Operação Brasil – U-507 o Lobo Solitário ataca

Luiza Villaméa
Revista Brasileiros
http://brasileiros.com.br

 


Acostumados a atacar em grupo (wolf pack), submarinos nazistas estiveram prestes a desencadear uma ofensiva do gênero contra o Brasil, em junho de 1942. A operação acabou abortada por Adolf Hitler, como revela livro recém-lançado pelo tenente-coronel Durval Lourenço Pereira. Mesmo assim, dois meses depois, a costa do Nordeste não escapou de uma incursão nazista. Um único submarino afundou cinco navios e matou mais de 600 pessoas, provocando a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial

 

Os passageiros do Baependy tinham acabado de jantar quando o navio foi atingido por dois torpedos. Cada um carregava uma ogiva com 280 kg de TNT. Um clarão alaranjado iluminou o céu. Não deu tempo de pedir socorro. Com 322 pessoas a bordo, o Baependy afundou pela proa, formando um imenso redemoinho, próximo à costa de Sergipe. O capitão de corveta Harro Schacht, comandante do submarino U-507, da Alemanha nazista, acompanhou o caos a pouca distância. Não socorreu nenhuma vítima do ataque que acabara de perpetrar. E continuou na espreita, submerso. Tinha visto luz ao longe. Era outro navio que se aproximava, naquela noite de 15 de agosto de 1942. Menos de duas horas depois, Schacht mandou para o fundo do mar 131 passageiros e tripulantes da outra embarcação, o vapor Araraquara.

Por mais dois dias, o U-507 continuou sua trajetória destrutiva pela costa brasileira. Só se afastou do litoral depois de afundar cinco navios, além de uma barcaça, matando mais de 600 pessoas. Na Marinha de Adolf Hitler, os submarinos costumavam atacar em bando, como lobos em alcatéia.

Era assim que teriam agido em junho de 1942, se Hitler não tivesse cancelado a Operação Brasil, que previa o bombardeamento de embarcações e portos brasileiros. Dois meses depois, no entanto, o U-507 atuou como Lobo Solitário, segundo descrição do tenente-coronel Durval Lourenço Pereira no livro Operação Brasil – O Ataque Alemão que Mudou o Curso da Segunda Guerra Mundial, lançado recentemente pela Editora Contexto.

“O comandante do U-507 tinha ficado uma semana sem ver um único navio, nem aliado, nem inimigo, nem neutro, quando pediu autorização para realizar manobras livres na costa brasileira”, conta Pereira, referindo-se ao período em que o submarino patrulhou a Cintura do Atlântico, o trecho onde é menor a distância entre a América do Sul e a África. “Seus ataques junto ao litoral brasileiro chocaram o País, até porque corpos de homens, mulheres e crianças começaram a chegar às praias do Nordeste.

Se não fosse Harro Schacht, o Brasil não teria entrado na guerra nem aberto efetivamente bases aéreas e navais. Sem ele, a maré da Segunda Guerra Mundial não teria virado para os Aliados na ocasião em que virou.”

Diretor do documentário O Lapa Azul, sobre pracinhas na Itália, Pereira mergulhou na guerra submarina quase por acaso. Oficial do Exército, ele escrevia um livro sobre a Força Expedicionária Brasileira (FEB), quando começou a pesquisar os episódios que provocaram a entrada do Brasil na guerra. A ideia era citar os ataques do submarino alemão em alguns parágrafos do livro sobre a FEB. À medida que reunia informações, os parágrafos viraram capítulos.

Depois, se transformaram no livro sobre a guerra submarina no litoral brasileiro. Desde o dia 31 de janeiro deste ano na reserva, o tenente-coronel de 47 anos prepara-se agora para voltar à pesquisa original, sobre a FEB, na cidade de Juiz de Fora (MG), onde vive com a mulher, a esteticista Juliane, e a filha Christiane. Ele falou à Brasileiros em São Paulo, no Centro Histórico Overlord, que combina livraria com espaço de debates.

O tenente-coronel Durval Pereira, que pesquisa a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e escreveu Operação Brasil – Foto: Luiza Sigulem

Brasileiros – O que foi a Operação Brasil?

Durval Lourenço Pereira – Foi um plano para atacar, com submarinos, navios e portos brasileiros, de Belém até Santos, em junho de 1942. Tratava-se de uma resposta da Kriegsmarine – como se chamava a Marinha alemã durante o regime nazista – ao bombardeio feito por um avião que saiu de Fortaleza atrás de um submarino italiano, o Barbarigo.

O Barbarigo, por sua vez, não tinha disparado contra uma embarcação brasileira?
Ele atacou o navio mercante Commandante Lyra, próximo a Fernando de Noronha. Interessante é que o comandante do Barbarigo, Enzo Grossi, havia nascido em São Paulo. Depois, foi para a Itália de seus antepassados, se alistou na Marinha e, mais tarde, voltou para atacar navios brasileiros.

Em que situação o capitão Enzo Grossi atacou? Pelo litoral norte do Brasil passava uma rota de navios petroleiros. Eles levavam combustível do porto de Trinidad, na América Central, até Freetown, em Serra Leoa, na África. Era nesse trajeto que atuavam os submarinos do Eixo, tanto os alemães quanto os italianos. Quando passou por essa rota, a caminho dos Estados Unidos, o Commandante Lyra foi atacado pelo Barbarigo, em maio de 1942.

Era um cargueiro?
Sim. Levava café para os Estados Unidos quando foi canhoneado pelo submarino. Não chegou a ser afundado, mas a tripulação foi obrigada a abandonar o navio. Dois tripulantes morreram. Assim que a notícia chegou à base de Fortaleza, no Ceará, um avião americano decolou atrás do submarino italiano. Era um avião com tripulação mista, brasileira e americana que bombardeou o Barbarigo. O ataque saiu com destaque na mídia, inclusive no The New York Times.

O que dizia?
A notícia era sobre um avião decolando do Brasil para atacar um submarino do Eixo. Não sabiam qual submarino, mas era o Brasil atacando. E os alemães não tinham uma opinião muito positiva sobre os brasileiros. Para eles, foi uma afronta. O alto comando alemão planejou, então, sua vingança. Arquitetou a Operação Brasil como resposta ao ataque a um submarino que nem era alemão. Era italiano.

A Operação Brasil acabou não acontecendo. Qual o papel de Adolf Hitler nessa história?
A mídia brasileira sempre colocou que Hitler tinha ordenado uma ofensiva contra o Brasil. Não foi bem assim. A Marinha de guerra alemã planejou a ofensiva e pediu autorização para seguir em frente. Hitler, por várias vezes, botou freios nesse plano. Primeiro, mandou confirmar se o avião que atacou o submarino do Eixo tinha partido realmente de uma base brasileira. Depois, autorizou, com uma condição: o Ministério das Relações Exteriores precisava ser consultado.

O que aconteceu?
A operação foi desencadeada. No final de junho, uma dezena de submarinos partiu de portos franceses ocupados pelas forças nazistas em direção ao Brasil. Eles estavam no trajeto quando a operação foi cancelada. Pelas pesquisas que fiz, ao saber que os submarinos navegavam rumo ao Brasil, Joachim von Ribbentrop, o ministro das Relações Exteriores, avisou Hitler que tinham lançado a operação sem consultá-lo. E Hitler mandou cancelar.

Para não criar um novo foco da guerra?
Exatamente. O Brasil era neutro na época. Colaborava de certa forma com os Estados Unidos, tinha rompido relações diplomáticas com a Alemanha e a Itália, mas não havia declarado guerra ao Eixo. Hitler não queria empurrar o Brasil para o lado aliado e, com ele, a Argentina e o Chile. Esses dois países mantinham relações diplomáticas e comerciais tanto com a Alemanha quanto com a Itália.

Por que os americanos estavam em Fortaleza?
Mesmo antes de os Estados Unidos entrarem na guerra, existiam as chamadas patrulhas da neutralidade, em uma zona marítima de segurança no Atlântico Sul. Essa zona era patrulhada por navios americanos, que usavam bases brasileiras… Quer dizer, usavam portos brasileiros. Muito se fala de que o Brasil cedeu suas bases… Na verdade, a única base naval que o Brasil possuía em 1942 era a do Rio de Janeiro. Também não tinha aeroporto. Só o Santos Dumont, que havia sido inaugurado em 1936, mas as obras só terminariam em 1947.

E a base aérea de Fortaleza?
Era pista de terra. Coisa rústica, improvisada. Um local onde o avião descia e depois subia. Não tinha oficina nem infraestrutura logística para ser chamada de base. Os americanos estavam lá porque o Brasil queria armamento e os Estados Unidos estabeleceram que só entregariam material bélico quando as tripulações estivessem treinadas.

Tinha queda de braço?
O tempo todo. Os militares brasileiros queriam ficar do lado aliado, mas não queriam entrar na guerra tutelados. Em relação à construção das bases aéreas, as obras eram constantemente solapadas. A simples limpeza de uma pista de pouso em Natal durou cinco meses.

E os treinamentos?
O ataque ao Commandante Lyra aconteceu em maio. Só em junho de 1942 a primeira equipe brasileira estava treinada. Ou seja, não havia aviões da Força Aérea Brasileira para esse tipo de operação. O País não tinha bombardeiro. Foi mais uma bravata do ministro da Aeronáutica da época, Salgado Filho. Existiam aviões com tripulação brasileira em treinamento, sob controle operacional americano.

Quando começaram os ataques aos navios brasileiros?
A partir de fevereiro de 1942, submarinos do Eixo, tanto alemães quanto italianos, começaram a atacar navios brasileiros, no trajeto de ida e de retorno para os Estados Unidos. Só que a guerra começou a mudar o seu eixo. No Norte da África, o general alemão Erwin Rommel passou a vencer, ameaçando conquistar o Cairo e fechar o Canal de Suez.

No Leste Europeu, as forças do Eixo ameaçavam tomar Stalingrado e os campos de petróleo do Cáucaso. O centro de gravidade da guerra começou a se mover para o Golfo Pérsico, para o Leste Europeu, para o Norte da África.

A rota do Mediterrâneo já estava fechada.
As forças do Eixo tinham supremacia na região. Um comboio aliado que tentou chegar à ilha de Malta sofreu severas baixas. Cruzadores e porta-aviões foram destruídos. Alguns navios conseguiram chegar a Malta, mas logo tornou-se evidente aos Aliados que não compensava.

A outra rota, a do Ártico, que levava material bélico para os russos, também estava fechada. A solução para suprir a frente aliada, tanto na Rússia quanto no norte da África, seguia uma rota marítima passando pelo litoral brasileiro, pelo estreito intercontinental entre o Brasil e a África. Houve então essa maior atividade submarina alemã na região. Os navios brasileiros começaram a ser afundados cada vez mais próximo do litoral.

Quantas embarcações brasileiras foram atingidas até o começo de agosto de 1942?
Quinze. Teve navio brasileiro atacado no Mediterrâneo, em 1941, pela aviação alemã. No trajeto para os Estados Unidos, mais de uma dezena de navios brasileiros foram afundados. E eram os melhores navios da frota nacional, os mais modernos e com maior capacidade de carga.

Eram todos cargueiros?
Teve um que era de carga e de passageiros também, que foi afundado perto de Nova York, com um grande número de vítimas brasileiras civis. Tripulantes e passageiros. Era o Cairu. Cerca de um terço da frota mercante brasileira tinha sido destruído no primeiro semestre de 1942. O presidente Getúlio Vargas cancelou então o tráfego brasileiro para os Estados Unidos.

Nesse cenário, qual a importância da Cintura do Atlântico?
A Cintura Atlântico é o espaço geográfico com a menor distância entre o Extremo Leste da América do Sul e o Oeste do continente africano, do Rio Grande do Norte a Freetown. Era nesse trecho que os submarinos do Eixo atacavam porque os navios mercantes aliados e os navios de guerra tinham obrigatoriamente que passar por ali.

Que tipo de precaução os navios de cabotagem do Brasil, com carga e passageiros, começaram a tomar?
O Brasil usou, então, o seu conhecido jeitinho. Os navios mercantes e de passageiros nas rotas de cabotagem receberam instruções para navegar o mais próximo possível da costa e reduzir ao mínimo as luzes, para não chamar a atenção de um possível submarino que estivesse rondando a área. A principal precaução, colocar marcas de neutralidade, não foi tomada.

Quais marcas?
Pintar no casco do navio uma bandeira enorme e o nome do país. À noite, o navio devia estar bem iluminado. A bandeira do mastro também precisava estar iluminada, embora a bandeira pintada no casco fosse mais visível.

São normas internacionais ou foram determinadas pelos alemães?
O governo alemão avisou os países que não haviam rompido relações com o regime nazista para tomarem essas precauções. Avisou o Uruguai, a Argentina e o Chile. Não avisou o Brasil.

O Brasil fez o contrário. Mandou as embarcações diminuírem a iluminação.
E mandou navegar perto da costa. Só que tinha um pequeno problema. Hoje, para fins de segurança, o mar territorial do Brasil é de 12 milhas. O mar de 200 milhas é de exploração econômica. Na época, o mar territorial era de apenas três milhas. A marca era baseada em experiências antigas, sobre onde alcançava o tiro de canhão. Enfim, era muito pouco, cerca de 5,6 km. Pelas próprias características do litoral, pelos arrecifes, os navios não tinham condições de navegar todo o tempo dentro do mar territorial. Quando saíam, eram atacados.

Os navios Baependy e Araraquara foram surpreendidos nessa condição?
E também o Anibal Benévolo, o Itagiba e o Arará. Foram cinco navios mercantes e de passageiros atacados pelo submarino U-507, do comandante Harro Schacht, entre os dias 16 e 17 de agosto de 1942. Eles navegavam junto à costa, com pouca iluminação, de Salvador para Recife, quando foram avistados pelo U-507.

Em nome da Alemanha nazista, o submarino U-507 realizou quatro patrulhas para afundar navios Aliados. Na terceira, atacou o Brasil – Foto: wrecksite.eu

Esse submarino, que você chama de Lobo Solitário, estava ligado à Operação Brasil?
Não. Os submarinos da Operação Brasil partiram no final de junho e receberam ordem de voltar atrás. Os submarinos alemães costumavam atacar em grupo, como matilhas de lobo. O U-507 atuava sozinho. Atacou os navios brasileiros em meados de agosto. Havia sido designado para operar na Cintura do Atlântico.

Como se sabe disso?
Há uma entrada no diário de guerra da Kriegsmarine, do dia 14 de agosto, dizendo que U-507 tinha sido direcionado para interceptar a navegação aliada que partia do porto de Georgetown, na Guiana Francesa, em direção à Cidade do Cabo, na África do Sul. Isso no dia 14. E no dia 15 o U-507 começou a atacar no litoral de Alagoas e da Bahia.

O capitão tinha autorização para atacar na costa brasileira?
A missão do U-507 não era investir contra navios brasileiros. Ele tinha uma autorização genérica, para neutralizar navios que estivessem indo ou retornando dos Estados Unidos, que estivessem em alto-mar. Está registrado no diário de bordo do U-507. O capitão Harro Schacht pediu autorização para realizar manobras livres no Brasil. Partiu dele a iniciativa de vir para o Brasil.

Manobras livres?
Ele pediu para operar no Brasil. O comando alemão demorou um tempo para responder, mas foi claro: “Manobras livres autorizadas. Vá para Recife”. Por quê? Porque Recife era um ponto do território nacional onde os navios aliados com destino à Cidade do Cabo reabasteciam. Ou seja, a missão dele de bloqueio da navegação aliada no extremo oriental continuou inalterada. Só que ele não foi para Recife. Ele chegou a atacar navios brasileiros a 840 km de Recife, perto de Salvador.

Como foram esses ataques?
Na linguagem militar, existe o termo “Fim do Crepúsculo Vespertino Náutico” (FCVN). É quando acaba a claridade. Então, faltando pouca coisa para o FVCN, o U-507 avistou o Baependy, o primeiro barco, no final da tarde de 15 de agosto. Por uma diferença de 15 minutos, o Baependy poderia ter passado despercebido, pois a noite estava chegando.

O Baependy era um navio de passageiros?
Era um paquete, trazia cargas e passageiros. Ele levava um grande contingente de um grupo de artilharia do Exército transferido para Olinda. Os militares estavam com suas famílias. Havia mulheres, crianças. Naquele tempo, não existia navio para transporte de tropas. Se hoje o Brasil tem carências, imagine nos anos 1940. Enfim, ia todo mundo no navio. A outra metade desse grupo de artilharia vinha em outro navio, o Itagiba, que também foi atacado pelo U-507 no dia 16. Enfim, Harro Schacht mandou para o fundo do mar todo um grupo de artilharia do Exército brasileiro. Nos ataques dos dias 15 e 16, mais de 600 pessoas perderam a vida.

No livro, você trabalha com a hipótese de o capitão estar querendo mostrar serviço. Era um homem de 35 anos, que já tinha afundado nove navios e estava atrás de ação.
Ele já tinha ganhado uma condecoração por bravura, a Cruz de Ferro de Primeira Classe, por causa de uma incursão no Mar do Caribe, poucos meses antes. Era um submarinista famoso. E estava no mar havia um mês, sem disparar um único torpedo. Em patrulha na Cintura do Atlântico, ficou uma semana sem ver um único navio, nem aliado, nem inimigo, nem neutro. Nada. E recebia mensagens criptografadas sobre as ações de outros submarinos.

Por isso resolveu mudar de área?
Há várias possibilidades para sua decisão de rumar para o Brasil. Uma delas é que ele queria justificar a viagem. Voltar para casa com todos os torpedos não ficava bem. Outra possibilidade, que julgo bastante provável, é que ele queria realmente afundar o maior número de navios que pudesse encontrar. No diário do U-507, ele registrou que ia para a costa brasileira, pois lá estavam os navios neutros e não os inimigos. Procurava aplicar um princípio da guerra submarina alemã, que é afundar o maior número de navios, com o mínimo de perda.

Então ele era bem covarde. Não queria atacar quem estava em guerra. Queria atacar um neutro, não importa se fosse de passageiros.
Ele queria aumentar a tonelagem de navios afundados. Eu não poderia chamá-lo de covarde porque entre os comandantes de submarino da Kriegsmarine ele ocupava uma posição de destaque. Durante a guerra, a maior parte dos navios afundados por submarinos alemães coube a um reduzido número de submarinistas. Muitos passaram a guerra toda sem neutralizar nenhum navio.    

Em uma de suas investidas, Harro Schacht esperou um navio recolher náufragos de uma embarcação que ele tinha atacado, para torpedear de novo. Isso não é crime de guerra?
É um ato covarde, sem sombra de dúvida. Porque ele esperou os náufragos do Itagiba serem recolhidos pelo Arará para lançar os torpedos. Harro Schacht tinha um profundo desprezo pela vida humana, e principalmente pelo brasileiro. No diário de guerra, ele se referiu aos brasileiros como “os não brancos”, “os mestiços”.

Ele chegou a ter contato direto com algum brasileiro?
No litoral baiano, perto de Ilhéus, ele abordou a tripulação de uma barcaça, a Jacyra. Mandou os tripulantes, que também chamou de mestiços, abandonarem o barco. Depois, pegou parte dos gêneros alimentícios do carregamento e afundou o veleiro com cargas explosivas. Era uma embarcação pequena, não valia a pena gastar um torpedo. No relatório sobre esse episódio, ele também demonstrou desprezo total pelo brasileiro.

O preconceito era só dele?
Nos arquivos da Kriegsmarine, encontrei o mesmo desprezo. No plano da Operação Brasil está escrito que “devemos considerar a hipótese de que, se o submarino conseguir entrar na famosa baía do Rio de Janeiro, isso provocará um forte efeito moral na população mestiça brasileira”. Então, olhavam o brasileiro como uma espécie de subumano.

O U-507 foi afundado seis meses depois desses ataques, por um avião americano. Como foi possível acessar os diários?  
Cada saída do submarino para o mar era chamada de patrulha de guerra. O U-507 realizou, ao todo, quatro patrulhas de guerra. Ao final de cada patrulha, os diários de guerra ficavam no comando naval alemão. A patrulha que provocou esse estrago todo no Brasil foi a terceira. Quando começou sua quarta e última patrulha, começou um diário do zero. O diário da terceira patrulha tinha ficado no comando naval.

Como você teve acesso ao diário?
Por meio de um amigo, capitão da Marinha americana da reserva, que cedeu as cópias do diário de guerra do U-507. Os arquivos da Kriegsmarine foram capturados praticamente intactos após a guerra. Ou seja, pode-se contar a história do conflito naval do ponto de vista alemão com bastante exatidão.

O capitão Harro Schacht foi premiado por atacar navio de passageiro?
Os navios considerados beligerantes pelo Eixo, fossem eles militares ou civis, eram interceptados. A Kriegsmarine rompeu com o Protocolo de Londres, que fixava certas regras. Antes, para afundar um navio mercante, primeiro tinha de avisar. Depois, deixar a tripulação e passageiros desembarcarem. Só depois, atacava.

Ele não fez nada disso.
Mas também não recebeu nenhuma condecoração pela terceira patrulha, a que afundou cinco navios, a começar pelo Baependy. Por outro lado, ele representou algo difícil de se ver no universo militar. Em geral, as grandes decisões de uma guerra são tomadas pelos líderes militares, mas a iniciativa para o ataque ao Brasil, que mudou o rumo da guerra, partiu da cabeça de uma só pessoa. De um capitão de corveta.

Qual foi a reação do presidente Getúlio Vargas?
Vargas tinha sofrido um acidente grave, de carro, na Praia do Flamengo, em maio. Ele fraturou a mandíbula, quebrou a perna, a mão. Ficou imobilizado na cama, sem poder falar. Na época, o processo para imobilizar o maxilar era traçar fios metálicos em torno do osso. Então, no momento dos ataques, Vargas ainda estava se recuperando. Mesmo assim, ele abriu as portas do Palácio da Guanabara e convocou o povo para pedir a guerra. Apareceu sorrindo, bem trajado, de terno e gravata, mas quem reparar bem nas fotografia nota que ele está apoiado o tempo todo em um corrimão.

A entrada do Brasil na guerra foi mesmo diretamente relacionada a esses ataques?
Dificilmente o Brasil entraria na guerra se não tivessem ocorrido ataques de tamanha gravidade junto à nossa costa, com morte de homens, mulheres e crianças, com corpos chegando às praias. Os afundamentos anteriores, no Caribe, na costa dos Estados Unidos, tinham ocorrido na zona de guerra. Existia o perigo. Na costa brasileira, foi um choque tremendo. Se não fosse Harro Schacht, o Brasil não teria entrado na guerra. Sem ele, a maré da Segunda Guerra Mundial não teria virado para os Aliados na ocasião em que virou.

Como?
O brasileiro dá pouco valor à própria participação na Segunda Guerra Mundial, mas o Brasil foi importante para a virada da guerra em favor dos Aliados. Como? Com a construção de bases aéreas e navais, fechando a Cintura do Atlântico, dando segurança ao transporte de navios a diversos portos e propiciando que os aviões alcançassem rapidamente o destino. Colaborando também com a Força Expedicionária Brasileira, a FEB. Se foi modesta dentro do cômputo geral da guerra, para o Brasil foi um esforço tremendo.

Qual o ponto fundamental?
Desde o começo, os militares queriam colaborar com o esforço de guerra, mas no Exército, na Marinha, na Aeronáutica, a situação era de penúria. Já os americanos, convencidos de que a alta cúpula estava cercada de militares germanófilos, ficavam com medo de fornecer material bélico para os brasileiros. Quando o U-507 atacou o Brasil e o presidente Getúlio Vargas declarou guerra, acabou a quebra de braço.

O que aconteceu exatamente?
A colaboração militar começou a fluir. As bases aéreas e navais começaram a ser construídas de fato. Uma delas, a Parnamirim Field, no Rio Grande do Norte, tornou-se a maior base aérea americana construída fora dos Estados Unidos. No auge do conflito, era o mais congestionado aeroporto do planeta, com aviões pousando e decolando a cada três minutos. Ficou conhecida como o Trampolim da Vitória. Com isso, a Cintura do Atlântico foi fechada aos submarinos e embarcações do Eixo. A liberdade de manobra que eles tinham na região foi por água abaixo.

Antes desse livro, você dirigiu o documentário O Lapa Azul, sobre pracinhas da FEB. Como um oficial do Exército, uma força terrestre, se envolve com guerra submarina?
Jamais pensei escrever um livro sobre guerra submarina. Sou, como você disse, de uma força terrestre. Mas estava escrevendo sobre a FEB, e senti necessidade de entender melhor a entrada do Brasil na guerra. Navios brasileiros foram atacados no litoral? Por quem? Com ordem de quem? Comecei a procurar informações em arquivos estrangeiros. Elas foram se avolumando. Parei de escrever o livro sobre FEB e comecei a escrituração do livro Operação Brasil.

Você obteve um período de dispensa do Exército para trabalhar na pesquisa?
Sou tenente-coronel do Exército da reserva. Entrei para a reserva no dia 31 de janeiro deste ano.

Por quê? Quantos anos você tem?
Quarenta e sete. Mas desde os 17 anos, eu já estava com um fuzil, tirando guarda, tendo instrução, dando tiro, em uma escola militar. Trabalhei, portanto, 30 anos. Quando comecei esse livro, eu estava na ativa. De 2010 a 2013, trabalhei no Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Quando tinha tempo livre, fazia pesquisa, trabalhava em casa. Por estar na ativa, não tinha a liberdade que um pesquisador convencional tem para se deslocar. Daí, pesquisei nos arquivos brasileiros. Fora do Brasil, contratei pesquisadores estrangeiros. Do meu bolso. Não tive nenhum centavo de apoio oficial, até porque foi uma ideia minha.

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