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Brasileiros contra brasileiros em disputa de terra no Paraguai

Flávio Freire


ÑACUNDAY, Paraguai. Entre goles de chimarrão, sentado na soleira da casa feita de folhas de compensado, Carlos demora para abrir o jogo. Conversa sobre a vida no campo, a luta por um pedaço de terra, até que uma palavra ou outra, em bom português, começa a pontuar a conversa que antes transcorria em puro castelhano. Mais de meia hora depois, ele revela que é brasileiro, assim como outros cem que acampam em Ñacunday. Na área que os paraguaios tentam retomar de fazendeiros do Brasil que se instalaram ali há décadas, falar português é um risco.

A presença de Carlos e outros sem-terra brasileiros coloca em xeque o alvo da disputa: brasileiros tentam ocupar fazendas de brasileiros que, por sua vez, são acusados pelos paraguaios de explorar terras que, na versão deles, não poderiam estar nas mãos de estrangeiros. O imbróglio explica, em parte, por que os brasileiros tentam se camuflar em meio aos sem-terra vizinhos.

Ainda solteiro, no fim dos anos 1990, Carlos deixou Santa Catarina para tentar a sorte no país vizinho.

Comprou de um brasileiro que já vivia lá um pedaço de terra para plantar milho e mandioca e criar porcos. O sonho de ganhar a vida com a agricultura acabou três anos depois, quando descobriu que os 20 alqueires não estavam em seu nome.

— Um dia chegou um empresário brasileiro dizendo que as terras eram dele, me mostrou um documento e, quando fui ao cartório, descobri que meus papéis não valiam nada. Fomos expulsos sob ameaças — diz ele, enquanto a única filha brinca numa fogueira que serve para a família esquentar a água do banho e a comida. Hoje, Carlos vive em carpas (barracas).

A presença de brasileiros no acampamento 12 Apóstolos é tratada como tabu. Só depois de três dias percorrendo as trilhas que levam às barracas é que O GLOBO conseguiu a primeira aproximação. Muitos, assim que a reportagem se aproximava, trocavam o português pelo espanhol.

Alguns já aprenderam até a falar o guarani. É a direção do movimento que orienta os brasileiros a evitarem exposição. A luta dos sem-terra passa justamente pela tentativa de comprovar a ilegalidade da posse de terra por quem não é paraguaio.

— Sim, estamos tentando um pedaço de terra. Qual o problema? — diz um brasileiro, que mantém família no Paraná.

— Se resolverem a situação, trago todo mundo.

O comando dos sem-terra minimiza a presença de brasileiros no local — Tinha uns dez, mas já foram embora — diz Victoriano Lopez Cardoso, líder do grupo, tentando despistar.

— Eles estão proibidos de entrar aqui. A luta é do povo paraguaio — reforça outro dirigente, Rosalino Casco.

Assim como atesta não ter brasileiros, o comando evita falar sobre uma possível relação com o MST. Mesmo fincados em área fronteiriça, alegam que a distância de realidades afasta os movimentos, embora os paraguaios afirmem que a organização brasileira conseguiu "dar dignidade" a quem não tem terra.

Atualmente, 80% dos 6 milhões de habitantes do Paraguai não têm terra, informam os carperos (moradores das carpas). A maioria está em áreas de fronteira. No acampamento em Ñacunday, são10 mil, mas o grupo aumentará nas próximas semanas. Cerca de 40 barracas foram instaladas por ali nos últimos três dias, e os que chegam são bem amparados, depois de serem ouvidos pelos dirigentes.

 

Entenda o caso

Instalados há 13 anos numa área de lavoura em Ñacunday, no Paraguai, 10 mil sem-terra tentam retomar áreas que são cultivadas por brasileiros naquele país há anos. Nas últimas semanas, depois que o Exército paraguaio recebeu ordens do governo para medir e instalar marcos nas propriedades que ficam na faixa de fronteira, o clima ficou tenso.

De um lado, estão os carperos, que moram em carpas (barracas) e que passaram a ameaçar invadir as terras.

Do outro, fazendeiros brasileiros, que decidiram reforçar a segurança do terreno que cultivam. O foco da disputa resume-se a pouco mais de 167 mil hectares pertencentes ao empresário brasileiro Tranquilo Favero.

A direção do movimento carpero alega que os brasileiros estão em áreas públicas, proibidas de serem controladas por estrangeiros. E os brasileiros, que têm toda a documentação para comprovar a titularidade.

O governo de Fernando Lugo passou a ser pressionado.

Sem-terra de várias partes do país decidiram se trasladar para o acampamento 12 Apóstolos. Desde o último dia 11, frente à atuação do Exército local, homens, mulheres e crianças passaram a viver por lá.

Parte do movimento chamou a atenção para uma ocupação pacífica. Outra convocou uma assembleia para pedir mais tempo para negociar. Sexta-feira, um pedido de reintegração de posse de três propriedades privadas de brasileiros deve fazer com que os policiais trabalhem na desocupação da área.

A ação atingirá cerca de 50 famílias, e a polícia já foi orientada a atuar com cautela.

Um documento da corporação destaca que "devem ser realizadas intervenções prévias para se obter informações sobre a quantidade exata de pessoas, discriminando sexo e idade, e em forma coordenada com o Departamento de Direitos Humanos da Polícia Nacional e da Comissão de Direitos Humanos do Ministério do Interior".


 

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