EUA: entre o “identitarismo” e a reinvenção do Estado nacional

Lorenzo Carrasco
e Geraldo Lino
Resenha Estratégica
Movimento de Solidariedade Ibero-Americana

Pouco notado fora dos EUA, o surpreendente desfecho da recente eleição para governador na Virgínia, com a derrota do incumbente democrata em um estado onde, há um ano, Joe Biden venceu o republicano Donald Trump por uma vantagem superior a 10%, não é um acontecimento isolado. De fato, ele remete ao dilema fundamental confrontado pelo país, em especial, as suas elites dirigentes: como se reinventar para superar a crescente erosão da coesão social interna e, externamente, estabelecer uma linha de ação construtiva em um mundo multipolar onde a superpotência estadunidense não detém mais a hegemonia econômica e militar.

Em outras palavras, como recuperar um sentido de propósito compartilhado por uma maioria da população, após o desgaste de quatro décadas de financeirização galopante da economia, concentração de rendas, compressão da classe média e excessos militaristas de uma geração inteira de delírios hegemônicos pós-Guerra Fria.

Na Virgínia, o apoio ostensivo de Biden e, principalmente, da vice-presidente Kamala Harris, que se engajou ativamente na campanha, não conseguiu impedir a derrota do governador Terry McAuliffe para o desafiante Glenn Youngkin (ambos banqueiros), que não apenas mobilizou o eleitorado rural de Trump, mas também atraiu muitos eleitores suburbanos moderados, especialmente, mulheres, além de latinos e negros, que foram decisivos para eleger Biden em novembro de 2020.

Em entrevista à Fox News, o veterano estrategista político democrata James Carville atribuiu o resultado à ênfase colocada pelo Partido Democrata nas pautas “identitárias” – designadas pela palavra inglesa “woke” (acordado) -, em vez de se ocupar com os problemas reais da sociedade:

O que deu errado é essa estúpida “atitude woke”. Não olhe apenas para Virgínia e Nova Jersey. Olhe para Long Island, Buffalo, Minneapolis, até mesmo para Seattle, Washington. Eu me refiro a essa loucura de “retirar os recursos da polícia”, “tirem o nome de Abraham Lincoln das escolas”, as pessoas veem isso. E isto, realmente, tem um efeito supressivo sobre os democratas em todo o país. Algumas dessas pessoas precisam ir a um centro de desintoxicação “woke” ou algo parecido. Nós temos que mudar isso e não ficar preocupados com mudar dicionários e mudar leis.

Em outubro, Carville já havia feito tal advertência, mas foi contestado por outros estrategistas democratas, como o ex-coordenador de campanha de Barack Obama, David Plouffe, que sugeriu que o partido deveria “ir para a ofensiva” em relação à pauta racial.

Outra dura crítica à agenda “identitária” veio do arcebispo de Los Angeles, José H. Gómez, que a qualifica como uma “nova religião política”.

Em uma mensagem de vídeo enviada ao 23° Congresso de Católicos e Vida Pública, em Madri, em 4 de novembro, ele afirmou que, “com a derrocada da visão do mundo judaico-cristã, sistemas de crenças políticas baseados na justiça social ou na identidade pessoal vieram assumir o espaço antes ocupado pelas crenças e práticas cristãs (Angelus News, 04/04/2021)”.

Segundo Gómez:

Seja como chaemos esses movimentos – justiça social, consciência “woke”, política de identidade, interseccionalidade, ideologia sucessora –, eles afirmam oferecer o que a religião proporciona. Eles proporcionam às pessoas uma explicação para os acontecimentos e as condições do mundo. Eles oferecem um sentido de significado, um propósito de vida e a sensação de pertencer a uma comunidade. E mais do que isto, assim como o cristianismo, esses novos movimentos contam a sua própria “história de salvação”.

Não obstante, observou, tais movimentos negam “a verdade sobre a pessoa humana” e, por conseguinte, “por mais bem intencionados que sejam, não podem promover um florescimento humano autêntico. De fato, como estamos presenciando em meu país, esses movimentos estritamente seculares estão causando novas formas de divisão social, discriminação, intolerância e injustiça”.

Sentido de propósito é exatamente o que falta a uma nação que abandonou alguns fundamentos básicos da orgulhosa prosperidade das primeiras três a quatro décadas do pós-guerra: uma sólida base industrial, classe média florescente e com ampla participação da força de trabalho da economia real, redução das desigualdades sociais e grandes programas de avanços científicos e tecnológicos (como o Ano Geofísico Internacional e o programa espacial, entre outros).

Fatores que proporcionaram uma visão do futuro geralmente positiva e inspiradora às gerações que vivenciaram aquele período, malgrado os problemas da população negra, em grande medida, mitigados com as difíceis conquistas do movimento de direitos civis.

Tudo isso foi trocado por uma ênfase crescente na “financeirização” da economia e em custosas intervenções militares no exterior, cujos efeitos desestabilizadores não se limitaram aos países-alvos, mas atingiram fortemente os próprios EUA, em especial, nos casos do Vietnã, Iraque e a catastrófica intervenção de duas décadas no Afeganistão, cuja retirada atropelada provocou abalos políticos e psicológicos internos e externos ainda não devidamente avaliados.

Em particular, a desregulamentação da economia que se seguiu ao desmantelamento deliberado do sistema monetário e financeiro criado ao final da II Guerra Mundial e o advento da “globalização” financeira, entre as décadas de 1970 e 1990, seguidos pelas grandes crises financeiras da década de 2000, incutiram em grande parte da população estadunidense a ideia de que o sistema político e econômico é organizado para beneficiar uma pequena casta de plutocratas, em detrimento da maioria da sociedade e do bem comum. Não por acaso, os EUA se tornaram a mais desigual entre as economias avançadas, um eficiente combustível para a erosão social que tem pavimentado o caminho da agenda “identitária” – por sua vez, fomentada por plutocratas e “engenheiros sociais” interessados em desviar as atenções da sociedade dos problemas reais do país.

Por outro lado, setores importantes do Establishment estadunidense começam a trabalhar com a realidade dos fatos e a se afastar das concepções ideológicas que têm orientado as políticas internas e externas do país nas últimas décadas.

Um exemplo é o pragmatismo econômico do governo Biden, que acaba de aprovar no Congresso um megapacote de US$ 1 trilhão para investimentos públicos em infraestrutura, o maior no país desde a década de 1950, peça central do que já está sendo rotulado como “Bidenomics”, uma mais que oportuna retomada da velha tradição estadunidense de atuação governamental na economia real, que sempre transmitiu exemplos positivos fora dos EUA.

É relevante que a iniciativa de Biden (que sentenciou o “fim da era de Milton Friedman”, o ideólogo neoliberal da hoje desacreditada Escola de Chicago) seja respaldada por uma intensa discussão nos meios acadêmicos e think-tanks do país. Um exemplo é um artigo da economista Felicia Wong, presidente do Instituto Roosevelt, publicado na edição de novembro-dezembro da revista Foreign Affairs, órgão do influente Conselho de Relações Exteriores (CFR), intitulado “Profetas do mercado: o caminho para uma nova economia”. Segundo ela:

A mundança de paradigma econômico de hoje começou a se manifestar bem antes da emergência da Covid-19… Entender a presente rebelião significa examinar os fracassos das políticas que levaram à crise financeira de 2008 e à recessão subsequente. A veneração dos estadunidenses pelo capital privado foi abalada pelo colapso dos gigantes financeiros Bear Stearns e Lehman Brothers. Rapidamente, as pessoas começaram a acreditar que essas instituições não respondiam mais aos seus melhores interesses. De acordo com uma pesquisa Gallup, a confiança pública no sistema bancário caiu de 53% em 2004 para 22% em 2009, e não se recuperou mais. (…)

Esse novo paradigma é notavelmente mais complicado que o monetarismo de Friedman. De fato, a maioria dos principais economistas agora o rejeita pelo seu enfoque obsessivo na quantidade de moeda em circulação. Em vez disto, o arcabouço emergente incentiva o governo federal a desempenhar vários papeis, para promover a saúde da economia e da sociedade estadunidense. As instituições públicas, segundo os seus proponentes, deveriam estabelecer e aplicar regras estritas para evitar monopólios corporativos, investir em energia verde e gastar muito mais em bens públicos como saúde, cuidados infantis e educação. O governo também deveria buscar deliberadamente fechar as lacunas raciais nos salários, riqueza, habitação, educação, saúde e outras áreas.

A autora observa ainda que “as ‘guerras culturais’ – eufemismo fácil para as reações contra as desigualdades raciais e de gênero – podem afastar os EUA de atuarem em políticas verdadeiramente inclusivas”.

No campo estratégico, o choque de realidade atingiu em cheio a delirante concepção do “Novo Século Americano”, a qual contemplava a extensão da breve hegemonia unipolar lograda pelos EUA após a implosão da União Soviética, desfeita pelas próprias consequências da superextensão imperial estadunidense no mundo e pela consolidação da Rússia e da China como um novo eixo de poder militar e econômico refratário a ela. Embora de forma ainda minoritária, setores mais lúcidos do Establishment de Washington já se dão conta do novo cenário, como admitiu recentemente o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, referindo-se a um “mundo tripolar, com os EUA, Rússia e China como grandes potências” – pensamento ainda intragável para numerosos integrantes dos altos círculos da capital estadunidense.

Em essência, tais questionamentos refletem a percepção da necessidade de uma autêntica reinvenção da república estadunidense, de uma maneira que reflita efetivamente os seus elevados valores fundantes e permita aos EUA não apenas recobrarem a sua fragilizada coesão interna, mas também retomarem o abandonado sentido da História e reconstruir os valores coletivos da sociedade. Só assim estarão em condições de aportar a sua contribuição singular para o avanço da civilização global, em um marco de cooperação sinérgica, no qual as pretensões hegemônicas sejam relegadas aos livros de História.

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