Armas brasileiras são desviadas para rebeldes do Iêmen

Vendedor de armas em loja ilegal em Sanaa, a capital do Iêmen dominada pelos houthis

Folha de São Paulo
25 Janeiro 2025

O painel da ONU que avalia a guerra civil no Iêmen descobriu que dezenas de pistolas brasileiras que haviam sido vendidas para outros países acabaram em mãos de negociantes de armas que operam com os rebeldes houthis, que controlam a capital e o oeste da nação árabe.

O comércio de armas com o Iêmen é proibido por sanções das Nações Unidas desde 2014, devido ao conflito que opõe o antigo governo do país e os houthis, apoiados pelo Irã.

O desvio foi documentado com a ajuda da Taurus, a fabricante dos armamentos. A empresa e o governo brasileiro não são responsáveis legais pelo que ocorre com as pistolas após a venda, mas o caso explicita a fragilidade do processo de controle desses negócios.

O caso do Iêmen nem é único: há registro de apreensão de armas brasileiras vendidas ao Peru no Equador, por exemplo, e ao menos um caso análogo na Guatemala. Mas o detalhamento do desvio no Iêmen permite uma inédita radiografia do problema.

Em relatório ao Conselho de Segurança das Nações Unidas datado de 11 de outubro, o painel de cinco especialistas identificou ao menos 73 pistolas da Taurus sendo oferecidas em sites, posts de redes sociais, lojas e até em uma feira militar em Sanaa, a capital iemenita. A operação é supervisionada pelos houthis.

Dessas, 37 foram vendidas em 2022 para a polícia da Tanzânia, 20 faziam parte de um carregamento para o Ministério do Interior do Djibuti em 2015, e 12 integravam vendas de 2021 a 2023 à Arábia Saudita.

Os analistas consideram que o caso do Djibuti é a continuação de um esquema revelado em 2016, quando o Ministério Público Federal gaúcho descobriu que armas da Taurus tinham sido vendidas para os houthis pelo mercador de armas iemenita Fares Mohammed Manaa.

A Justiça acabou inocentando a fabricante, que alegou não ter ciência da condição de criminoso de Manaa quando vendeu o lote a ele no Djibuti. O traficante, que operava no Brasil, desapareceu.

Guerra e pirataria no mar Vermelho

Os negócios apontados pela ONU foram todos legais, conforme a cópia dos certificados de usuários finais das vendas mostra. A Taurus é uma das maiores exportadoras de armas leves do mundo.

“A Taurus, tão logo teve ciência, forneceu ao painel todas as informações disponíveis sobre as armas de fogo anunciadas pela internet, de modo que cabe a esse órgão e demais órgãos competentes fazer as investigações necessárias sobre eventual desvio ilegal de armas e conduta criminosa”, diz a empresa, em nota.

“A empresa não mantém qualquer ordem de negócios com o Iêmen ou com países em conflito”, afirma o texto. Os houthis ganharam notoriedade no atual conflito do Oriente Médio, quando provocaram disrupção do comércio no mar Vermelho ao fazer ataques em apoio ao grupo terrorista palestino Hamas em sua guerra com Israel.

No universo de 11 mil armas leves identificadas, de países que vão da Áustria à China, passando por Rússia e o Irã, o lote brasileiro parece uma gota no oceano. Mas não é: as 73 pistolas têm todo o caminho de sua venda legal detalhado, mas há muitas outras sendo oferecidas em território houthi.

Conheça a fábrica de armas da Taurus, em São Leopoldo (RS)

A Taurus, Empresa Estratégica de Defesa
A Taurus, Empresa Estratégica de Defesa

Em 14 de abril do ano passado, por exemplo, o negociante iemenita Mohammad al-Shahari colocou no X uma pistola Taurus G3C de 9 mm nova em folha à venda. Ela não faz parte do lote analisado pela ONU. A reportagem ligou para o número de contato divulgado, mas não houve resposta.

Folha localizou ao menos cinco outros anúncios semelhantes na rede e no Facebook. A BBC Brasil, em reportagem sobre o tema também neste sábado (25), disse ter localizado dez ao todo.

O Brasil é signatário do Tratado de Comércio de Armas, que está em vigor no país desde 2022. O texto busca estabelecer critérios diversos para coibir o contrabando de armas, particularmente as leves, mais fáceis de vender e de grande interesse tanto de exércitos irregulares quanto de criminosos comuns.

Para a diretora de Projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, embora não haja previsão de punição de países e empresas vendedoras, o controle feito no Brasil parece fraco. O Ministério da Defesa é o responsável pela análise de risco, na qual deve consultar o Itamaraty, antes de permitir qualquer venda de armamento.

“A decisão final é da Defesa. Pode ser o caso de o ministério fazer consultas mais detalhadas ao Itamaraty, a embaixadas”, diz Natália.

A ideia seria aprimorar os mecanismos antes de o negócio ser feito, já que o controle no pós-venda é bastante difícil de ser feito, ainda que previsto pelo tratado. “Você por exemplo pode pedir, seis meses depois da entrega, uma visita ao local de armazenamento dessas armas”, relata a analista.

“Este ministério não tinha conhecimento, conforme os fatos apresentados, de que os materiais foram utilizados para fins ilícitos, e não realiza o acompanhamento, rastreio e controle do destinatário/uso final dos produtos”, afirmou a Defesa, também em nota.

A pasta diz que todo o processo de liberação das armas para a Arábia Saudita e para a Tanzânia está documentado e seguiu as regras de exportações definidas em decreto de 2018. A nota não comenta o caso do Djibuti.

Para mais matérias sobre a empresa Armas Taurus clique na imagem

Compartilhar:

Leia também
Últimas Notícias

Inscreva-se na nossa newsletter