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Detidos em protestos não formam organização criminosa


 

Nota DefesaNet

Uma legislação garantista de pseudos Direitos Civis, que na prática serve de escudo e guarda-chuva para acobertar organizações irregulares, ativistas, criminais e terroristas.

O Editor

Fonte Consultor Jurídico
Publicado 23 Outubro 2013

Rodrigo de Oliveira Ribeiro 
Advogado criminal e membro do
Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro


 
Recentemente entrou em vigor a Lei 12.850/2013, definindo o que seja organização criminosa, infrações penais correlatas, dispondo sobre a investigação criminal e meios de obtenção de prova, e revogando a Lei 9.034/1995, que dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de organizações criminosas.

Jornais de todo o país anunciam a prisão de dezenas de manifestantes, com base na recente lei de organizações criminosas.[i]

A lei anterior, hoje revogada, era já muito criticada em razão de que vinha dispor sobre meios para prevenir e reprimir organizações criminosas, enquanto o conceito de organizações criminosas nem sequer existia no ordenamento jurídico pátrio. Seu artigo 1º se referia a quadrilha ou bando, e no artigo 2º tratava de organizações criminosas, como se os fenômenos — diversos, entre as modalidades de crimes coletivos, praticados por mais de uma pessoa — fossem análogos.

Em 2001, a Lei 10.217 acrescentou a captação ambiental e a infiltração policial como expedientes investigatórios, incluindo os termos organizações criminosas e associações criminosas em seu artigo 1º. Posteriormente, a Lei de Lavagem de Dinheiro, Lei 9.613/1998, incluiu o tipo legal de organização criminosa como crime antecedente, ainda que não houvesse no ordenamento jurídico pátrio sua previsão legal.[ii]

A vagueza do termo organizações e a mitificação da máfia e do crime organizado contribuem para a confusão normativa, e em todos os meios que se debruçam sobre o tema.

As organizações criminosas distinguem-se de associações criminosas como quadrilha ou bando, embora exista uma certa organização nessas estruturas de associação.

Embora tratados internacionais e farta doutrina tratem as organizações criminosas de forma distinta, por seu elevado poder de causar danos, existem autores defendendo a aplicação das medidas destinadas à essa criminalidade organizada em relação a ilícitos que nem sequer são considerados crimes — sendo, portanto, potencialmente pouco lesivos à sociedade — como no caso de contravenções penais (defendem a utilização do termo genérico, infrações penais, ao invés de crime, redação adotada pela nova norma).
Tanto na legislação de emergência quanto na doutrina, tendo em vista a dificuldade de se conceituar o complexo fenômeno, ocorre algo semelhante às imbricações teóricas que cercam a conceituação do crime de terrorismo. Sendo objeto de centenas de interpretações diferentes, a mobilidade conceitual permite aos doutrinadores adaptar, por vezes inconscientemente, o conceito às suas visões, não necessariamente por fundamentos jurídicos — mas práticos, estratégicos, sociológicos, ou morais. Como observava o filósofo David Hume, sobre tais desvios científicos:

quando o filósofo consegue estabelecer um princípio fundamental, talvez capaz de explicar um grande número de efeitos naturais, passa a aplicar o mesmo princípio ao universo inteiro, atribuindo a esse princípio todos os fenômenos, mesmo que seja à custa do mais violentamente absurdo raciocínio.

Observa-se que nas tipificações oferecidas por boa parte da doutrina não contam com o nexo-político-criminal (corrupção de agentes públicos), ou violência, na tentativa de manter uma tipologia aberta e abarcar mais condutas, ainda que, assim fazendo, se esteja a confundir os conceitos e tipos diversos de associação criminosa. Já outras conceituações buscam integrar filigranas criminológicas na enunciação dos elementos essenciais, culminando em definições demasiado descritivas.

Destaca-se, pela sua ausência, nas normas ou conceitos dogmáticos, a relação das organizações criminosas com o comércio de bens e serviços. Observamos que enquanto a societas delinquentium consubstancia-se em um agrupamento destinado a cometer crimes como homicídios, espancamentos, roubos e furtos, golpes e falsos, etc., os quais representam em si próprios um resultado; a associação criminosa nos moldes atuais fomenta certos delitos não pelo resultado deles em si, mas como meio para obter lucros em empreitadas ilícitas de natureza comercial, ou para mantê-las funcionando. Essa constatação, no entanto, não engloba os diversos e variados formatos que as organizações criminosas assumem, ainda que se aproxime de uma distinção objetiva.

De todas as linhas de pensamento, entendemos que essa relação com o comércio ilícito de bens e serviços seja essencial à caracterização de uma organização criminosa.

O crime organizado, atuando através das organizações criminosas, está presente em nosso dia a dia e seu crescimento é fruto em sua maior parte do monopólio do mercado ilícito. O seu incremento e ganho de poder nas últimas décadas, dando mostras de enfrentamento ao Estado — com a mídia contribuindo para o superdimensionamento dessa sensação, propagando as execuções de operadores do direito, vinditas e subornos, além da filmografia e produções de televisão com a máfia por pano de fundo — motivou a elaboração de muitos esforços internacionais com o fim de estabelecer cooperação entre as nações na prevenção e combate a essas organizações.

O potencial, no imaginário popular, das organizações criminosas e do crime organizado, os coloca, junto com o terrorismo, na disputa pelo papel de inimigo número um do Estado, sendo objeto de uma legislação especial que não se aplica aos casos comuns.
Daí reside o perigo em se misturar conceitos e normas, o que propicia a aplicação de medidas de estado policial a casos corriqueiros, simples, os quais, com os métodos regulares de investigação e de policiamento, poderiam ser solucionados.

Feita essa introdução, observamos que a nova lei trouxe desta vez uma definição do que seja organização criminosa, e em seu artigo 1º estabelece alguns critérios.

Quanto ao número de participantes, considera-se organização criminosa a associação de quatro ou mais pessoas (a normativa a União Europeia, considera um delito como crime organizado desde que haja mais de duas pessoas, e a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional —Convenção de Palermo, da qual o Brasil é signatário, estabelece o número de três ou mais pessoas).

A lei exige também que a associação seja estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente.

Ademais, exige-se que esta associação tenha o objetivo de obter vantagem de qualquer natureza, direta, ou indiretamente.

Por fim, a norma estabelece que a societas sceleris chegue ao objetivo por meio do do cometimento de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

Após analisar tais requisitos, passamos à uma análise dos últimos acontecimentos referentes aos tumultos e confrontos entre manifestantes e policiais, nas grandes cidades do país.

Juristas têm tratado aqueles que praticam danos ao patrimônio, privado ou público, como baderneiros[iii]. A mídia, escrita e falada, também os classifica de vândalos e baderneiros.[iv]

Não conseguimos verificar, entre tais manifestantes classificados como baderneiros, qual estrutura organizacional, hierarquia, ou subordinação, há entre eles. Pelo contrário, a marca de tais manifestações violentas é a anarquia. Mais: a estrutura organizacional é tão inexistente que já se noticiaram casos de policiais infiltrados entre os manifestantes.[v]
Também não conseguimos verificar a demonstração do objetivo de obter vantagem, a não ser que a luta por uma sociedade mais justa seja a vantagem almejada pela organização criminosa (não estamos aqui ratificando os meios empregados, mas buscando entender os fins).

Da mesma forma, os crimes de dano, e dano qualificado, assim como a figura do dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico, não possuem penas máximas superiores a quatro anos. Furtos de objetos de pequeno valor, cometidos por pessoas que se fingem de manifestantes, aproveitando a confusão, podem ser punidos simplesmente com multa se o agente é primário.

O cometimento de crime “sob influência de multidão em tumulto”, na verdade, é uma circunstância atenuante do Código Penal, que não deveria ser utilizada para se configurar o núcleo de um delito autônomo.

A aplicação da lei de organização criminosa deveria ocorrer nas verdadeiras organizações criminosas, que possuem uma natureza sobremodo diversa dos crimes coletivos em geral.

A doutrina criticava a lei anterior, mas suas críticas, diante do quadro atual, continuam pertinentes diante da aplicação que aparentemente desejam conferir à novel legislação:
Ao afirmar que as ações de quadrilhas ou bandos são atividades de organizações criminosas, cometeu, assim, a nova lei o pecado de não fazer diferença entre quadrilhas de bagatela e as verdadeiras organizações delinquenciais, prevendo para umas e outras o mesmo tratamento.

Não se concebe, por exemplo, que "ladrões de galinha associados" sejam vistos do ponto de vista processual, para fim de limitação de direitos com a ampliação de poderes probatórios e também de cassação da liberdade, de forma idêntica que as máfias das fraudes na Previdência, do tráfico de entorpecentes, do jogo do bicho, prostituição, orçamento, etc.[vi]

A manipulação desarrazoada de normas como a Lei de Segurança Nacional e a nova lei sobre as organizações criminosas, coloca em risco a legalidade, a liberdade individual, e garantias processuais e constitucionais, abrindo o campo para arbitrariedades e abusos.
Além disso, demonstra duas realidades: a incapacidade estatal de aplicar a novel legislação às grandes estruturas criminosas, verdadeiras destinatárias de uma normativa diferenciada; e a incapacidade de se aplicarem as normas do Código Penal em relação a delitos os quais, de novo, nada têm. 


[i]http://oglobo.globo.com/rio/policia-civil-70-sao-autuados-por-organizacao-criminosa-10389531
http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/policia-civil-vai-enquadrar-manifestantes-mascarados-na-nova-lei-de-organizacao-criminosa-09102013

[ii] O mito do crime organizado propiciou ainda que fossem acrescidas no ordenamento jurídico brasileiro outras leis de caráter processual ampliando a delação premiada e a proteção às testemunhas (Lei 9.807/1999 e Lei 10.409/2002), mencionando hipóteses de organização criminosa sem nenhuma razoabilidade ou preocupação técnica diante da sua não tipificação.

[iii]
http://br.noticias.yahoo.com/juristas-defendem-leis-severas-baderneiros-promovem-quebra-quebra-183329453.html

[iv] É interessante observar que a imprensa em geral foca o tema na perspectiva dos manifestantes que vandalizaram bens, esquecendo-se de analisar criticamente o porquê de uma polícia que, sabendo de antemão da possibilidade de haver confronto ao fim da última manifestação de 15 de outubro (porque confrontos ocorreram nas semanas anteriores), tenha colocado pouquíssimos policiais para manter a segurança, e com uma atuação tão tímida, deixando os problemas intensificarem-se para, muito tempo depois, tomarem alguma atitude, então violenta em excesso.
[v] http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed766_a_nova_linguagem_do_jornalismo

[vi]
SANTOS, William Douglas Resinente dos; PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Comentários à lei contra o crime organizado. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 42-43

 

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