Jorio Dauster foi embaixador do Brasil junto à
União Europeia e pre- sidente do IBC e da Vale
jorio@dauster.com
Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil
em Londres e Washington
rubens@rbarbosaconsult.com.br
Matéria publicada na Revista Inteligência
nº 111 Dezembro 2025
MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO
O mundo que surgiu em 1945 depois da Segunda Guerra Mundial favoreceu o liberalismo econômico, a livre iniciativa, a globalização e as instituições multilaterais. Mas agora, dada a perda de poder dos Estados Unidos como único “gendarme” internacional graças à ascensão da China, vivemos um período extremamente urbulento de que são exemplos as guerras na Ucrânia e em Gaza, mas, sobretudo, as ações de Donald Trump ao desmontar o sistema multilateral, bem como recorrer de forma abusiva às tarifas e às sanções comerciais a fim de sujeitar antigos aliados e adversários políticos.
O fato inexorável é que o mundo mudou, que passou a imperar a lei da selva, que se ouve ao longe o rufar dos tambores de guerra. E que o Brasil precisa com urgência rever suas políticas internas de defesa e suas posturas diplomáticas de modo a se adaptar a esses novos tempos.
O Brasil não pode continuar a ser um país indefeso.
BRASIL SEM VISÃO DE MÉDIO E LONGO PRAZOS
Nação pacífica, cuja Constituição advoga a solução negociada dos conflitos, a única guerra com vizinhos em que o Brasil se viu envolvido foi contra o Paraguai em 1865. Todos os conflitos de fronteiras foram resolvidos em entendimentos bilaterais ou por arbitragem. Com tal pano de fundo, não é difícil explicar a falta de uma forte cultura de defesa, como nos Estados Unidos, na Rússia e na Europa. Por outro lado, os 21 anos de autoritarismo contribuíram para que se evitasse estimular o ressurgimento do poder militar no país. Assim, durante o período de inquestionável hegemonia norte-americana, o Brasil passou a depender quase inteiramente de material bélico comprado dos Estados Unidos e de outros países da OTAN, não se esforçando de modo efetivo para criar uma indústria nacional de defesa que lhe concedesse qualquer capacidade de proteção autônoma.
Além do mais, embora o Ministério da Defesa receba a quinta maior dotação da Esplanada, com o valor previsto de R$ 133 bilhões durante o ano em curso, os gastos livres correspondem a menos de 10% desse montante pois o resto é consumido com pessoal e encargos sociais, sobretudo inativos e pensionistas. Quando comparadas essas cifras com os cerca de 40% gastos na União Europeia com salários e contribuições sociais nos orçamentos militares, é fácil entender por que nossas Forças Armadas são hoje muito mais um instrumento de amparo social do que uma máquina bélica.
Concretamente, essas vulnerabilidades ficam evidentes quando se pensa na inexistência de meios adequados para assegurar a soberania nacional na defesa das fronteiras, para proteger as plataformas de petróleo no pré-sal do mar territorial, para derrotar eventuais ambições externas sobre os grandes recursos biológicos, minerais e hídricos na Amazônia, para defender o país de ataques cibernéticos e para preservar as comunicações privadas e governamentais (inclusive militares) dependentes de satélites operados por companhias estrangeiras.
No entanto, há atualmente uma série de novas ameaças que não podemos deixar também de enfrentar, como o tráfico de armas e de drogas, o terrorismo e a guerra cibernética. E a esses velhos e novos desafios vem se somar agora o impacto da Inteligência Artificial, capaz de substituir os recursos humanos em numerosas funções militares, desde armas operacionais, recursos para a coleta e análise de inteligência, sistemas de alerta antecipado e mecanismos de comando e controle. Se o Brasil não dispuser de capacidade para utilizar as novas tecnologias e a IA, estará em grande desvantagem em seu poder de dissuasão perante as outras nações.

FALTA DE RECURSOS
Nos dias que correm, tiveram recursos cortados não somente o reequipamento das Forças Armadas, chamadas a desempenhar funções na área de segurança pública, mas programas essenciais para a defesa nacional, como, entre outros, o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (que, pela falta de recursos, só estará finalizado em 2040), o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul, o Programa Espacial Brasileiro e o da construção do submarino de propulsão nuclear. Segundo dados do Ministério da Defesa, a falta de recursos deixa parte da frota da Marinha parada, sem navios de escolta necessários, por exemplo, para dar proteção às plataformas do pré-sal. No Exército, os frequentes contingenciamentos exigiram a redução drástica da linha de produção do carro blindado Guarani, que poderá levar a empresa construtora do equipamento a suspender sua fabricação por falta de pagamento. Na Aeronáutica, quase metade da frota aérea está parada. A construção do avião cargueiro KC 390 só foi possível porque a Embraer, mesmo sem receber mais de R$ 1,5 bilhão devido pelo governo federal, bancou o projeto sozinha, ao custo de um atraso de vários anos.
Torna-se necessário estabelecer uma agenda positiva para a Defesa de curto, médio e longo prazos, que a inclua como uma das vertentes da reindustrialização do país. A agenda de curto prazo deveria contemplar, entre outros aspectos, o fortalecimento da Base Industrial da Defesa por meio de sua crescente nacionalização mediante a atuação do BNDES e do Banco do Brasil com vistas à criação de novas empresas e fortalecimento das já existentes. A médio prazo, deveriam ser ampliados os meios à disposição do Ministério da Defesa, via previsibilidade orçamentária e manutenção dos investimentos para a conclusão dos atuais projetos especiais da Forças Armadas, como o submarino nuclear, a defesa cibernética e o programa espacial.
Não se pode mais adiar a revisão da assimetria quanto à imunidade tributária das importações de Defesa, o apoio a projetos das três Forças com forte conteúdo científico e tecnológico, o treinamento, a pesquisa e cooperação técnica, bem como a criação de um órgão para cuidar da logística da defesa. No longo prazo, impõem-se uma política de reaparelhamento das Forças, o fortalecimento da Base Industrial de Defesa, a redução do custo com pessoal (ativa e reserva) e políticas para alcançar uma significativa autossuficiência em tecnologias críticas para o desenvolvimento dos produtos de defesa.
O Brasil necessita com urgência de um planejamento estratégico para deixar de ser um país inerme. E, como é praticamente impossível alterar substancialmente o perfil dos gastos orçamentários das Forças Armadas brasileiras nas próximas décadas, a prioridade um consiste em desenvolver novos modos de financiar os investimentos no setor.
A indústria brasileira de Defesa, em especial nos setores de cunho estratégico, terá de formar joint ventures com empresas nacionais e estrangeiras para ter acesso a novas tecnologias e financiamento enquanto não houver avanço autóctone significativo em inovação e financiamento.

AS FORÇAS ARMADAS E O SETOR PRIVADO
Nesse contexto, poderiam ser ressaltadas algumas das ações do governo e do Congresso para gerar recursos e fortalecer os diferentes aspectos da área da Defesa:
• Eventuais medidas restritivas nesse novo mundo poderão ocorrer em relação a tecnologias e produtos de uso dual como telecomunicação, equipamentos de TI, produtos eletrônicos, chips, sensores e lasers, aumentando nossas vulnerabilidades. As Forças Armadas têm a sua infraestrutura de conectividade na posse de empresa norte-americana que, em última análise, trabalha para o Departamento de Estado. Em julho de 2024, o governo, através do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), fez uma parceria com a Amazon para assuntos de Defesa. As big techs são também instrumentos de ação geopolítica de Washington. O governo, junto com o setor privado, precisa desenvolver uma infraestrutura própria de armazenamento de dados e de comunicação para eliminar a dependência de empresas estrangeiras.
• O país não está preparado para responder à ameaça cibernética no tocante à segurança e proteção de dados sensíveis. O Centro de Defesa Cibernética no âmbito do Exército deveria interagir com o Banco Central, ministérios e empresas privadas, desde bancos até cadeias de bens de consumo, para melhorar a capacidade de defesa contra–ataques de hackers que, como se viu em outros países, podem afetar a infraestrutura de energia, de transporte das cidades e mesmo a segurança nacional.
• Na área espacial, os programas de construção de satélites e de veículos lançadores de satélites, além da utilização do Centro de Lançamento de Alcântara, teriam de contar com a presença cada vez maior do setor privado num setor hoje com pouco investimento.
• Na área de exportação de produtos de Defesa, a diversificação de mercados e o apoio de mecanismos financeiros reduzirão uma das limitações da Base Industrial de Defesa. O aproveitamento da Área de Livre Comércio na América do Sul e a liderança do Brasil no estabelecimento de cadeias produtivas na região em setores determinados, em especial de Defesa, poderiam facilitar a integração dos países no subcontinente, reduzir as vulnerabilidades e aproximar empresas brasileiras das dos vizinhos em seu entorno geográfico.
• Na defesa das fronteiras, a modernização do sistema de monitoramento por empresas nacionais poderia reforçar a Base Industrial de Defesa.
• Na área ambiental, o Exército poderia examinar a possibilidade de utilizar as reservas florestais sob sua jurisdição para pagamentos pelos créditos de carbono.
• Na área mineral, a redução da interferência do Estado com o fim dos monopólios estatais facilitaria a exploração de terras raras – urânio e níquel, entre outros – com concessões a empresas nacionais para a produção de equipamentos de alta tecnologia na área de defesa. A Marinha poderia associar-se a empresas privadas para explorar minérios no fundo dos oceanos. O Brasil desenvolve a construção de um submarino de propulsão nuclear e, com o domínio do ciclo completo e de tecnologia avançada, poderá entrar no mercado de produção de miniusinas nucleares, a exemplo de outros países.
CONCLUSÃO
Um país com mais de 210 milhões de habitantes e de dimensões continentais não pode se dar ao luxo de ignorar essas e outras vulnerabilidades em áreas estratégicas, que poderão afetar seus interesses concretos e prejudicar seu desenvolvimento. Urge uma discussão franca entre o setor privado e o governo para a definição de estratégias a fim de que o Brasil ganhe autonomia em áreas essenciais e reduza ou elimine a dependência externa em segmentos críticos para resguardar a segurança interna do país.
A grande maioria dos países está colocando seus interesses nacionais acima de alinhamentos automáticos com base na ideologia ou na geopolítica. Esse é o caminho mais seguro para o Brasil nos próximos meses e anos.
Os acontecimentos político-militares recentes, é importante ressaltar, estão sendo contrabalançados pelo fato de que, apesar das tentativas da presidência anterior e do envolvimento de militares da ativa em ações político-partidárias, as Forças Armadas como instituição reafirmaram nos quatro anos daquele governo seu profissionalismo e evitaram qualquer interferência que colocasse em risco a democracia. Com base nessa nova atitude, chegou o momento de discutirmos de forma transparente, de um lado a normalização do relacionamento entre civis e militares e as práticas de um efetivo controle do Executivo, do Legislativo e do Judiciário sobre os militares, assim como, de outro lado, o fim do preconceito e das restrições para o fortalecimento das instituições que os representam.
Numa nova era geopolítica em que os princípios inscritos na Carta da ONU passaram a ser desrespeitados, o Brasil é um país indefeso, desarmado, incapaz de se proteger efetivamente da cobiça internacional com respeito a suas imensas riquezas biológicas, energéticas, hídricas, minerais e humanas. Como quase todo o orçamento das Forças Armadas é consumido por pensões, salários e despesas correntes, a capacidade de investimento do setor dependerá do fortalecimento da indústria nacional, com ou sem a presença de capital estrangeiro, e da obtenção de recursos próprios pelo Exército, Marinha e Aeronáutica nacionais. Para tanto, é urgente que, por meio do Ministério da Defesa, seja criada uma estratégia de longo prazo com programas sólidos e factíveis. A sociedade brasileira, se bem-informada sobre os perigos que nos ameaçam, saberá responder de forma positiva a essas novas e urgentes necessidades.



















