Francisco de Assis Saraiva da Rocha
Suboficial (RM1-FN-IF) Comandos Anfíbios
Nota DefesaNet – O artigo foca um projeto próprio que não deve ser confundido com a Transnordestina (liga Eliseu Martins, no Piauí, Salgueiro (Pernambuco) até o Porto de Pecém, no Ceará ou seja integra somente dois estados e é voltada especialmente pata carga.
O Nordeste brasileiro, região marcada por uma riqueza cultural inestimável, por um litoral de vastas belezas e por uma população que ultrapassa os 57 milhões de habitantes, convive historicamente com um dilema logístico que compromete sua plena integração econômica e social: a ausência de uma infraestrutura ferroviária moderna, abrangente e conectada entre suas capitais.
A dependência quase absoluta do transporte rodoviário não apenas encarece o custo de circulação de bens e pessoas, como também aumenta a vulnerabilidade da região a gargalos econômicos e limita seu potencial estratégico.
Atualmente, mais de 65% de toda a carga transportada no Nordeste depende de caminhões, com custos médios por tonelada-quilômetro até três vezes superior ao do modal ferroviário, além de elevados índices de perda, roubo e emissões de carbono. Em termos de passageiros, o modelo rodoviário submete a população a viagens longas, pouco confortáveis e inseguras, em contraste com o que países desenvolvidos oferecem por meio de trens regionais e interestaduais. Nesse contexto, a concepção de uma linha férrea que una todas as capitais nordestinas — de São Luís, no Maranhão, até Salvador, na Bahia — é mais do que uma questão de planejamento de transporte: trata-se de um projeto de desenvolvimento nacional, com impactos profundos sobre turismo, defesa e indústria, além de se alinhar a paradigmas globais de infraestrutura sustentável e inteligência logística.

Registro de um acidente fatal na BR-020, no oeste da Bahia, mostra o custo do transporte rodoviário intenso no Brasil. Sem ferrovias integrando todas as capitais nordestinas, cargas e vidas dependem de estradas muitas vezes precárias, expondo motoristas a riscos enormes.
A ideia de uma ferrovia interestadual que percorra as nove capitais nordestinas não é inédita em termos conceituais, mas nunca saiu do papel de maneira integrada. Em países continentais, como Rússia, Austrália e até nações europeias com territórios mais compactos, corredores ferroviários de longa distância foram concebidos não apenas como instrumentos de transporte, mas como eixos de soberania e desenvolvimento. A Transiberiana, na Rússia, com mais de 9.200 quilômetros de extensão, é capaz de movimentar acima de 100 milhões de toneladas de carga por ano e servir como vetor de turismo ferroviário de escala global. Ela cumpre também uma função geopolítica vital: permitir ao Kremlin projetar sua presença econômica e militar desde Moscou até o Pacífico, garantindo mobilidade de tropas em áreas remotas.
Na Austrália, o Indian Pacific conecta Sydney a Perth com mais de 4.300 quilômetros, em bitola larga, permitindo composições de até 1,5 quilômetro de extensão, capazes de transportar simultaneamente passageiros e grandes volumes de carga, além de se tornar ícone turístico nacional. Na União Europeia, a experiência do Rail Baltica, ainda em construção, soma 870 quilômetros ligando os países bálticos à Polônia. Desde sua concepção, ele foi projetado como infraestrutura “dual-use”, obedecendo padrões da OTAN de capacidade de carga por eixo, altura de túneis e largura de plataformas, de modo a permitir o transporte de blindados e sistemas de artilharia. Esses exemplos mostram que, quando tratados como prioridades estratégicas, projetos ferroviários deixam de ser meros investimentos em transporte para se tornarem pilares de integração regional, segurança e desenvolvimento sustentável.

O Indian Pacific, um dos trens mais icônicos do mundo, transporta cerca de 22 mil passageiros por ano e movimenta até AUD 110 milhões (≈ R$ 386 milhões) anuais em turismo especificamente de luxo na Austrália. No Brasil, o potencial seria ainda maior se houvesse uma ferrovia ligando todas as capitais nordestinas, integrando turismo e transporte de passageiros.
O caso brasileiro, particularmente o nordestino, possui características que tornam essa proposta ainda mais urgente. O Nordeste é simultaneamente um dos maiores polos de turismo do país, com capitais que atraem milhões de visitantes nacionais e internacionais por ano, e um espaço de intensa produção econômica, seja pela agroindústria (fruticultura irrigada no Vale do São Francisco, soja no Maranhão e Piauí, algodão na Bahia), seja pelos polos industriais e tecnológicos emergentes, como o de software em Recife, o polo petroquímico de Camaçari e a indústria de energia renovável no Ceará e Rio Grande do Norte.
A região abriga ainda portos estratégicos, como Itaqui, em São Luís, Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, que funcionam como portas de entrada e saída para fluxos comerciais transatlânticos e que já possuem terminais de contêineres aptos a operar em padrões internacionais. Contudo, a ausência de um eixo ferroviário integrado encarece a logística, amplia o chamado “Custo Brasil” — estimado em até 15% do PIB — e retarda a inserção plena da região na dinâmica global de cadeias produtivas. Uma ferrovia interligando capitais poderia reduzir em até 30% os custos logísticos regionais, aproximando o Nordeste dos padrões de competitividade observados em países da OCDE.
Uma ferrovia nordestina, para estar alinhada às melhores práticas contemporâneas, não deveria se limitar a replicar modelos do século XX. Ela deve incorporar conceitos de Smart Railways, com sistemas de sinalização digital como o ERTMS (European Rail Traffic Management System), ou o CBTC (Communication-Based Train Control), que permitem maior frequência, interoperabilidade e segurança. A aplicação de tecnologias de Internet das Coisas (IoT) em sensores distribuídos ao longo da via e das composições possibilitaria manutenção preditiva, evitando falhas e reduzindo custos de interrupção.
A inteligência artificial poderia otimizar a gestão de tráfego em tempo real, garantindo uso mais eficiente da malha e reduzindo atrasos. Assim, a ferrovia nordestina nasceria integrada ao paradigma da Indústria 4.0, com capacidade de dialogar com portos inteligentes e zonas de processamento de exportação, criando um ecossistema logístico digitalizado.
No campo do turismo e do transporte de passageiros, a modernidade também deve ser incorporada. Trens de média velocidade (160 a 200 km/h), operando em bitola larga (1,6 m) e potencialmente eletrificados, poderiam oferecer viagens entre capitais em tempos significativamente menores do que os atuais. Fortaleza–Recife, por exemplo, poderia ser percorrida em cerca de quatro horas, contra até dez horas de ônibus. O projeto poderia incluir rotas noturnas com cabines, vagões panorâmicos e rotas culturais temáticas, oferecendo uma experiência turística comparável à de linhas como a Blue Train, na África do Sul, ou o Glacier Express, na Suíça. Essa dimensão turística não é um detalhe supérfluo: ela cria uma fonte de receita complementar, fortalece a identidade regional e transforma o transporte em produto cultural.

A viagem terrestre de Fortaleza a Recife depende exclusivamente do transporte rodoviário, expondo passageiros a longos tempos de deslocamento, alto risco de acidentes e ineficiência logística, evidenciando a carência de infraestrutura ferroviária integrada no Nordeste, especialmente entre duas importantes capitais.
No campo da defesa, o projeto se tornaria uma peça de mobilidade militar estratégica, alinhada ao conceito moderno de infraestrutura dual-use. O Exército Brasileiro e o Corpo de Fuzileiros Navais, em caso de mobilização, encontra hoje limitações claras na falta de infraestrutura adequada para deslocamento de blindados, veículos pesados e cargas sensíveis em larga escala. A ferrovia deveria ser projetada desde o início com parâmetros equivalentes aos da OTAN: carga por eixo mínima de 25 toneladas, plataformas largas e terminais logísticos preparados para transbordo de equipamentos militares.
Em um cenário de crise, a linha funcionaria como corredor de mobilidade rápida, permitindo não apenas deslocamento de tropas, mas também apoio a operações humanitárias em caso de desastres naturais, tão frequentes em áreas de enchente e seca no Nordeste. O fato de o projeto nascer com esse desenho militar garantiria sua legitimidade como investimento de segurança nacional, facilitando e indo de encontro com a Estratégia Nacional de Defesa.

O vasto sistema ferroviário da Rússia mostra sua eficiência estratégica, permitindo o transporte ágil de carros de combate e suprimentos essenciais para a proteção do território nacional e demais interesses do Estado.
Do ponto de vista industrial e econômico, os benefícios seriam profundos. O transporte ferroviário, além de ser três vezes mais barato do que o rodoviário por tonelada-quilômetro, tem menor pegada de carbono, alinhando-se às metas globais de descarbonização. Uma linha ferroviária nordestina que interligasse capitais, polos industriais e portos reduziria o custo de exportação da produção agrícola e mineral, hoje altamente dependente de caminhões e rotas rodoviárias saturadas.
Trens de carga com 120 vagões poderiam transportar mais de 12 mil toneladas por viagem, o equivalente a cerca de 300 caminhões, reduzindo custos logísticos, emissões de CO₂ e acidentes rodoviários. Mais do que isso, uma ferrovia moderna permitiria que o Nordeste se posicionasse como polo logístico para a indústria de energias renováveis, escoando componentes de aerogeradores, placas solares e até hidrogênio verde em larga escala, setor no qual a região já desponta com protagonismo internacional.
O desafio, naturalmente, está no financiamento e na execução. Projetos dessa magnitude exigem investimentos bilionários e execução em fases ao longo de uma década. Mas, ao contrário do que se imagina, a integração de melhores práticas modernas pode atrair capital. Ao se comprometer com padrões de sustentabilidade, o projeto poderia acessar linhas de crédito internacionais voltadas para infraestrutura verde, como os fundos climáticos multilaterais. Ao adotar desde o início parâmetros de interoperabilidade e uso militar, poderia mobilizar apoio do Ministério da Defesa. E ao ser estruturado em modelo de concessão ou parceria público-privada, com garantias federais e receitas múltiplas (carga, passageiros, turismo), poderia tornar-se atrativo para investidores nacionais e estrangeiros.

O transporte de 1.000 tanques M1A2 Abrams pelo Exército dos EUA demonstra o poder de uma malha ferroviária estratégica, capaz de movimentar forças pesadas de forma rápida, segura e coordenada. Uma capacidade que evidencia a lacuna logística do Nordeste brasileiro, limitando a logística de combate do Brasil.
Não se trata de sonhar com uma obra faraônica desconectada da realidade. Pelo contrário, trata-se de planejar racionalmente o futuro de uma região que concentra parte expressiva da população brasileira e que tem papel central no imaginário e na economia nacional. O Nordeste não pode continuar refém da precariedade rodoviária e da dependência de um modal caro e pouco eficiente.
Uma ferrovia ligando suas capitais, concebida como infraestrutura inteligente, sustentável e dual-use, seria não apenas um projeto de transporte, mas um símbolo de integração, de soberania e de aposta no desenvolvimento sustentável. A questão não é se o Brasil pode ou não arcar com tal projeto, mas se pode continuar a pagar o preço de sua ausência: congestionamentos crônicos, custos logísticos elevados, vulnerabilidade estratégica e oportunidades perdidas no cenário global.
Quando se observa a experiência de países que optaram por investir em grandes corredores ferroviários, percebe-se que os dividendos vão além da economia. A Transiberiana, para além de sua função logística, é também patrimônio cultural e elemento de unidade nacional. O Indian Pacific, mais do que um trem, é uma experiência que conecta australianos ao coração de seu território.
O Rail Baltica, ainda em construção, já é tratado como peça central da segurança europeia em um cenário de tensões internacionais. No Brasil, um projeto dessa natureza no Nordeste teria o poder de se tornar não apenas uma obra de engenharia, mas um marco histórico, capaz de redefinir a relação da região com o restante do país e com o mundo.
O futuro de uma nação passa por sua capacidade de se planejar estrategicamente. Se o Brasil deseja ser mais competitivo, mais integrado e mais soberano, precisa encarar a infraestrutura ferroviária não como luxo, mas como necessidade. O Nordeste, pela sua posição geográfica, por seu peso demográfico e por seu potencial econômico, deve ser prioridade nesse movimento. A ferrovia das capitais nordestinas, pensada sob os conceitos mais modernos de inteligência, sustentabilidade e segurança nacional, é um projeto que dialoga com o passado, reconhece os desafios do presente e projeta um futuro no qual turismo, defesa e indústria caminham sobre os mesmos trilhos. É hora de dar ao Nordeste a infraestrutura que sua população merece e que o país necessita para se afirmar no século XXI.




















