A “Síndrome Lemann” e a face do sistema

A “Síndrome Lemann” e a face do sistema

MSIa Resenha Estratégica

Para o segundo homem mais rico do Brasil, a calamidade sanitária deflagrada pela crise do coronavírus representa uma imperdível oportunidade para novos grandes negócios.

Essa foi a mensagem do megaempresário Jorge Paulo Lemann, em um debate virtual promovido pelo Fórum da Liberdade, na companhia dos pesos pesados Roberto Setúbal (Itaú Unibanco), José Galló (Renner) e David Vélez (Nubank).

“O que eu gosto mais, francamente, é que toda crise é cheia de oportunidades. Todas as crises que eu passei foram duras, eu sofri, não sabia muito bem como iria chegar ao fim, mas alguma oportunidade apareceu” – disse ele, reiterando que esta foi a orientação de toda a sua carreira empresarial (O Globo, 17/04/2020).

Lemann, sócio do grupo 3G Capital, é um dos campeões do “padrão globalizado” de negócios, que se impôs a partir da década de 1980. Sua especialidade são as aquisições seriais de empresas para convertê-las em usinas de lucros, dividendos e bônus, baseadas em brutais reduções de custos operacionais, apesar de escassas inovações para a economia real.

Ele tem uma curiosa receita para as empresas em tempos de crise: “sobreviver bem”, tomando medidas como o fortalecimento do caixa; “tratar bem os associados”; e identificar as contribuições que o empreendedor e o negócio podem oferecer à sociedade.

Por ironia, toda a estratégia de negócios prevalecente na era da “globalização” privilegia, não as “partes interessadas” (clientes, fornecedores, funcionários e sociedade, os stakeholders), mas executivos e acionistas (shareholders), em detrimento da grande maioria das funções positivas das empresas na sociedade. Uma forma de capitalismo parasitário que deprecia e vive à custa da economia real, disfarçado como uma suposta lei natural, que, agora, é colocada em xeque pela crise sanitária global.

Lemann também personifica uma face pretensamente humana desse “turbocapitalismo” sem freios, ao revestir-se com a capa de uma intensa atividade filantrópica, como uma espécie de compensação social para a voracidade darwinista com que ele e seus pares se aplicam aos negócios. A sua Fundação Lemann patrocina uma série de iniciativas ligadas à educação em todo o País e, nos últimos anos, tem apoiado pessoas jovens com perfil de liderança para se candidatarem a cargos políticos, tendo eleito cinco deputados federais nas eleições de 2018, a chamada “bancada Lemann”.

Não por coincidência, um dos seus colegas no debate representava o maior banco brasileiro, o Itaú Unibanco, que tem se jactado da “doação” de R$ 1 bilhão à campanha contra o coronavírus – uma fração do lucro recordista de R$ 26,6 bilhões em 2019, o maior da história bancária do País, em meio a cinco anos de estagnação. 

E Lemann ainda encontrou espaço para criticar a profunda desigualdade social brasileira. Segundo ele, a crise traz a obrigação “de trabalharmos para diminuir essa desigualdade social colossal que nós temos”.

De fato, a crise sanitária deflagrada pelo coronavírus interceptou de forma contundente os brutais índices de desigualdade e exclusão que têm marcado o Brasil em toda a sua história de Nação independente, com seus dirigentes que, com raras exceções (inclusive, empresariais), nunca se preocuparam em elaborar e trabalhar um projeto de construção nacional capaz de elevar o País ao primeiro plano das nações mais avançadas.

Que os grupos dirigentes brasileiros veem o País, desde sempre, como um gigantesco balcão de negócios, sem compromisso palpável com um projeto de Nação progressista e inclusivo, é algo sabido e consabido. Na crise causada pela pandemia de covid-19, esse comportamento atávico ficou evidenciado nas respostas iniciais de autoridades da área econômica, para as quais a melhor resposta à emergência criada pelo novo coronavírus seria a continuidade das sacrossantas “reformas”, eufemismo ideológico para a consecução do delirante cenário de emasculação final do Estado brasileiro e a mercantilização de virtualmente todos os aspectos da vida nacional em favor dos lucros privados, eixo central da agenda do “superministro” Paulo Guedes.

De seu posto de comando no Ministério da Economia, o “Posto Ipiranga” do presidente Jair Bolsonaro tem envidado todos os esforços para protelar e dificultar a adoção de medidas emergenciais de apoio à população e às pequenas e médias empresas (PMEs) afetadas pela paralisação imposta à economia, enquanto se empenha em “tranquilizar” os seus parceiros no mercado financeiro.

Isso ficou evidenciado na videoconferência que protagonizou na noite do sábado 28 de março, com operadores financeiros convocados pela corretora XP Investimentos, na qual, além de criticar as medidas de isolamento social adotadas por governadores e prefeitos para minimizar os efeitos econômicos da pandemia, pintou um cenário róseo para a turma do “balcão de negócios”: “Em três, quatro meses, vamos avançar com as reformas estruturantes, e o Brasil será o primeiro país a sair dessa confusão. Estamos em isolamento agora, vamos amortecer a primeira onda da (crise de) saúde, manter aberta a organização produtiva e ir desregulamentando, aprofundando as (reformas) estruturantes. Em quatro, cinco meses, vem uma onda de novos investimentos (GaúchaZH, 28/03/2020).”

Três semanas depois, milhões de pessoas desassistidas na base da sociedade, entre trabalhadores informais, desempregados, demitidos e de outras categorias prejudicadas pelo isolamento, ainda aguardam a pífia ajuda de R$ 600,00 arrancada a fórceps do “superministro”, enquanto o Senado vetava parte da PEC 10/2020 (Proposta de Emenda Constitucional) do chamado “orçamento de guerra”, que previa a liberação de dinheiro do Banco Central (BC) para o pagamento direto de lucros e dividendos de operadoras financeiras que vissem seus lucros reduzidos pela crise. Ainda assim, o BC foi autorizado a comprar dívidas de empresas sem a intermediação de bancos. Ou seja, para o Olimpo financeiro, benesses a toque de caixa; para a base da pirâmide, migalhas a passo de lesma preguiçosa.

Ainda mais cáustico na depreciação das vidas humanas foi o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, que disparou, em um grupo do aplicativo WhatsApp: “Muita bobagem é feita e dita, inclusive por economistas, por julgarem que a vida tem valor infinito. O vírus tem que ser balanceado com a atividade econômica… A questão não é apenas médica e mesmo alguns médicos concordam com a tese do presidente [Bolsonaro]. Depressão econômica também mata muita gente, principalmente entre os mais pobres (Folha de S. Paulo, 26/03/2020).”

Novaes é um notório adepto das surradas teses de limites populacionais de Thomas Malthus, já tendo proposto publicamente o controle de população de famílias carentes, para reduzir gastos sociais e de segurança pública.

Por motivos óbvios, mesmo antes da crise sanitária, Guedes e seus fieis escudeiros não tinham qualquer proposta séria para enfrentar a estagnação socioeconômica que já dura cinco anos, exceto o batido mantra dos “investimentos privados”, em especial, estrangeiros – que recebeu um golpe potencialmente fatal com a crise do coronavírus.

 

Apesar de ter sido “turbinado” nas últimas décadas, o sistema consolidador de desigualdade e exclusão incensado por Lemann, Guedes, Novaes e caterva não representa novidade histórica: no século XIX, era conhecido como Sistema Britânico, assim batizado pelo brilhante empreendedor e economista estadunidense Henry Carey, que foi assessor econômico do presidente Abraham Lincoln durante a Guerra de Secessão (1861-65). Em sua obra-prima de 1851, “A harmonia de interesses”, ele escreveu:

Dois sistemas se apresentam diante do mundo… Um deles visa o aumento da necessidade de comércio; o outro, o poder de mantê-la. Um deles visa subempregar o indiano e rebaixar o resto do mundo ao seu nível; o outro vista elevar o nível do homem em todo o mundo ao nosso nível. Um deles visa a pauperização, a ignorância, o despovoamento e o barbarismo; o outro, aumentar a riqueza, o conforto, a inteligência, a combinação de ação e a civilização. Um deles visa a guerra universal; o outro, a paz universal. Um deles é o sistema inglês; o outro, podemos orgulhosamente chamá-lo Sistema Americano, pois ele é o único elaborado cuja tendência é a de elevar, equalizando ao mesmo tempo a condição do homem em todo o mundo. (…)

Para substituir o detestável sistema conhecido como malthusiano pelo verdadeiro cristianismo, é necessário que provemos ao mundo que é a população que faz o alimento provir dos solos ricos, e que o alimento tende a aumentar mais rapidamente que a população, comprovando, assim, o mandato de Deus ao homem. Estabelecer tal imperativo – provar que entre as pessoas de todo o mundo, sejam agricultores, manufatureiros e mercadores, existe uma perfeita harmonia de interesses, e que a felicidade dos indivíduos, bem como a grandeza das nações, é promovida pela perfeita obediência ao maior de todos os mandamentos – “fazeia aos outros o que gostaria que os outros lhe fizessem” –, constitui o objeto e será o resultado daquela missão.

 

Embora os EUA, depois de utilizar os princípios do Sistema Americano de Economia Nacional para se construírem como a maior potência econômica do planeta, os tenham abandonado para se tornarem os porta-bandeiras da “globalização”, a crise do coronavírus proporciona uma oportunidade singular para que sejam resgatados e atualizados.

Já se tornou lugar comum afirmar que a crise do coronavírus deverá ser um divisor de águas para a percepção de que um retorno à situação pré-crise não será possível. Para o Brasil, é preciso trabalhar para que a oportunidade que Lemann e seus pares veem como janelas para grandes negócios possa motivar um leque bem mais amplo de brasileiros, inclusive, empresários com uma visão de alcance mais humanista, para iniciar um projeto nacional definitivo.

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