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Elders usam renome em defesa inegociável dos direitos humanos

Eles promovem a paz e a justiça, defendem fracos e oprimidos e circulam o mundo para salvá-lo das piores ameaças. Em geral, não vão a nenhuma missão em menos de quatro. Não, essa não é uma história de super-heróis do tipo Liga da Justiça. Mas sim uma descrição, bem simplificada, do grupo The Elders, composto por dez ex-líderes e personalidades mundiais. Eles não têm superpoderes; ou melhor, têm o mais importante deles: autoridade moral.

O The Elders (os mais velhos) é uma ONG criada em 2007 por iniciativa de Nelson Mandela, a partir de uma ideia do empresário Richard Branson e do músico Peter Gabriel. Ambos participaram da reunião desta semana no Rio.

O grupo é composto hoje por dez pessoas, e não deverá superar doze. Quem pode ser um Elder? O site oficial cita os critérios: a pessoa tem de ter respeito internacional, demonstrada integridade e reputação de liderança progressista, inclusiva. Não pode ocupar cargo público nem representar interesses nacionais. Tem de ter compromisso e experiência em questões relativas a paz e direitos humanos. Têm de ser capazes de liderar pelo exemplo (princípio caro a Mandela e citado no filme "Invictus").

O único membro latino-americano é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Os demais são: os ex-presidentes Martti Ahtisaari (Finlândia), Jimmy Carter (EUA) e Mary Robinson (Irlanda), o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, a indiana Ela Bhatt, o argelino Lakhdar Brahami, a ex-premiê da Noruega Gro Brundtland, a moçambicana Graça Machel e o arcebispo sul-africano Desmond Tutu. Mandela é membro honorário.

O grupo atua definindo temas e questões nas quais a posição conjunta de seus membros pode influenciar o debate. "A grande diferença e o novo conceito é que essas dez pessoas analisam as mesmas questões e buscam uma voz única para fazer a diferença. Essa é a qualidade do grupo", afirmou a norueguesa Gro Brundtland.

Este ano, entre outros, o grupo atuou no processo de reconciliação da Costa do Marfim, após uma guerra civil que deixou mais de 3.000 mortos, na negociação entre as duas Coreias e no processo de paz do Oriente Médio, além de promover campanha contra o casamento forçado de meninas.

Por Humberto Saccomandi | Do Rio


Os direitos humanos são universais, e não somente ocidentais. São sacrossantos, isto é, não estão sujeitos a relativização mesmo no caso de práticas tradicionais, como o casamento forçado de adolescentes. E não há países poupados deles, ainda que sejam aliados do Ocidente, como a Arábia Saudita, ou poderosos, como a China.

Essa poderosa defesa dos direitos humanos foi formulada pelo ex-presidente americano Jimmy Carter e pela ex-premiê norueguesa Gro Brundtland, em entrevista ao Valor. Eles estiveram esta semana no Rio, para a reunião semestral da ONG The Elders, formada por ex-líderes e personalidades globais. Na terça, os sete Elders que estavam no Brasil jantaram com a presidente Dilma Rousseff, em Brasília.

Leia abaixo a entrevista.

Valor: Existe a percepção de que a cobrança por direitos humanos vale mais para alguns países que para outros. Países muito poderosos, como a China, ou aliados importantes do Ocidente, como a Arábia Saudita, sofreriam menos pressão. Há dois pesos e duas medidas?

Jimmy Carter: Quando era presidente, nós nos preocupávamos com os direitos humanos no Brasil, no governo do presidente Geisel. Vim ao Brasil e defendi os direitos humanos básicos. Fiz isso em toda a região, e era muito impopular na época, pois os EUA tinham apoiado todos os ditadores em troca de acordos comerciais etc.

"O que Israel faz com os palestinos é um dos piores casos de abuso contínuo dos direitos humanos."

No meu próprio país houve um sério retrocesso em direitos humanos desde o 11 de setembro. Nós agora violamos a privacidade mais básica em conversas telefônicas, continuamos a usar Guantánamo como uma prisão para acusados de terrorismo, que são detidos indefinidamente sem processo, e tudo isso é ilegal. Assim, meu país está violando os direitos humanos.

Mas nós apoiamos o espírito da declaração dos direitos humanos de 1948, e esse espírito está expresso em apenas 30 artigos da declaração. Esses artigos foram cuidadosamente considerados nas difíceis circunstâncias imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. E são eles que devem ser aplicados em todos os casos, na Síria agora, na Líbia antes, no Egito, na China. Não há dúvida que grupos de direitos humanos condenam muitas coisas que acontecem na China e na Arábia Saudita. Há diferenças na aplicação da crítica e da condenação global, dependendo das circunstâncias, mas a definição do que são direitos humanos é sacrossanta e está na declaração de 1948.

Gro Brundtland: É preciso haver nuances. A questão é: que país ou instituições estão fazendo pressão sobre a China e a Arábia Saudita, para usar os exemplo que você deu. Existem outros. Há instituições da ONU que tentam fazer isso, como a Comissão de Direitos Humanos. Há países que levantam a questão dos direitos humanos há muito tempo. E o que conseguimos, desde nossos primeiros contatos com a China, foram mudanças muito importantes.

Assim, não acho que a acusação ou a ideia de que há uma diferença grande de tratamento entre os países seja uma questão importante. Pode às vezes haver coincidências em relação a que países estão levantando quais questões. Não acho que haja exemplos de países que são poupados em problemas de direitos humanos, sem que ninguém levante a questão. Um líder da Noruega, por exemplo, você não pode visitar a China, a Arábia Saudita ou nenhum outro país onde haja questões importantes de direitos humanos sem tratar delas.

Valor: Vocês estão promovendo uma campanha contra o casamento forçado de adolescentes. De novo, pode-se argumentar que em alguns países essa é uma prática tradicional. Até aonde vão os limites do relativismo cultural, isto é, da aceitação de práticas tradicionais?

"Se uma cultura religiosa de uma região aceita o casamento de crianças de 8, de 12 anos, não significa que isso é correto."

Carter: De novo, o padrão são os direitos humanos das pessoas sobre as suas próprias atividades. E isso inclui com quem você se casa. Se uma cultura religiosa de alguma região específica da África ou da Ásia aceita o casamento de crianças de 8, de 12 anos, não significa que isso é correto. Acho que a atitude fundamental daqueles que promovem os direitos humanos é condenar essas coisas, condenar a circuncisão forçada de mulheres, a venda de mulheres como escravas, o pagamento de salário menor para mulheres em relação aos homens pelo mesmo trabalho. Quando você retira a liberdade de uma pessoa, que nesse caso é mulher, isso caracteriza violação dos direitos humanos.

Valor: Países como a China costumam dizer que os chamados valores universais são na verdade valores ocidentais que o Ocidente quer impor ao mundo. É isso mesmo?

Carter: A China mudou dramaticamente nos últimos 30 anos. Quando os EUA reataram relações com a China, não havia liberdade religiosa e todo tipo de devoção era contra a lei. A posse da Bíblia era ilegal. Era ainda proibido que qualquer pessoa tivesse lucro em sua atividade e o mantivesse para si. Era contra a lei mudar de cidade sem a permissão do governo em Pequim. Todas essas coisas melhoraram desde então. Ainda há uma certa privação dos diretos humanos por causa do sistema de partido único controlado pelo Partido Comunista, mas houve progresso na China, e foi enorme. Acho que esse avanço vai continuar.

Mesmo a questão do partido único está mudando. Estive como observador em eleições locais absolutamente democráticas, realizadas em todos os pequenos vilarejos da China. Todos os eleitores são registrados quando fazem 18 anos, a votação é secreta e você não precisa ser membro do Partido Comunista para ser eleito. Isso é um passo anterior a mudar o sistema de partido único que ainda vigora nas grandes cidades. Em muitos aspectos, a China está avançando nos direitos humanos. Este ano, por conta da Primavera Árabe, a China apertou um pouco o controle, limitando, por exemplo, a possibilidade de reuniões públicas nas ruas de pessoas que possam discordar do governo. Ainda assim, a tendência é de melhora.

Brundtland: Os valores universais são valores globais. Mas há a história, e a maioria das democracias surgiu no mundo ocidental. Se você olhar no mundo pós-guerra, quando a ONU foi criada e quando foi aprovada a Declaração Universal dos Diretos Humanos, havia países de todo o mundo, mas não eram 190 países, como hoje.

Princípios como o direito à democracia, ao voto, à liberdade de expressão são diretos humanos básicos, não são apenas ocidentais, mas ocorreram primeiro no Ocidente. Em outros lugares, por exemplo, houve impedimentos, como a ocupação colonial.

Quando você ouvir pessoas que usam esse argumento, de que os direitos humanos são valores ocidentais, pergunte a elas o que querem dizer com isso. Querem dizer que nos seus países as pessoas não têm direitos básico, direitos civis? Esses direitos estão mais ou menos contemplados em todas as religiões, como não ferir outras pessoas, um princípio que está no centro da declaração dos direitos humanos. Quando você pressiona as pessoas que usam esse argumento, descobre que ele é usado por conveniência, não porque as pessoas realmente acreditam naquilo.

Valor: O grupo The Elders atuou na negociação do pedido palestino de reconhecimento na ONU. O sr. está envolvido pessoalmente nas negociações árabe-israelenses desde que o acordo de Camp David, em 1978. Por que a paz é tão difícil?

Carter: Porque o que os israelenses fazem com os palestinos é um dos piores casos de abuso contínuo dos direitos humanos. Os israelenses estão ocupando terra palestina. Os palestinos não têm liberdade de movimento, de expressão nem de reunião. Os palestinos são privados economicamente, pois qualquer negociação sobre a produção ou venda de produtos palestinos tem de passar por Israel. Impostos que deveriam ser palestinos são coletados e controlados por Israel. A única solução é Israel cumprir a lei internacional, que é apoiada pelo Brasil e pelo meu país. Isso significa se retirar dos territórios ocupados, com alguma negociação, e dar aos palestinos igualdade e a oportunidade da solução de dois Estados na região.

Valor: A comissão da ONU que a sra. presidiu criou, em 1987, o conceito de desenvolvimento sustentável. Hoje, porém, consumimos muito mais recursos que naquela época, de um modo ainda mais insustentável. O conceito precisa ser revisto?

Brundtland: Não. Se você ler o relatório hoje, 25 anos depois, o quem está lá é tão verdade hoje como quando foi escrito. O problema é que um número insuficiente de países, instituições e empresas buscaram atuar esses princípios. Por isso estamos atingindo pontos críticos em prejudicar a natureza e a sustentabilidade. O mundo está se movendo muito devagar.

O fato de haver mais consumo hoje do que 25 anos atrás não surpreende. Ninguém naquela comissão acreditava que o mundo pararia. Acreditávamos, porém, que a pobreza deveria ser enfrentada seriamente, e que o desenvolvimento é parte da questão ambiental. Você não pode proteger o ambiente sem encontrar um modo de desenvolvimento que não prejudique as futuras gerações. O mundo ainda não conseguiu isso.

O problema não é o conceito, ninguém quer reinventar a roda, mas é a ação. É preciso que mais países cheguem a um consenso para que a coisa avance. E não são é só a questão global que importa. Decisões internas de cada país, da China, do Brasil, também têm consequências para a pobreza e a eficiência. Muitas coisas acontecem em nível nacional sem uma relação direta com um acordo global.

Valor: Como esperar sustentabilidade se três quartos da humanidade quer viver como o quarto mais rico? Essa pressão é sustentável?

Brundtland: Aqueles que vivem no mundo rico têm de considerar essa questão seriamente, mas a mudança para um desenvolvimento sustentável tem de ocorrer tanto nos países ricos como nos países pobres. Senão, não funciona. Está claro que o tipo de consumo dos países ricos, mas também dos ricos em todos os países, é insustentável. Isso terá de ser mudado. Mas, se você vai aos detalhes do que precisa ser feito, há decisões políticas difíceis de ser tomadas.

Valor: Então as pessoas na Europa terão de consumir menos?

Brundtland: Não se trata só de consumir menos, mas de ter um impacto menor da natureza. As pessoas falam muito no aquecimento global, mas há outras questões. Há escassez de água em boa parte do mundo, em parte devido ao desperdício, ao uso errado, não sustentável. Isso lá na frente se torna um drama.

Valor: Melhorar essa situação exige investimentos. É possível investir nisso durante uma crise?

Brundtland: A crise é, em parte, uma crise de falta de investimento. Investir é importante. Se acharmos o modo correto de investir, isso reduziria o desemprego. Se pararmos de investir, as coisas não vão voltar ao normal sozinhas. Pelo contrário. Mas precisamos deixar de lado os velhos investimentos em favor dos mais sustentáveis. Há muito que pode ser feito e tecnologia pronta para ser usada. Mas hoje o medo impede as pessoas de investir, mesmo em coisas produtivas, criariam empregos e melhorariam o ambiente. É uma tragédia termos uma crise financeira e econômica ao mesmo tempo. Numa hora dessas, é preciso liderança.

Valor: A sra. vê liderança?

Brundtland: As pessoas estão tentando arduamente. Os líderes europeus estão tentando resolver a crise do euro. Já avançaram muito, mas é duro. A Europa é de novo um exemplo de uma mudança histórica, dramática. São países de centenas de anos que se juntaram sob uma moeda e que agora têm dificuldade de lidar com suas próprias decisões ambiciosas. E essa decisão é boa, de se juntar e juntos cuidarem melhor da população.

Valor: A sociedade moderna tende a valorizar mais os jovens e o novo. Vocês já sentiram preconceito?

Brundtland: Não. Sua observação está correta como conceito geral. Em muitos países não se leva mais muito a sério e pouco se ouve os mais velhos, ainda que o quadra não seja uniforme. Há nos últimos anos a crescente percepção de que isso precisa mudar, de que muita gente com mais de 60 anos ainda pode contribuir muito, de que eles têm sabedoria, mas também muita energia. Mas isso não diz respeito aos Elders. No caso de ex-líderes ou pessoas ativas no cenário global, ninguém repara se temos 65 ou 85 anos, pois já temos renome.

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