Coup d´Force – Mudanças Institucionais e Depuração Política na Tunísia

Mudanças Institucionais e Depuração Política na Tunísia 

Al Hussein Briefing especial para o DefesaNet

27 de Julho de 2021

 

 

Muhammad Hussein

hussein@alhusseingroup.com

 Consultor de Negócios Internacionais e

Analista de Defesa especializado no

Oriente Médio e Norte da África

 

 

 

1. A dinâmica do processo político iniciado em 25 de julho último na Tunísia tem feições mais compatíveis com uma expurgação do ambiente institucional, com vistas ao afastamento, tanto do Estado, como do Governo Tunisiano, de elementos insidiosos e destrutivos, restando descaracterizada a possibilidade de golpe ou síncope da ordem constitucional, como aventado por setores da mídia.

 

2. Conquanto se diga que há em curso um coup d´force, registre-se, por oportuno, que todo o concerto se desenvolve estritamente dentro das balizas da Carta Magna, justamente para permitir que as instituições estatais possam continuar no seu normal funcionamento e que a segurança nacional esteja assegurada.

 

3. As decisões tomadas pelo Chefe de Estado Tunisiano – Kais Saied – de suspender os trabalhos do Parlamento, afastar as imunidades parlamentares dos deputados e de demitir o Primeiro-Ministro Hichem Mechichi do país foram justificadas com base no art. 80 da Constituição da Tunísia.

 

Junto com seu staff Militar o Chefe de Estado Tunisiano, Kais Saied, anuncia a suspensão dos trabalhos do Parlamento. Foto da captura da transmissão via televisão. 

4. Esse dispositivo constitucional reza que o Presidente da República, diante de situações de dano ou ameaça iminente às instituições, à segurança nacional, à independência do país, ou que embaraçam o funcionamento normal do Estado, pode tomar quaisquer medidas para conter as circunstâncias excepcionais: “Article 80. In the event of imminent danger threatening the nation’s institutions or the security or independence of the country, and hampering the normal functioning of the state, the President of the Republic may take any measures necessitated by the exceptional circumstances […]”. O preceito apenas exige que o Chefe de Estado faça consultas prévias com o Chefe de Governo e com o Presidente da Câmara dos Representantes e que informe as medidas extraordinárias ao Presidente da Corte Constitucional: “[…] after consultation with the Head of Government and the Speaker of the Assembly of the Representatives of the People and informing the President of the Constitutional Court. The President shall announce the measures in a statement to the people.”.

 

5. O maior partido dentro do parlamento tunisiano – o Movimento Ennahda (uma versão light da Irmandade Muçulmana, porém não menos perigosa, de acordo com a posição oficial de vários Estados Árabes, principalmente os do Golfo) – vinha, há semanas, ameaçando o Governo e as próprias instituições estatais, com base no argumento falacioso de que, caso os seus membros não recebessem o importe que eles considerassem “justo” como verba compensatória pela persecução criminal que sofreram no período em que foram postos na ilegalidade pelo governo de Zine Al Abidine Ben Ali (1987-2011) – justamente pelas práticas de terrorismo, conspiração, assassinatos e ameaças aos interesses e a segurança de cidadãos de outros países árabes e mesmo do Ocidente, seus agremiados e asseclas patrocinariam vários atos de sabotagem e tumultos pelo país. O prazo peremptório dado pelo Ennahda foi justamente 25 de julho.

 

6. Qualquer analista responsável verificaria, ainda que num olhar perfunctório, que o país estaria sobre sério risco de exacerbação dos distúrbios das ordens política e social, ou mesmo da perpetração de possíveis atos terroristas, por um próprio agente (no caso, uma agremiação ou partido político) com expressiva representatividade no parlamento. Ressalte-se que o então Presidente da Câmara dos Representantes (Deputados) – Rached Ghanouchi – é também o líder do Movimento Ennahda e o apontado mentor intelectual dos possíveis atos, de acordo com briefings de agências de inteligência de vários países do Oriente Médio.

 

7. 25 de Julho é uma data especial na Tunísia – Proclamação da República. Pelo simbolismo do dia, a população decidiu protestar contra o Ennahda em várias regiões do país, tendo a sede do partido sido depredada ou incendiada em diversas municipalidades. Foram registrados, ademais, tumultos e confrontos mais contundentes com as forças de segurança. Além da situação ter se deteriorado rapidamente, some-se o fato de que, na percepção popular, o Ennahda e o Primeiro-Ministro Mechichi são os responsáveis imediatos pela duradoura crise econômica do país e pela inabilidade no gerenciamento da crise sanitária decorrente do Covid-19 – o país registra um número desproporcional e alarmante nos óbitos e contaminações, ainda que tenha sido iniciado um processo de vacinação em massa há meses.

População saiu às ruas em um misto de comemoração e de alguns  protestos. A imprensa europeia apresenta como manifestações contra o governo.

 

8. Outro aspecto que não se pode olvidar é de que o Ennahda não é somente um partido político com representação no Parlamento, mas se revela – e esse é o seu maior predicativo – como um proxy da Turquia e do Catar, tendo sido os perfeitos colaboradores e aliados fiéis de Ancara e Doha na Tunísia, defendendo combativamente os projetos desses dois Estados ainda que em detrimento dos interesses nacionais tunisianos.

 

9. Com uma recessão econômica sem solução em curto ou médio prazos, uma crise sanitária alarmante e com um sério risco de comoções sociais, a Tunísia decidiu começar um processo de retomada da Lei e da Ordem, com o afastamento de políticos e colaboradores pérfidos e a adoção de uma nova agenda governamental para permitir o retorno do país à normalidade institucional e a promoção de incentivos econômicos que possam melhorar os indicadores produtivos do país.

 

10. Até o fechamento desse Briefing (27/07/21), vários políticos, empresários, servidores públicos e agentes do governo foram proibidos de deixar o país. Alguns parlamentares e o próprio Ghanouchi (Líder do Ennahda) foram colocados em prisão domiciliar até que sejam apuradas as responsabilidades política e criminal dos mesmos em atos contra a segurança nacional tunisiana. As investigações serão extensivas a todos os colaboradores do Partido Ennahda, quer sejam políticos, militares ou mesmo civis.

 

A Tunisia se posiciona como um enclave entre dois países estratégicos do norte da África: Argélia e Líbia. A Turquia tem investido na influência na região competindo com o Egito e Arábia Saudita 

11. Um novo Primeiro-Ministro (Interino) será apontado. Tudo indica que, dentro de um mês, o Parlamento será dissolvido e marcadas novas eleições. O Presidente Kais Saied governará o país doravante por Decretos-lei até que um novo governo seja formado (nos termos do art. 70 da Constituição: “In the event of the dissolution of the Assembly, the President of the Republic may, with the agreement of the Head of Government, issue decree-laws which shall be submitted for ratification to the Assembly of the Representatives of the People during its next ordinary session”).

 

12. Arábia Saudita e Emirados Árabes felicitaram e corroboraram seu apoio político ao Presidente da Tunísia pelos atos de retorno à normalidade institucional do país.

 

13. Catar e Turquia são os países que mais perdem com a saída do Ennahda do cenário político tunisiano. Por óbvio, essa mudança de paradigma afeta os projetos expansionistas de Ancara e Doha de firmar influência no Norte da África. Resta, agora, ao Presidente Erdogan apenas o Governo Provisório em Trípoli (Líbia) como simpático aos interesses turcos na região. E o Catar tem como prioridade imediata se recompor com os seus vizinhos no Golfo.

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