Análise – A estratégia da Coreia do Norte na África

By Samuel Ramani – Texto do The Diplomat

Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

Em 11 de junho deste ano, um relatório publicado pelas Nações Unidas revelou que a Coreia do Norte forneceu motores para navios e peças sobressalentes para barcos de patrulha para Angola, violando as sanções impostas pela ONU. Contratos de longo prazo similares para equipamentos militares também foram firmados entre o regime asiático e outras nações no leste da África, como Uganda e Tanzânia. As parcerias comerciais de Pyongyang com regimes anti-ocidentais na África sub-saariana vêm acontecendo, em boa parte, abaixo do alcance do radar da mídia, que tipicamente concentra sua atenção nos investimentos da China como principal elo entre o continente africano e a região da Ásia-Pacífico.
Essa desatenção às conexões bilaterais ajudou a desenhar uma imagem irracional da política externa norte-coreana. Porém, na África, o país tem uma estratégia coerente e seus acordos de defesa com nações do continente devem ser considerados no contexto mais amplo das tentativas do líder Kim Jong-Un de criar aliados através da oposição partilhada contra o neo-colonialismo ocidental.

Os esforços de Pyongyang para forjar cooperações duradouras com parceiros na África estratégicos são baseados em uma lógica em duas etapas: construção de soft power e fortalecimento estratégico da capacidade produtiva do setor de defesa de nações africanas.

Se, por um lado, a performance econômica catastrófica nas últimas décadas, o governo totalitário e o declínio do comunismo como força ideológica fazem a Coreia do Norte ser vista como um Estado-pária pelo Ocidente, a estratégia na África é um exemplo saliente de como o regime vem buscando aplacar o isolamento internacional e fabricar uma identidade anti-Ocidente que possa ser projetada no palco global.

Soft Power

No dia 02 de novembro de 2014, o jornal britânico Independent divulgou que o chefe de Estado de facto e ministro das Relações Exteriores da Coreia do Norte, Kim Yong-nam, foi convidado para um baquete e visita diplomática a Uganda, a pedido do presidente Yoweri Museveni.

O presidente ugandense elogiou o regime norte-coreano por seu papel de liderança na cruzada contra o imperialismo ocidental. Uganda surgiu como possível aliado natural de Pyongyang, uma vez que o governo de Museveni vem explorando o desdém público pelo legado da colonização britânica no país e condena organizações ocidentais pró-democracia e direitos humanos por fomentarem o imperialismo em seu país. Em particular, o presidente se mostrou ferozmente contrário às organizações em favor dos direitos da comunidade gay, cujo trabalho vai radicalmente contra a homofobia amplamente presente na sociedade ugandense.

A percepção do regime norte-coreano acerca dos direitos da comunidade LGBT segue mais ou menos a mesma linha, já que os veículos de propaganda no país frequentemente se referem às legislações favoráveis a esse grupo como resultado de decadência moral.

Conservadorismo e críticas aos “atentados” do Ocidente contra os “valores tradicionais” também são marcas da política externa da Rússia sob liderança de Vladimir Putin, então não é coincidência que tanto Rússia quanto Uganda tenham expandido relações econômicas entre si com um contrato assinado este ano e avaliado em 4 bilhões de dólares para a construção de uma refinaria de petróleo.

A Coreia do Norte fortaleceu laços de cooperação e segurança com a Rússia, em sintonia com os esforços de Moscou para estabelecer contato com Uganda e outros regimes anti-Ocidente na África. Sendo assim, a capanha de soft power de Pyongyang na África sub-saariana é, na verdade, uma forma de pegar carona na empreitada russa de apresentar um modelo de governância alternativo, conservador e autoritário para nações em desenvolvimento.

Heranças da Guerra Fria

Além da profunda desconfiança diante da ênfase ocidental nos direitos e liberdades civis, os países que a Coreia do Norte mais tem visado em sua ofensiva de soft power também tiveram relações prévias com o regime coreano antes e durante a Guerra Fria.

A Etiópia, por exemplo, vem sendo foco da exportação de munição armamentos norte-coreanos nos últimos anos, e a parceria entre o país africano e Pyongyang existe desde os anos 1970. O ditador Mengistu Haile Mariam se aproximou ativamente de conselheiros militares norte-coreanos durante a guerra civil nos anos 1980, criando um legado histórico para os atuais acordos de defesa.
Ainda que a Coreia do Norte venha mirando constantemente nações como Etiópia, Angola e Tanzânia independente de mudanças nos regimes locais, a lógica por trás desses laços evoluiu significativamente ao longo do tempo. Durante a Guerra Fria, Pyongyang visava nações africanas para enfraquecer a legitimidade da então recente Coreia do Sul e projetar uma imagem de Seul como nação subordinada, aliada aos Estados Unidos.

A Coreia do Norte estava ativamente obstruindo a entrada do Sul no movimento de Não-Alinhamento, e para tanto estava angariando apoio do bloco africano, e a aliança com o Egito foi especialmente crítica para alcançar esse objetivo.

Por conta da liderança pessoal de Gamal Abdel Nasser e do legado nacionalista pan-árabe, o Egito tinha papel simbólico forte no movimento Não-Alinhado. A demora do Cairo em reconhecer a Coreia do Sul foi, sem dúvida, causada pela ampla assistência militar de Pyongyang na campanha contra Israel nos anos 1970. O compromisso da Coreia do Norte com o Cairo foi além das vias tradicionais de estabelecer alianças através de contratos de armamentos e do envio de mísseis Scud – militares da Força Aérea norte-coreana realmente pilotaram aeronaves egípcias durante a guerra do Yom Kipur em 1973.

O colapso do comunismo como força ideológica levou ao reconhecimento em massa de Seul entre as nações do chamado Terceiro Mundo, e já nos anos 1990 as oportunidades de vitórias diplomáticas para Pyongyang eram dramaticamente restritas. Sendo assim, a lógica por trás dos laços de defesa com nações africanas se deslocou da colaboração em uma luta ideológica para o objetivo bem menos ambicioso de evitar o isolamento internacional completo.

Construindo capacidades de defesa

O soft power norte-coreano no setor de defesa sobreviveu desde a Guerra Fria por conta de sua abordagem única da venda de armamentos. Grandes potências como Estados Unidos, Rússia e China, tipicamente comercializam esses produtos visando receita, garantias diplomáticas ou a criação de “Estados clientes”. Já a Coreia do Norte, uma “potência menor”, não fechou contratos com a esperança de retornos desse tipo, mas sim buscando desenvolver instalações militares em países como Nigéria e Madagascar.

Ironicamente, a Coreia do Norte investe no setor de defesa de países africanos para ter uma receita menor e de curto prazo e perder dinheiro mais adiante, já que o desenvolvimento de bases industriais próprias acabará com a dependência dessas nações em relação ao apoio militar de Pyongyang.

Mesmo assim, a faceta interna dessa estratégia de desenvolvimento da África explica por que esses países arriscaram sofrer pressão e isolamento do Ocidente ao negociarem com um regime dissidente como o norte-coreano. Seu cálculo estratégico se baseia no seguinte pressuposto – os benefícios de longo prazo para o setor de defesa ao cooperarem com a Coreia do Norte podem compensar os riscos temporários de serem alienados pelo Ocidente.

Sendo assim, estrategistas e diplomatas ocidentais que queiram restringir a ameaça que Pyongyang representa devem enxergar além de sua área geográfica imediata e do risco da nuclearização para aliados como Japão e Coreia do Sul. Além disso, é preciso prestar atenção na rede norte-coreana de comércio de armas nos países em desenvolvimento, especialmente na África sub-saariana,  e que impede o colapso econômico do regime de Kim Jong-un.

Para que uma política de isolamento global da Coreia do Norte seja viável, nações africanas e estão violando conscientemente as leis internacionais ao comprarem armas e equipamentos de Pyongyang devem sofrer sanções e repercussões econômicas ao menos credíveis.

Caso seja possível persuadir esses países a colaborarem com as sanções da ONU à Coreia do Norte, a estabilidade do regime poderia se fragilizar ainda mais, e o custo de mantê-la poderia chegar a um nível que faria até seus patrocinadores de longa data  – China e Rússia – repensarem ou ao menos tornar suas alianças com Pyongyang menos incondicionais.

Mas, a má vontade das autoridades ocidentais em olhar para além do estereótipo da “Coreia do Norte irracional” e realmente examinar os mecanismos por trás da sobrevivência do regime tornam essa mudança de atitude muito pouco provável num futuro imediato.

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