GLO – Livro sobre pacificação do Complexo da Penha e Alemão

A ideia surgiu em março de 2012. O coronel e relações públicas do Exército, Carlos Alberto de Lima, estava de férias quando resolveu transformar em livro a experiência da corporação durante quase 600 dias de ocupação dos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio, a partir de novembro de 2010. Em uma operação inédita, 1,8 mil homens do Exército foram recrutados para participar do processo de pacificação da área para conter a onda de ataques de traficantes à cidade. Nesta quarta-feira, exatos dois anos após o Exército participar da ocupação da área, dando suporte para a polícia demarcar o território, o coronel lança no Rio o livro Os 583 dias da pacificação do Complexo da Penha e do Alemão.

O trabalho é fruto de um garimpo em arquivos do Ministério da Defesa e das próprias forças de pacificação do Estado. Segundo Lima, o levantamento de dados foi feito em tempo recorde, levando quatro meses para o livro ficar pronto. O primeiro lançamento aconteceu em agosto, mas apenas para o Exército, aproveitando a data do Dia do Soldado. Agora, a apresentação oficial do livro (ainda sem editora) acontece para o "público externo", como ele mesmo define, em noite de autógrafos nesta quarta-feira na Livraria da Travessa. "Não houve um tiro disparado sem finalidade. Ninguém ficou ferido por bala perdida saída da arma de um militar", disse o coronel em entrevista ao Terra.

Terra – O seu livro tem uma frase emblemática de uma moradora que dizia no início da ocupação: "vocês vão ter que ter paciência, não estamos acostumados com a lei". Como foi a experiência de 583 dias no front? O que foi mais difícil no primeiro momento no processo de adaptação?

Coronel Carlos Alberto de Lima – Primeiro, muita gente achou que o Exército iria entrar preparado para guerra, que iria matar e sair atirando. E não houve nada disso. Não houve um tiro disparado sem finalidade. Ninguém ficou ferido por bala perdida saída da arma de um militar. Mas claro que era uma situação muito diferente. Era uma situação nova. Primeiro, foram expulsos os traficantes da linha de frente e ficaram os que não eram fichados. Foi um pouco complicado o começo. Mas, aos poucos, a situação foi melhorando. O disque-denúncia, por exemplo, passou a ser mais acionado. Os elogios começaram a aparecer. É claro que nesta situação, em que uma tropa fica por quase dois anos no local, incidentes ocorrem, ou pela iniciativa do traficante ou por algum problema pontual. Mas, ao longo do tempo, o armamento foi sendo retirado e só ficaram armas não-letais. Para mostrar e provar que a coisa estava sendo bem desenvolvida.

Terra – O Exército ficou com a responsabilidade inicial, já que, naquele primeiro momento, havia pouca participação da PM.

Coronel Lima – Eram 1,8 mil homens do Exército (deslocados para a Força da Pacificação) e, para evitar desgaste do militar, destes, 1,6 mil permaneciam o tempo todo nas comunidades (em escala de plantão de 24h em esquema de rodízio). Outros 200 ficavam fora da área de operação por uma semana. E a PM tinha um batalhão de campanha com 180 ou 200 homens. É bom lembrar que a presença do Exército na ocupação era para garantir a lei e a ordem. Por isso, este tipo de operação tem que ser pontual e numa área limitada. No início, o Exército ficaria um ano, mas o governo pediu para estender para poder preparar melhor os soldados (da PM). Muita gente acha que não devemos atuar nessa situação, mas está previsto na Constituição.

Terra – O senhor acredita que o Exército está mesmo pronto para esse tipo de ação? Não deveria ser atribuição da PM?

Coronel Lima – Tem que estar pronto, porque é uma das suas missões constitucionais. E eu falo no livro, por exemplo, que nós levamos 11 horas para a Brigada Paraquedista ocupar o Complexo da Penha e do Alemão. Estávamos prontos.

Terra – O senhor teve acesso a muitos documentos. Como foi esse "garimpo"?

Coronel Lima – A ideia de fazer o livro surgiu em março deste ano, nas minhas férias. Acredito que ele seja um marco pelo tempo curto que teve entre o início das pesquisas e a publicação, que foi de quatro meses. Eu levei um esboço para o general do CML (Comando Militar do Leste), ele gostou e adotou a ideia. A partir daí, eu pedi para ter acesso à documentação existente. Pedi dados ao Ministério da Defesa e também à Força de Pacificação – Exército mais polícia. E pesquisei junto a eles também. Fiquei com prazo de quatro meses porque o general Adriano (do CML) sairia e iria transferido. E queríamos lançar o livro com ele ainda aqui. Mas é bom lembrar: esse livro é da pessoa física Carlos Alberto de Lima. O livro, então, é bem diferente, porque tem muita documentação trocada entre CML, governo do Estado e Ministério da Defesa à época.

Terra – Eles são esclarecedores?

Coronel Lima – O mais importante são as datas em que foram expedidos documentos e as urgências das respostas que foram dadas pelo governo federal, por exemplo. Costumo dizer que a ocupação da Penha foi fruto de oportunidade. Não havia intenção de ocupar. O que ocorreu? Do dia 20 a 25 (de novembro de 2010) a situação na cidade estava um caos, com ônibus queimados e arrastões acontecendo. A Secretaria de Segurança do Rio recebeu a informação de que os ataques vinham do Complexo da Penha. E se resolveu, então, fazer um investimento, um ataque ao local com blindados da Marinha. Aí, provavelmente, os traficantes acharam que, mais uma vez, aconteceria um ataque e depois (as forças de segurança) sairiam e não voltariam mais. Então, conseguiram entrar com os blindados da Marinha e aconteceu aquela fuga que passou para o Brasil e o mundo, com aqueles homens saindo da Penha e indo para o Alemão. Nos três dias seguintes, a Secretaria de Segurança se reuniu com o Exército e nos perguntaram se poderiam contar com a gente (para uma ocupação mais prolongada). Foi então que no dia 28 de novembro o Exército participou da invasão para dar amparo à entrada da PM. Finalmente, entre os dias 28 de novembro e 23 de dezembro é que se negociou e se fez a Força de Pacificação.

Terra – O senhor não acha que o caminho real para a paz ainda é muito longo?

Coronel Lima – Se é longo eu não sei. O que eu sei é que precisa de integração entre as forças de segurança e a população, que, aliás, é fundamental no processo. Sei que hoje não existe outro caminho.

Terra – Se houver uma mudança de governo futuramente, o senhor acredita que o processo de instalação das UPPs ficaria ameaçado?

Coronel Lima – Não vou entrar nessa seara porque se trata de uma seara política. Mas a minha sensação é de que a UPP tem que ser mantida. É um programa de sucesso, que tem que continuar e até mesmo se aprimorar.

Terra – O Exército é mais bem aceito na favela do que a Polícia Militar?

Coronel Lima – Dentro das pesquisas que publicam em vários órgãos de mídia, o Exército sempre está nos primeiros lugares. É uma instituição de credibilidade, segundo apontam levantamentos. É claro que pode haver um problema ou outro. Mas (sobre a ocupação), a maioria da população foi favorável e disse, por pesquisas também, que sentiu na hora em que o Exército saiu. Mas ali é uma situação de segurança pública. Dizem que apreendemos pouca droga e fuzis, por exemplo, mas a nossa missão era garantir a ordem pública. Isso foi feito. Hoje a mídia mostra que os índices de crimes nas áreas baixaram até 80%. Além disso, imóveis estão sendo valorizados, por exemplo. O secretário de Segurança (José Mariano Beltrame) disse uma coisa e eu concordo: existe a política de segurança antes e depois do Alemão.

Terra – Os maiores interessados na paz são os moradores. No entanto, muitas vezes eles também são os críticos das ações de ocupação. É possível aprimorar essas ações?

Coronel Lima – Bom, eu costumo dizer o seguinte: quem é que prefere ficar dentro de casa, tendo que se proteger de tiro, ao invés de poder sair, fazer sua compra, ir até a farmácia, ir na sua padaria? Claro, as pessoas podem não se sentir bem com a presença constante da polícia, mas vejam bem o que era o Alemão antes da ocupação. Ontem ouvi alguém dizer que não há processo de pacificação sem a participação da própria população. A melhoria é para eles mesmos. Ou é melhor ficar em casa preso?

Terra – Numa ação como essa apareceram situações inusitadas ou curiosas também?

Coronel Lima – Trabalho no livro mais em cima de documentos mesmo, mas há um fato interessante, por exemplo. O próprio (Nelson) Jobim (então ministro da Defesa) foi para o computador e foi manusear e confeccionar documentos que davam apoio à instalação da Força de Pacificação. Isso foi possível pelo fato de ele ser jurista, ter sido ministro do STF e porque ele tinha experiência no Ministério da Defesa. Ele batia documentos (ao longo do processo de autorização para ocupação pelo Exército). Geralmente chama-se o auxiliar, mas ele mesmo bateu vários documentos. Tem dados interessantes também. O número de patrulhas feitas era muito grande. Só de patrulha motorizada nestes 583 dias foram 55 mil. Já as patrulhas a pé somaram 68 mil. Outra coisa: eram consumidos 4 mil litros de água por dia e servidas 1,3 mil rações (jargão do Exército para refeições) diárias. Também tivemos várias visitas às forças de pacificação na época, como autoridades do Brasil e do exterior, além de militares de vários locais, que queriam ver como se desenvolviam essas operações. A chefe de gabinete da (secretária de Estado americana) Hillary Clinton esteve lá, o príncipe Harry (da Inglaterra) esteve lá e vários outros.

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