INTERVENÇÃO RUSSA NA SÍRIA. Vladimir de Taurus vai à Guerra.


INTERVENÇÃO RUSSA NA SÍRIA.
Vladimir de Taurus* vai à Guerra.


                                   

On s’engange et puis on voit 
(Vamos nos engajar e depois veremos).

Lema de batalha de Napoleão Bonaparte


                          

                                                                           Frederico Aranha aranha.frederico@gmail.com

 
Putin, falando perante a Assembleia Geral da ONU, declinou claramente as motivações (confessáveis) que levaram a Rússia a intervir na Síria, enfatizando a importância da luta contra o terrorismo: Apoiados na lei internacional, precisamos juntar esforços para resolver os problemas que todos nós estamos enfrentando, e criar uma genuína coalizão internacional contra o terror.  Os “problemas” a que se refere resumem-se no Daesh (Estado Islâmico).

Quando fala em genuína coalização internacional, não só despreza como descarta apoio ou atuação conjunta com a Coalização EEUU/NATO que ataca o Daesh desde 2014 – mais de 6.000 sortidas aéreas que aparentemente não causaram danos irreparáveis ao Daesh, concedendo ao grupo uma certa áurea de invencibilidade e aumentando seu prestígio internacional com os ramos radicais que se alçam e aderem ao Califado no Afeganistão e no Cáucaso (Chechênia e Daguestão) e em várias regiões da África.

Reafirmou o apoio total ao regime sírio, garantindo que só assim estará assegurada a vitória contra o Daesh, como se não houvesse outros grupos opositores em luta contra Assad. Lembra a história do “o rei está nu”, mas a corte jura que ele está vestido. Sobressai aqui a ambiguidade da Doutrina Gerasimov, que prescreve e comanda a estratégia intervencionista da Rússia. Uma vez mais, a Rússia se vale da cartada da “luta contra o terror” para tentar safar-se de uma situação precária tanto internamente quanto na arena internacional.
        
Levantamento recente de opinião (02-05 de outubro) realizado pelo Instituto Levada (Levada-Center), creditou a Putin, no ponto “vê com habilidade para fortalecer a capacidade militar e reformar as forças armadas”, 80% de aprovação, 4% a menos do que na ocasião da anexação da Criméia. As pesquisas mostraram também que 78% temem que a intervenção na Síria se transforme num “novo Afeganistão”.

No entanto, 46% aprovam o emprego de tropas russas no exterior, ao passo que 33% desaprovam. Mostram mais, o temor pelo futuro da economia com a inflação já beirando 15% ao ano e uma retração de 3,8% no PIB.  As motivações “não confessáveis” de Putin, mas notórias, são, certamente, a queda do preço do petróleo, principal produto da Rússia, e as sanções econômicas impostas pelos ocidentais por causa do imbróglio na Ucrânia. As sanções de modo geral não têm a gravidade que americanos e europeus alardeiam e que os russos exageram.

Contudo, a paralisia do fluxo de tecnologia que a Rússia necessita para modernizar seu setor energético, que responde por 65% das exportações do país e mais da metade do PIB (o impacto negativo é potencializado pelo colapso do preço do petróleo e os efeitos no preço do gás), é um golpe profundo atingindo a confiança doméstica e internacional na recuperação da economia do país. O único grande parceiro, a China, fornece apoio financeiro, porém não dispõe da tecnologia para explorar as grandes reservas de petróleo e gás do Círculo Ártico.
        
Além disso, o enfraquecimento ou a queda de Assad redundará no enfraquecimento internacional da Rússia, que seria acusada de abandonar o aliado. Os russos estão presentes na Síria há cinquenta anos, atuando nas áreas militar e civil e têm uma visão, embora muito particular, correta da situação. O país está fragmentado, dividido entre as várias facções em luta contra o regime que controla hoje em dia somente uma estreita faixa litorânea no Mediterrâneo e alguns enclaves cercados, representando cerca de 30% do território nacional.

A OPERAÇÃO
        
Dois dias depois da manifestação de Putin na ONU, as forças russas, organizadas de forma brilhante, iniciaram os ataques aéreos contra a panóplia de grupos anti-Assad. A justificativa da campanha, reafirmam, é a luta contra o Daesh, embora mais de noventa por cento dos bombardeios são direcionados e castigam as inúmeras facções rebeldes que ameaçam o coração da terra Alauita – a costa mediterrânea e os portos de Latakia, principal porta de entrada e saída da Síria e Tartus, base naval russa de vital importância estratégica, pois sem ela a marinha russa ficaria restrita ao Mar Negro.

Os russos empregam um conjunto de aeronaves que vão desde o excelente rústico avião tático SU-25 do tempo do Afeganistão, passando pelo SU-24, bombardeiro de asa variável problemático, remodelado é verdade, até os moderníssimos e eficientes caças SU-30 e caça bombardeiros SU-34 de quarta geração. A munição tem o mesmo padrão, foguetes convencionais, bombas alto explosivas comuns, de fragmentação, fósforo, termobáricas e poderosas bombas de precisão transportadas pelos SU-34.

Ocorre que essas bombas são guiadas por meio do sistema de posicionamento de rede russa GLONASS, cuja precisão pode ser afetada, por exemplo, por más condições climáticas. Para obter máxima eficiência, seria necessário infiltrar controladores de voo em terra para apontar alvos. Os russos não deslocarão gente para esta perigosa missão e treinar sírios para a função demandaria muito tempo. De modo que esse tipo de ataque sofre de uma margem de imprecisão.

Os excelentes helicópteros de ataque MI-24, MI-28 e Ka-52 têm sido empregados com parcimônia, pois há fundado receio das armas antiaéreas dos insurgentes, sejam convencionais, sejam mísseis portáteis (Manpad).  Foi realizado um único ataque com 26 mísseis de cruzeiro 3M-14 a partir da região do mar Cáspio, a mais de 1.500 km de distância, com resultados que não compensam os mais de US$ 30 milhões gastos. Esse tipo de arma é apropriado para atacar belonaves e grandes estruturas físicas.

Os grupos insurgentes não as têm. Tratou-se, simplesmente, de uma demonstração de força e advertência. Um batalhão da infantaria naval cuida da segurança da base aérea de Latakia e atende vários outros serviços. Já está ao largo de Tartus o cruzador Moscva equipado com modernos mísseis S300 antiaéreos e P500 contra navios de superfície. É uma visão geral da força de intervenção. O quadro está montado para uma grande ofensiva.

       Situação em 05 de Outubro de 2015


A campanha aérea russa está focada primariamente nas forças opositoras ao regime, correspondendo à lógica invertida de Putin revelada em sua fala perante a Assembleia Geral da ONU: Assad não só tem o direito de permanecer no poder, como é a chave para resolver o problema do Daesh. Ao contrário dos EEUU e muitos países ocidentais e do Oriente Médio, que veem Assad como o motor do conflito, Putin assevera que ele é a solução – a verdadeira motivação russa é simples: proteger Assad.

Putin acredita também que defende um princípio básico inafastavel contra a “intervenção externa” que visa derrubar um governo aliado – assistiu passivamente nos últimos quinze anos a queda sucessiva de regimes amigos na Sérvia, Iraque, Líbia e Ucrânia – o golpe profundo que frustrou a empreitada para manter no poder o aliado e amigo Viktor Yanukovych, culminando com a anexação da Criméia e o apoio aos “separatistas” do Leste. A situação hoje se encontra num impasse que só será resolvido pela negociação. 
       
Os pioneiros de campanhas aéreas foram os italianos na Líbia, em 1911. Enquanto a luta ficou circunscrita à zona costeira, os ataques aéreos alcançaram grande sucesso, até pelo inusitado. A medida que o combate se expandiu ao interior, o deserto, os beduínos com suas táticas fluídas praticamente anularam a vantagem estratégica da primitiva aviação de combate da época que, a partir de então, se limitou a lançar panfletos. Somente em 1928, por ordem de Mussolini, um quarto de milhão de homens foi deslocado para o teatro de operações, com licença para cometer todo tipo de atrocidade imaginável sob o sol (inclusive com o uso de gás venenoso), até que a “ordem” fosse restaurada.
        
Aviões tripulados e não tripulados, e outros aparatos aéreos, voando alto e baixo ou circundando a terra à moda dos satélites – não podem lidar com um inimigo disperso, pois não é possível enviar um F-16 ou um Predator contra um terrorista, real ou, no mínimo suspeito (o assassinato à distância na mais das vezes é contraproducente, porquanto o líder morto pode ser substituído por militante melhor preparado); não podem fazer prisioneiros e interrogar pessoas, em outras palavras obter informações de combatentes ou da população civil; não podem  “olhar” dentro das casas ou outras construções nas quais terroristas/guerrilheiros/insurgentes se escondam, planejem suas operações, armazenem armas e suprimentos, repousem e o que mais for necessário; não podem organizar checkpoints para fazer vistorias e com isso bloquear artérias e vias, a não ser atirando em tudo que se move nelas; quer dizer, não são capazes de operar seletivamente – é sim/não; e não podem ocupar e manter terreno.          
 
Assim sendo, para salvar Assad e segurar a zona costeira será necessária “a bota no chão”, quer dizer ação de armas combinadas, basicamente infantaria apoiada por artilharia, blindados, etc. Certamente, os russos não querem e não assumirão esta tarefa. Vão empregar o combalido exército sírio devidamente reforçado e as aguerridas milícias do Hezbolah, tropas da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã e, como já aconteceu na Ucrânia, “voluntários” russos e mercenários. Sem entrar em combate direto com os grupos insurgentes, sobretudo o Daesh, o alcance estratégico da intervenção russa é reduzido.

As funestas experiências da outra grande potência, os EEUU, no Vietnam e no Afeganistão demonstram que campanhas aéreas intensas contra guerrilheiros/terroristas são no mínimo frustrantes, para não dizer inócuas a longo prazo. Do Vietnam saíram humilhados. De resto, após quatorze anos de guerra, constata-se o ressurgimento do Taliban e da Al Qaeda extremamente reforçados e ativos. Os russos já sentiram também o gosto amargo do desastre, pois se retiraram do Afeganistão com o rabo no meio das pernas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação russa encerra um grande objetivo que foi alcançado, verdadeira obra de arte política de Putin: a Rússia tornou-se o player mais importante da região, portanto qualquer arranjo político ou solução para os conflitos e demais questões do Oriente Médio passa necessariamente pelo crivo do governo russo. Putin ganhou o prêmio maior: agindo onde os EEUU se omitiu; a Rússia preencheu um vácuo de liderança. Porém, e há sempre o imponderável em ações dessa envergadura, para manter o comando da situação, o custo será muito alto e pode se mostrar difícil de suportar pela Rússia.

Putin planeja também usar a intervenção na Síria para desviar a atenção de problemas caseiros, particularmente a situação na Ucrânia e o enfraquecimento da economia da Rússia, que espera aliviar com a possibilidade do afastamento das sanções econômicas. É possível a curto prazo. Mas, como na Ucrânia, à medida que a intervenção na Síria se intensificar – especialmente se houver baixas russas – o povo russo retirará rapidamente o apoio à ação.Ademais, sob o aspecto religioso, a aliança ostensiva de Putin com Assad, oHezbolah e o Irã, todos da ala xiita do islamismo, poderá levar ao isolamento da Rússia na região predominantemente sunita, o que poderá provocar reações com ataques terroristas em casa. 

Não se pode perder de vista que países como a Arábia Saudita e a Turquia já investiram e continuam investindo grandes recursos, suprindo os grupos oposicionistas da Síria, e não vão abandonar facilmente essa missão. A tendência é endurecerem. Os americanos, por sua vez, abandonaram o plano de organizar e suprir um Exército Sírio Livre e passaram a dar prioridade ao fornecimento de material de guerra aos curdos da Síria, que dominam o nordeste do país e é o único grupo que inflige continuadas derrotas ao Daesh, o grande e prioritário alvo dos EEUU e da NATO. Ocorre que a Turquia, membro da NATO e aliada fiel dos EEUU, é inimiga dos curdos do YPG (Exército de Proteção Popular) do Curdistão sírio. De qualquer sorte, nem os EEUU, nem a NATO planejam participar de combates em terra.

Definitivamente, o Oriente Médio é um quadro intrincado e confuso e de difícil manejo diplomático e militar. Nesse contexto, Putin está, por ora, dando as cartas. Pretende devolver à Rússia o protagonismo de outrora da falecida URSS, herdeiras da missão do Império Czarista, que se auto intitulava “Protetor da Terra Santa”. Não foi por outro motivo que ocorreu a Guerra da Criméia em meados do século XIX. O risco que a Rússia corre é se ver obrigada a lutar contra uma muito provável coalização dos grupos sunitas, incluindo a Al Qaeda (Frente Al Nusra), Exército da Conquista (41 grupos independentes aliados), Curdos e até o Daesh, como já ocorreu no Afeganistão.
 
*Por ocasião da ufanosa anexação da Criméia, os sicofantas apelidaram o Presidente Vladymir Putin de Tavrichesky –“Vladimir de Taurus” ou “Putin O Taurino”. Taurus era o antigo nome grego da Criméia. Somente o Príncipe Potemkin, que conquistou a península em 1783 em nome de Catarina, a Grande, ostentava esse apelido.
 
FONTES DE CONSULTA

 
http://www.kommentar.info.hu 
http://www.todayszaman.com/home
https://niss.academia.edu
http://www.longwarjournal.org/
http://samilitaryhistory.org/journal.html   http://www.defenseone.com/
http://topwar.ru/   http://defence-blog.com/  http://army-news.ru/
http://www.aljazeera.com/  
http://edition.cnn.com/  
http://www.understandingwar.org/
http://www.clarionproject.org/news/islamic-state-isis-isil-propaganda-magazine-dabiq
http://www.syriahr.com/en/  
http://www.bbc.com/news/world-middle-east-29052144 

 

Nota DefesaNet:

Recomendamos a leitura dos seguintes artigos:

Do Pesquisador Frederico Aranha:

Guerra de Nova Geração na Ucrânia. Colapso da Capacidade de Resistência Link.

GUERRA HÍBRIDA – Breve Ensaio Link

Do DefesaNet

Rússia – Manobras Center-2015 Doutrina Gerasimov? Link

Em inglês

Russia – Moves on Central Asia Link

Vladimir Putin – Interview for Russia TV Link

 

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