Redes sociais no Exército: normatizando para permitir

Cel Carlos Frederico Gomes Cinelli

O Comando do Exército publicou recentemente uma Portaria destinada a orientar a criação e o gerenciamento das mídias sociais no âmbito da Força. A iniciativa ganhou relevância, sobretudo porque virou notícia, repercutindo em diversos veículos de comunicação de forma positiva.

Uma das razões para a criação da medida foi o entendimento de que o uso indiscriminado das redes sociais por militares da ativa gera a falsa sensação de mistura entre a opinião pessoal do usuário e aquela consolidada pela Instituição, o que, em alguns casos, fere os basilares princípios da hierarquia e da disciplina.

A situação não poderia ficar sem resposta, sob o risco de a própria representatividade da Instituição perder consistência e ser diluída em meio a falsos entendimentos sobre os limites entre o foro pessoal e o corporativo. Em última análise, a normatização visa proteger e fortalecer a imagem do Exército Brasileiro como um ente monolítico, visto que qualquer instituição é percebida pelo somatório das condutas individuais de seus membros.

Os exemplos mais visíveis de utilização inapropriada das redes são aqueles nos quais o militar da ativa, identificando-se em seu perfil por meio de sua patente, exterioriza apoio ou tece críticas a autoridades, ou mesmo engaja-se publicamente em discussões com superiores hierárquicos. Porém, outras disfunções identificadas também serão detidas pela norma, tais como: perfis de organizações militares sem padronização da nomenclatura ou sem autorização oficial; perfis de pessoas físicas (comandantes, chefes, diretores) sendo utilizados como se fossem institucionais; mídias sociais que, vocacionadas a determinada finalidade, são utilizadas fora de seus propósitos.

Ao contrário do que possa parecer, a Portaria, de forma clara, transparente e orientadora, objetiva que os militares possam fazer o uso livre e consciente de suas redes sem ferir os preceitos da Força. Podemos aqui lembrar que a maioria das empresas mundo afora não emite sequer uma cartilha sobre o tema, o que acaba por deixar seus empregados bem mais expostos a críticas e julgamentos – cujo ponto de partida, por vezes, é o escrutínio de seus perfis pessoais pelo próprio empregador.

A bem da verdade, as empresas não mantêm em seus quadros pessoas que se utilizem de seus cargos institucionais para emitir pareceres públicos que aparentem emanar de seus patrões. Muito menos veremos, por exemplo, um funcionário de certa marca usar suas redes para fazer propaganda de uma concorrente. Há que se manter um mínimo de coerência e de observância aos princípios e valores organizacionais. Não é nada, além disso, o que se exige no mundo corporativo. Por que, afinal, seria diferente no Exército Brasileiro, Instituição reiteradamente apontada como uma das mais confiáveis do País?

Além de dar conta de um campo prático e objetivo, outro propósito da normatização situa-se na esfera da percepção subjetiva, que por sua vez correlaciona-se aos padrões de organização do pensamento e de comunicação de cada uma das diferentes gerações de indivíduos (X, Y, Z, Alfa). Nesse sentido, não é anormal que distintas visões de mundo produzam interpretações diferentes de conceitos que, em suas origens, foram moldados sob uma perspectiva de imutabilidade – como é o caso dos pilares da hierarquia e da disciplina.

Segundo sociólogos, a Geração X (os nascidos entre os anos 1960-80) encara a hierarquia como total obediência. Já os pertencentes à Geração Y (entre 1980-1995, aproximadamente) veem a hierarquia como algo a ser respeitado, embora não necessariamente merecido. Já para os nativos da Geração Z (1995 até 2010), hierarquia pressupõe legitimação. É justamente a Geração Z que compõe o estrato mais numeroso da estrutura de pessoal do Exército, graças ao massivo ingresso por intermédio do serviço militar obrigatório e à recente expansão da admissão de jovens por meio de contratos temporários.

Além de serem nativos digitais, outras características dos “Z” são o pensamento não linear, a distração constante e a mentalidade de curto prazo, ou seja, traços catalisadores de conflitos internos (dissonâncias cognitivas) entre opiniões pessoais e posicionamentos da corporação. Ora, o militar da ativa sabe que manifestar-se publicamente sobre assuntos de natureza político-partidária é transgressão à disciplina. Talvez o dado novo, para além da discussão sobre o propósito de uma rede social, seja o que se entende por “publicamente”. Mas essa é uma outra questão.

Atento às rápidas transformações do nosso tempo, e motivado pela genuína preocupação em operar adequadamente, como ente uno e indivisível, num ambiente informacional inerentemente fragmentado, o Exército Brasileiro mostra que compreende o ciberespaço e sua função socializadora: ao mesmo tempo em que fortalece a noção de “instituição de Estado” — a propósito, uma das principais diretrizes do atual Comandante do Exército —, mostra o caminho para promover a coletivização e o fortalecimento dos laços entre a corporação e as identidades individuais que a compõem. De um lado, impede o mau uso da sua própria imagem. De outro, escolhe deliberadamente qual será o fluxo de produção e de construção de sua memória como entidade coletiva.

Hierarquia e disciplina são constructos conceituais (e não factuais) alicerçados no acatamento espontâneo, na aceitação não conflituosa e no pressuposto do seu exercício por meio de uma cadeia de comando claramente definida. Se a importância do respeito à hierarquia e à disciplina por parte de um exército nacional pode soar como figura de retórica, nunca é demais recordar que sua finalidade é bastante concreta, e sobre ela repousa uma das características legitimadoras dos Estados modernos: o monopólio do uso da força e do emprego organizado dos meios violentos. Daí resulta que nem a volatilidade dos ambientes digitais, nem a tendência de um “pensamento em rede” podem subverter conceitos que, embora cunhados ainda na era pré-industrial, permanecem válidos.

A Portaria, portanto, vem em excelente hora para atenuar a anomia que parecia querer expandir-se perigosamente em um ambiente de polarização política. Não limita qualquer direito que já não fosse vedado pelos meios analógicos, sendo a Constituição Federal e o Estatuto dos Militares os melhores exemplos. Faz, isso sim, o que uma corporação atenta à conjuntura que a cerca faz: de modo prudente, antecipa-se. Também dialoga com os mais jovens, tacitamente sinalizando-lhes que certos valores e princípios devem permanecer imutáveis, sob pena de que, ao perecerem, perece com eles a própria Instituição. Em suma, ao defender a realidade contra as percepções difusas, assegura-lhe mais combatividade nessa continuada batalha.

¹Cel Carlos Frederico Gomes Cinelli – Doutor em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e em Política e Estratégia Marítimas pela Escola de Guerra Naval. Especialista em Direito Internacional dos Conflitos Armados pela Universidade de Brasília. Cursou aperfeiçoamento em emprego tático de Infantaria no Exército dos Estados Unidos e integrou o contingente brasileiro da missão de paz da ONU em Angola. Foi instrutor e assessor militar junto à Academia Militar de West Point (EUA) e comandou o Batalhão da Guarda Presidencial. É professor-tutor da Escola Superior de Guerra e revisor, para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, dos Comentários à III Convenção de Genebra de 1949, que versa sobre prisioneiros de guerra. Autor da obra "Direito Internacional Humanitário: ética e legitimidade no uso da força em conflitos armados", publicado pela Editora Juruá. Em 2018, durante a Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, foi Porta-Voz do Gabinete de Intervenção Federal e do Comando Conjunto das Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Atualmente é o Chefe da Comunicação Social e Porta-Voz do Comando Militar do Leste (RJ).

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