MOUT – Defensoria tenta impedir disparos desde helicópteros no RJ

Morte a caminho da escola

Artigo O Globo 21 Junho 2018

 

Ana Carolina Torres, Célia Costa, Antônio Werneck,

Giselle Ouchana e Marcos Nunes

Não se sabe se o despertador não tocou ou se foi a preguiça matinal típica de adolescentes, agravada pelo tempo frio, que levou Marcos Vinícius da Silva a perder a hora para a escola. Morador do Complexo da Maré, o adolescente, de 14 anos, acordou por volta das 8h, quando começam as aulas do Ciep Operário Vicente Mariano, onde cursava a 7ª série. Após tomar café e vestir o uniforme às pressas, Marcos saiu de casa.

Ao mesmo tempo, chegavam à comunidade 120 homens da Polícia Civil, que, com apoio de blindados do Exército e de um helicóptero, pretendiam cumprir 23 mandados de prisão na região. A operação, realizada em horário escolar, quando as 44 escolas e creches do complexo estavam lotadas de crianças e jovens, levou pânico a 16 mil alunos, obrigados, mais uma vez, a se jogarem no chão, junto com professores, para se proteger dos tiros.

Desabrigado, no meio da rua, Marcos não escapou do fogo cruzado. Foi atingido na barriga por um tiro. Durante a tarde, teve o baço retirado durante uma cirurgia no Hospital Getúlio Vargas. À noite, morreu. Além dele, a operação deixou outras seis vítimas. Todas suspeitas, segundo a polícia.

POLICIAIS ATIRARAM DE HELICÓPTERO

Apesar de o ex-secretário de Segurança Roberto Sá ter assinado um protocolo, em agosto do ano passado, orientando as polícias Civil e Militar a usar instrumentos de menor potencial ofensivo em áreas sensíveis, como a vizinhança de escolas, creches e postos de saúde, e também a evitar horários de grande movimento, como a entrada e saída de colégios, o que se viu na manhã de ontem na Maré foi bem diferente.

Embora a operação tenha começado às 9h, quando, em tese, todos os alunos já estariam em sala, há relatos de que o helicóptero que deu apoio à ação sobrevoou escolas e creches, e que policiais a bordo atiraram em direção à comunidade diversas vezes, mesmo com o risco de balas perdidas atingirem inocentes.

– O helicóptero não tem dado só apoio tático, mas também tem entrado nos confrontos. Hoje pela manhã, foram mais de 50 disparos a partir da aeronave. É um perigo muito grande, porque a Maré é muito povoada, e às 9h30m da manhã tem muita gente na rua, muitas crianças na escola – diz Édson Diniz, um dos coordenadores da Redes da Maré.

Em redes sociais, moradores apelidaram a ação de Operação Vingança, já outro objetivo dos policiais seria encontrar bandidos de Acari, escondidos na comunidade, que teriam participado da morte do inspetor Ellery Lemos, chefe de investigações da Delegacia de Combate às Drogas, semana passada. Também na internet, moradores postaram imagens de buracos no asfalto, feitos a bala.

Para tentar coibir os disparos do alto, a Defensoria Pública do Estado entrou com um pedido de liminar na Justiça, ontem à tarde.

– O uso de um helicóptero para efetuar disparos de arma de fogo a esmo, em locais urbanos densamente povoados, enquanto se movimenta em alta velocidade, é absurdamente temerária, não se tem notícia de algo parecido em qualquer lugar do mundo. A probabilidade de atingir pessoas inocentes é imensa, tanto que, mais uma vez, um adolescente foi ferido – afirmou o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública e que assina a petição. (íntegra no box abaixo)

A indignação é maior ainda entre quem viveu momentos de pânico na região. Uma professora que precisou proteger 24 crianças, todas entre 8 e 9 anos, conta que mandou todas se deitarem no chão, no fundo da sala, já que as paredes da unidade são de drywall, revestimento que não resiste a tiros:

– Quando começou, os policiais atiravam do alto do helicóptero, que sobrevoava a região bem baixo, e os bandidos revidavam. Foram uns cinco ou seis rasantes da aeronave. Os tiros soavam muito alto dentro da sala de aula. As crianças ficaram o tempo todo deitadas no chão, juntinhas, chorando muito. O combinado é que as operações têm que ser bem cedo, para não colocar em risco quem trabalha ou estuda.

O tiroteio no Complexo da Maré, que terminou com a apreensão de quatro fuzis, granadas e drogas, foi tão intenso que, segundo Fátima Barros, coordenadora da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), teria levado o secretário municipal de Educação, Cesar Benjamin, a pedir a interrupção da ação.

– No momento da operação, nós estávamos indo a uma reunião com o secretário, em outra unidade. Ele, inclusive, solicitou aos órgãos responsáveis que suspendessem a operação por causa do horário. Tínhamos alunos, professores e funcionários dentro das escolas. Houve pânico pela forma como a operação foi feita – diz Fátima, que esteve no hospital onde Marcos estava internado e conversou com os pais do menino, antes da morte. – A mãe está em choque. Está em pé porque é mãe. O filho está ali, e ela está em alerta.

A ação da polícia surpreendeu especialistas. Para Terine Husek Coelho, pesquisadora do Laboratório de Análises da Violência da Uerj, é um absurdo atirarem do alto:

– É combate atrás de combate, troca de tiros pela cidade toda. É muito absurdo atirar de cima para baixo, não tem cabimento. Num caso desses, a polícia não está defendendo, está atacando.

Segundo o antropólogo Paulo Storani, ex-capitão do Bope, os riscos fazem parte de qualquer ação policial:

– Risco zero é não fazer operação e, com isso, cria-se um vácuo do estado naquele determinado espaço.

A Polícia Civil informou que realizou a operação depois das 9h para não coincidir com a entrada escolar, mas não comentou os tiros dados do helicóptero.

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Defensoria Pública RJ pede à Justiça para proibir disparos de aeronaves em favelas

20 de junho de 2018

Publicado às 19:05

O uso de aeronaves para efetuar disparos durante uma operação da Polícia Civil e do Exército, nesta quarta-feira (20), no Complexo da Maré, levou a Defensoria Pública do Estado do Rio a ingressar com um pedido de liminar na Justiça para pedir a proibição de tal prática nas favelas ou lugares densamente povoados. A ação na comunidade resultou em seis mortes. Um adolescente, atingido por um disparo de arma de fogo, foi gravemente ferido na barriga.

– Essa situação da utilização de um helicóptero para efetuar disparos de arma de fogo a esmo, em locais urbanos densamente povoados, enquanto se movimenta em alta velocidade é absurdamente temerária, não se tem notícia de algo parecido em qualquer lugar do mundo. A probabilidade de atingir pessoas inocentes é imensa, além do terror psicológico que causa aos moradores e interrupção das atividades na comunidade e prejuízos materiais – afirmou o defensor público Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública e que assina a petição.

No pedido, que foi protocolado na 6ª Vara da Fazenda Pública da Capital, a Defensoria requereu também o cumprimento da decisão judicial que obriga o Estado a apresentar o plano de redução de riscos e danos para evitar violação dos direitos humanos e preservar a integridade física dos moradores da Maré durante as ações policiais dentro da comunidade. O plano de redução de danos decorre de uma ação civil pública movida pela DPRJ desde junho de 2016.

Na petição entregue à Justiça, o Nudedh afirma que o prejuízo causado durante a operação conjunta da Polícia Civil e do Exército, na localidade Vila Pinheiros, dentro do território da Maré, classificado como “mais um morticínio promovido pelo Estado”, revela a persistência do réu em não cumprir a determinação judicial e ainda agir de maneira contrária às diretrizes estabelecidas na decisão proferida por este juízo.

No documento, a Defensoria argumenta que a utilização de aeronaves para efetuar disparos de arma de fogo de grosso calibre próximo a escolas, residências e aglomeração de pessoas foi considerada temerária e revela “atuação discriminatória do Estado”, visto que esta medida nunca seria tomada se a ocasião envolvesse bairros de classe média.

 

– A única hipótese de se considerar esse tipo de operação policial como exitosa é o total desprezo pela vida e demais direitos dos moradores de favela. É oportuno rememorar outras ocasiões em que a aeronave da Polícia Civil foi utilizada para realizar voos rasantes e efetuar disparos de arma de fogo, como na Favela do Rola, em 2012, e no Jacarezinho, no ano passado, sempre resultando em múltiplos homicídios. No Jacarezinho até mesmo a base da UPP local foi atingida, o que demonstra a integridade dos policiais também é colocada em risco – acrescentou o defensor.

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