Direito de andar armado pode ser limitado, mas não aniquilado

Adilson Abreu Dallari
conjur.com.br

Por qual motivo alguém quer ou precisa ter uma arma? Depende: se for um assaltante ou um policial, fica óbvia a resposta. Mas, se for apenas uma pessoa comum, um cidadão, pacífico, trabalhador e pai de família exemplar? Certamente não será para cometer algum crime. Por que, então? A resposta é o objeto deste artigo, que pretende evidenciar a necessidade de que se confira eficácia concreta aos preceitos constitucionais que, direta ou indiretamente, cuidam da matéria.

A inspiração para este artigo está numa lição do ministro Roberto Barroso, para quem “toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados”.

Assim, “ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais”. “Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas as normas do sistema.” (Luis Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, in RTDP 44/18, Malheiros Editores, São Paulo).

Para ser direto e objetivo, este breve estudo abordará apenas dois artigos da Constituição Federal: o artigo 5º e o artigo 144. Quanto ao artigo 5º, em seu caput ele garante, com igualdade e sem qualquer distinção, “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. No inciso II está dito que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, tendo-se como pressuposto que tal lei, como requisito de sua validade, deverá estar conforme à Constituição.

Está dito no inciso III que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, cabendo aqui anotar que não se trata apenas de proibir a tortura policial, mas, sim, do dever de impedir que qualquer pessoa seja vítima de tratamento desumano ou degradante.

Por último, registre-se que o inciso XI afirma que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador”, ficando claro que qualquer pessoa que ingressar na casa (em sentido amplo, abrangendo local de trabalho) sem consentimento, estará violando a Constituição. Como se sabe, todas essas garantias constitucionais são diuturnamente violadas no Brasil.

O número de homicídios é absolutamente inaceitável para qualquer país civilizado. Ninguém está seguro ao simplesmente andar pelas ruas. Os estupros são numerosos, mesmo sem contar os que não são denunciados pelas vítimas.

Quem já teve sua casa assaltada, estando o pai e a mãe acompanhados de filhas adolescentes, sabe muito bem o que é tortura e tratamento desumano ou degradante. Paralelamente, o Estado, proíbe, por lei, o exercício eficiente da legítima defesa pelas vítimas.

Não é o caso de se desenvolver aqui um rosário de inconstitucionalidades da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, a chamada Lei do Desarmamento. Muita gente, de boa fé, acredita que armas matam e que menos armas significam menos mortes.

Mas o fato incontestável é que o número de homicídios sempre aumentou, ano a ano, após a promulgação daquela famigerada lei.

O que se pretende aqui é destacar apenas um aspecto. Essa lei, em seu artigo 10, parágrafo 1º, inciso I, reserva o direito à auto defesa, mediante o porte de arma, apenas a quem “demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física”.

Fica absolutamente claro que o cidadão comum, a pessoa humana, não tem esse direito, que é conferido apenas a alguns profissionais. Soa simplesmente ridícula a exigência da prova de risco à integridade física, dado que, como é cediço, não há necessidade de provar aquilo que é público e notório. O risco ao patrimônio e à dignidade pessoal não são considerados.

Por último, cabe salientar que o reconhecimento do risco depende de uma decisão discricionária, sem qualquer parâmetro objetivo, por parte da “autoridade competente”. Esta última expressão vai entre aspas para deixar claro que se trata de um privilégio espantoso, sujeito a todo tipo de influências.

Não há exigência expressa de que a decisão seja devidamente motivada. O que foi dito acima já é suficiente para uma análise jurídica, serena e desapaixonada, da compatibilidade, ou incompatibilidade, do tratamento legal da matéria, em face dos mandamentos constitucionais, que, segundo o ministro Barroso, devem servir como vetor interpretativo de todas as normas.

É perfeitamente normal que pessoas comuns tenham diferentes posicionamentos a respeito do assunto armas, por idiossincrasias, sentimentos religiosos, influências midiáticas etc., mas o profissional do Direito deve pautar-se unicamente por razões de ordem jurídica.

Neste ponto, e nessa linha de orientação, cabe examinar o disposto no artigo 144, caput, da Constituição Federal, que se transcreve: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.

Como todo e qualquer dispositivo legal, este não pode ser interpretado isoladamente, fora de seu contexto, mas, no caso específico, este preceito deve ser interpretado à luz de tudo quanto foi dito acima.

A segurança pública, que deve ser proporcionada pelo Estado, não é apenas um direito de todos, como algo disponível, que qualquer pessoa pode querer ou não.

É mais que isso: é também responsabilidade de todos. Isso significa que a colaboração para a segurança do conjunto social é um dever de todos. E aqui vai a pergunta: como é que um dever constitucionalmente afirmado, pode ser proibido pela lei ordinária? As empresas de segurança, ou que lidam com valores, ou com explosivos, são obrigadas a colaborar com a segurança pública.

Se cada uma dessas empresas negligenciar no tocante a seu dever de zelar pela segurança, o corpo social, e cada pessoa, estarão em risco. A segurança privada, em cada condomínio residencial também é uma forma de colaborar com a segurança pública, no sentido de segurança de todos.

Cada pessoa que denunciar simples atitudes suspeitas estará emprestando sua colaboração. Enfocando agora nas coisas comuns, do dia a dia, sob outra perspectiva — a do criminoso, assaltante, estuprador — é melhor escolher a vítima entre quem se sabe estar desarmado, ou entre quem pode estar armado?

Outra pergunta: quem cuida de sua segurança pessoal, de sua família e de seus bens, quem está aparelhado para exercer a autodefesa, colabora, ou não, para com a segurança geral, como é seu dever?

A ordem jurídica democrática é absolutamente incompatível com o preconceito no sentido de que cada cidadão armado é um criminoso em potencial. Obviamente, não se está pregando o armamento geral e irrestrito, pois, elementarmente, todo direito é limitado.

Mas uma coisa é estabelecer limites e outra coisa, muito diferente, é aniquilar um direito, mediante condicionamentos abusivos, exacerbados, discriminatórios ou excessivamente onerosos. Positivamente, não existe na Constituição qualquer mandamento no sentido de que a vida, a incolumidade pessoal e do patrimônio e a própria dignidade da pessoa estejam totalmente, e exclusivamente, confiados ao Estado.

Como se sabe, existem ideologias que pregam a submissão ao Estado como algo ideal a ser atingido. A estes é bom lembrar a advertência da jornalista Ruth de Aquino: “No momento em que o Estado decidir tudo por nós, como pensamos, o que ouvimos, o que vemos, o que nossos filhos podem ou devem ver, ler, ouvir, será o fim da democracia e o começo da ditadura”. (Revista Época, 13/11/17 p. 138). Resta apenas completar.

O posicionamento de cada um em relação ao Estado não admite relativismos. Não é possível, racionalmente, que alguém seja contrário à submissão ao Estado, salvo no tocante a algum determinado assunto.

No caso, o exercício eficiente da legítima defesa, com os meios para isso necessários. Cabe a cada um fazer um exame de consciência, para aferir se tem uma mentalidade totalitária ou libertária. O totalitarismo não tem limites; as liberdades democráticas são sempre limitadas, tendo como pautas os mandamentos constitucionais.

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