivamente nesse esforço. A humanidade não pode resignar-se a aguardar a chegada do Juízo Final, quando os ponteiros do Relógio marcarem a meia-noite.

Compartilhar:

Leia também

Inscreva-se na nossa newsletter