Errou quem, diante da posição tíbia da diplomacia brasileira na carnificina em curso na Síria, praticada pela ditadura dos Assad, pensou tratar-se de "um ponto fora da curva", algo a não ser considerado. Por esta visão benevolente e otimista, estaria valendo o firme discurso da presidente Dilma Rousseff, antes e logo depois da posse, em defesa dos direitos humanos.
Pois a confirmação de que o "ponto fora da curva" eram aquelas declarações veio em seguida, com a mesma leniência aplicada ao caso da Líbia, no reconhecimento do Conselho Nacional de Transição (CNT) como representante do país, na retirada de cena do ditador Muamar Kadafi, considerado "amigo e irmão" pelo ex-presidente Lula. A explicação para a tibieza, dada pelo chanceler Antonio Patriota, é que o Brasil "reconhece estados, não governos". Jogo de palavras. Ficou visível a dificuldade de Brasília para admitir o fim de um ditador que fez parte de uma constelação de autocratas afagados pelo lulopetismo, a começar por Fidel Castro e Hugo Chávez, em nome de um antiamericanismo fossilizado. Entende-se, nesta questão, por que o governo Dilma é de "continuidade". Tudo indica que será mantido o truque de se conceder ao PT o regozijo de uma diplomacia terceiro-mundista de republiqueta de banana, para se tentar debelar uma inflação que exige uma política econômica minimamente séria, à altura das complexidades de uma das dez maiores economias do mundo.
Nada abala o Itamaraty dos companheiros. O fato de países árabes como a Arábia Saudita e Kuwait terem retirado os embaixadores de Damasco não foi levado em conta, por exemplo. São tantos os melindrosos cuidados de Antonio Patriota para afinal reconhecer um novo governo na Líbia que transmite a sensação de que o melhor, para o Itamaraty de hoje em dia, seria não precisar tomar esta decisão. Não por motivos externos – todos escancaradamente a favor do reconhecimento do CNT -, mas devido à grande influência companheira interna.
EDITORIAL – O GLOBO
27 Agosto 2011
O Itamaraty já foi profissional, e ganhou fama mundial por isso. Hoje, não há condições de se repetir o reconhecimento do novo governo de Angola, no final de 1975, instituído pela organização guerrilheira marxista MPLA, com apoio também de Cuba. Por entender quais eram os verdadeiros interesses nacionais, o governo militar de Ernesto Geisel, com a assessoria do então competente Itamaraty, foi o primeiro a reconhecer o governo de Agostinho Neto, apoiado, na luta contra a organização de Jonas Savimbi, Unita – financiada pelos EUA e o apartheid sul-africano -, por tropas cubanas. Se Geisel fosse se guiar pela própria ideologia, jamais ouviria conselhos de embaixadores como Ítalo Zappa e Antônio Azeredo da Silveira (Silveirinha), então ministro, para dar aquele passo, do qual resultou grande influência brasileira no país africano, com dividendos econômicos colhidos até hoje. Ficar do lado de Fidel Castro não o impediu de tomar a decisão certa sobre Angola, em defesa daquele frágil governo, e não um "Estado", ainda inexistente. Tanto que, formado o governo, começou longa guerra civil.
Hoje, seria impossível. A alergia "anti-imperialista" no estilo Unctad contaminou a política externa, atrofiou tanto a capacidade de análise do Itamaraty que a lerdeza na tomada de decisões sobre de que lado se deve estar na Primavera Árabe coloca o Brasil com a mesma estatura do irrelevante Hugo Chávez, para quem Kadafi continua no poder.