Ucrânia, Iraque e a estratégia do Mar Negro

 
 

Por George Friedman – Texto do Stratfor
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

 
O Estados Unidos estão, neste momento, desestabilizados. O país enfrenta desafios no teatro Síria-Iraque, bem como na Ucrânia, e não tem respostas claras para nenhum dos casos. Não se sabe como seria o sucesso nos dois fronts, quais recursos estão prontos para serem investidos em cada um, nem se as consequências de uma derrota seriam gerenciáveis.
 
Um dilema desse tipo não é incomum para uma potência global. A própria abrangência dos interesses e a extensão desse poder americano dão precedentes para eventos que geram incerteza e confusão. A geografia e o poder dos EUA permitem um grau de incerteza sem que se chegue ao desastre, mas criar uma estratégia coerente e integrada é necessário, mesmo que essa estratégia seja apenas se afastar e deixar que os
acontecimentos se desenrolem. Não estou sugerindo essa opção, mas proponho que, em algum momento, a confusão precisa seguir seu rumo e intenções claras devem surgir. E quando surgirem, o resultado será a coerência de um novo mapa estratégico que engloba esses dois conflitos.
 
A questão mais crítica para os EUA é criar um plano integrado que considere os desafios mais urgentes. Esse plano deve começar pela definição de um teatro de operações coerente o bastante em termos geográficos, para que se possa combinar manobrabilidade política e planejamento militar. Do ponto de vista tático, pode não ser possível atuar nos dois cenários ao mesmo tempo, mas é essencial estabelecer um centro de gravidade de onde partem as operações. E está cada vez mais claro que esse centro é o Mar Negro.
 
A Ucrânia e o complexo Síria-Iraque
 
São dois os pontos de ação militar com ampla relevância potencial. Um é a Ucrânia, onde os russos lançaram contraofensivas na região da Crimeia. O outro engloba Síria e Iraque, onde forças do Estado Islâmico (EI) lançaram ataques para, no mínimo, controlar áreas específicas nos dois países e, no máximo, dominar o território entre o Levante e o Irã.
 
De modo geral, não há conexão entre esses dois cenários. No entanto, os russos têm problemas constantes do alto Cáucaso e há relatos de analistas chechenos trabalhando junto ao Estado Islâmico. Nesse sentido, os russos estão muito mais à vontade com o que acontece na Síria e no Iraque. Ao mesmo tempo, qualquer coisa que desvie a atenção americana da Ucrânia beneficia a Rússia. Já no Oriente Médio, o EI se oporá a Moscou no
longo prazo. Porém, seu problema mais imediato é o poder estadunidense na região, então qualquer coisa que distraia Washington favorece o califado fundamentalista.
 
É importante considerar que a crise na Ucrânia tem uma dinâmica política completamente  diferente do que acontece no Iraque. As forças russas e as do EI não têm nenhuma forma de coordenação, e, no fim, a vitória para um deles se chocaria com os interesses do outro.
 
Mas para os Estados Unidos, que precisam ter cuidado ao direcionar atenção, vontade  política e poder militar, as duas crises precisam ser pensadas de forma conjunta.
 
Os EUA estão no processo de limitar seu envolvimento no Oriente Médio enquanto tentam lidar com a instabilidade na Ucrânia. O governo Obama busca criar um Iraque integrado e livre de jihadistas, e ao mesmo tempo levar a Rússia a aceitar uma Ucrânia pró-Ocidente. O país também não quer deslocar grandes contingentes militares para nenhum dos locais. O
dilema é como atingir esses objetivos sem riscos. E se não for possível, quais riscos os EUA estão dispostos ou serão obrigados a aceitar?
 
Estratégias que minimizem os riscos e gerem máxima influência são algo racional a se almejar, e deveriam fazer parte da política externa de qualquer país. Segundo essa lógica, as ações americanas deve ser voltada a manter o equilíbrio de poder nas regiões através de representantes locais, e fornecer apoio material a esses representantes, mas evitandoenvolvimento militar direto até que não haja opção. O mais importante é garantir apoio de modo a acabar com a necessidade de intervenção direta.
 
No teatro Síria-Iraque, Washington trocou a busca por um Estado secular unificado pelo equilíbrio de forças entre alauítas e jihadistas. No Iraque, os EUA procuravam estabelecer um governo único centrado em Bagdá, mas agora tentam conter o Estado Islâmico com o mínimo de forças americanas possível apoiando contingentes curdos, xiitas e alguns representantes sunitas. Se essa estratégia falhar, a atuação estadunidense no Iraque será  a mesma adotada na Síria – buscar equilíbrio entre as facções. E talvez não haja outra  forma de operação. A ocupação americana no Iraque em 2003 não trouxe uma solução militar, e não está claro se uma reedição de 2003 seria bem sucedida também. Qualquer  ação bélica deve ser tomada tendo em mente resultados claros e expectativas razoáveis de que os meios usados atinjam esses resultados. Sob uma perspectiva realista, poder aéreo e forças especiais em terra provavelmente não serão o bastante para fazer o EI capitular ou se dissolver.
 
Já a Ucrânia tem uma dinâmica diferente, é claro. Os Estados Unidos perceberam os acontecimentos em Kiev como oportunidade para um posicionamento moral, bem como um golpe estratégico na segurança nacional da Rússia. Sob ambas as perspectivas, o resultado foi o mesmo – criaram-se empecilhos para interesses fundamentais de Moscou, e o presidente Vladimir Putin ficou em uma posição perigosa. Seu serviço de inteligência falhou completamente em prever e administrar os eventos no país vizinho, e também foi incapaz de instigar um levante pró-Russia significativo na fronteira entre as duas nações.
 
Além disso,os ucranianos já vinham derrotando as forças pró-Moscou – sendo que a  distinção entre essas forças e tropas russas propriamente ditas se perde a cada dia.
 
Porém, era óbvio que a Rússia não iria simplesmente deixar a nova realidade da Ucrânia se consumar, haveria contra ataques. Mas mesmo então, o país perdeu a capacidade de moldar a política de Kiev e sua influência se limita agora a uma pequena porção do  território vizinho. Sendo assim, Moscou mantém a postura agressiva na aposta de recuperar o poder perdido.
 
A lógica americana na Ucrânia segue a mesma linha do Oriente Médio. Primeiro, atuar via  representantes locais. Segundo, prover apoio material. Terceiro, evitar envolvimento militar direto. Em ambos os casos, parte-se do princípio de que os adversários – o Estado Islâmico no Iraque e a Rússia em relação à Ucrânia – são incapazes de organizar uma campanha  decisiva de ataque, ou que qualquer ofensiva possa ser suplantada com poder aéreo. Mas para dar certo, a estratégia americana também assume que haja forças coerentes de resistência tanto contra o EI em Bagdá, quanto contra Putin em Kiev. E se esse fator não acontecer, ou se dissolver, todo o planejamento se dissolve também.
 
Washington está apostando em aliados voláteis, e o resultado dessa aposta é importante no longo prazo. A estratégia estadunidense antes das Guerras Mundiais era limitar o envolvimento até que a única opção fosse uma intervenção massiva. Durante a Guerra Fria, os EUA passaram a adotar uma lógica preventiva de “pré-comprometimento” de alguns efetivos, o que se mostrou mais eficaz. Washington não é invulnerável a ameaças estrangeiras, apesar de essas ameaças ainda precisarem evoluir muito para representar perigo genuíno, e intervir mais cedo se mostrou menos oneroso do que enviar contingentes no último minuto. Nem o Estado Islâmico nem a Rússia são uma ameaça tão dramática aos EUA, e é bem provável que o equilíbrio de poder contenha essas forças em suas respectivas regiões. Mas se não for esse o caso, as duas crises podem se transformar em  risco mais direto. E orquestrar esse balanço de poderes requer esforço e ao menos alguns riscos.
 
O Mar Negro e o equilíbrio de poder
 
A manobra mais racional para países como Romênia, Hungria e Polônia é acomodar a Rússia a menos que tenham garantias significativas de agentes externos. E, por mais injusto que possa parecer, apenas os Estados Unidos podem dar essas garantias. O mesmo vale para os xiitas e curdos no Oriente Médio – ambos grupos abandonados por Washington nos últimos anos, pois se pensava que não manteriam sozinhos.
 
A questão para os EUA agora é como estruturar apoio. Ucrânia e Iraque parecem dois teatros de operações distintos e completamente desconexos, e o poder americano é limitado. Sendo assim, a concepção estratégica americana precisa evoluir e se afastar dessa visão de dois cenários separados, e passar a enxergá-los como aspectos diferentes de um único ambiente: o Mar Negro.
 
Se consultarmos um mapa, percebemos que o Mar Negro é o organizador geográfico das  duas regiões. O mar é a fronteira sul entre a Ucrânia, a Rússia europeia e o Cáucaso, onde forças de Moscou, jihadistas e o poder iraniano convergem. Já o norte o Iraque e a Síria estão a menos de 650 quilômetros do Mar Negro. Os Estados Unidos já adotaram estratégias centradas no Atlântico Norte, no Caribe, no Oeste do Pacífico, e assim por diante. E não se tratava apenas de estratégia naval, mas de um sistema integrado de projeção de poder militar que dependia de meios navais para abastecimento, envio de tropas e base para meios aéreos. Essa configuração permitia que a estrutura de comando irradiasse suporte em várias direções.
 
Washington tem um problema que pode ser tratado como dois ou mais focos desconexos que exigirão medidas redundantes, ou um quadro único que requer uma solução integrada.
 
É bem verdade que nem o Estado Islâmico nem a Rússia se veem como parte de um único cenário. Mas os oponentes não podem definir o teatro de operações para os Estados Unidos. O primeiro passo para traçar uma estratégia adequada é definir o mapa a fim de permitir aos estrategistas pensar em termos de unidade de forças e unidade de apoio. O que também permite pensar as relações sóciopolíticas regionais como parte dessa
abordagem integrada.
 
Vamos partir do princípio de que a Rússia intervenha no Cáucaso novamente, de que os jihadistas deixem a Chechênia e o Daguestão e vão para a Georgia e o Azerbaijão, ou que Irã avance para o norte. O desdobramento desses acontecimentos seria de extrema importância para os Estados Unidos. Sob a atual configuração estratégica, em que as autoridades com poder de decisão parecem incapazes de conceber as duas questões internacionais já existentes, uma terceira crise seria demais.
 
Mas pensando em termos do que vou chamar aqui de “a Grande Bacia do Mar Negro”, teríamos então a estrutura adequada para lidar com o desafio atual. Uma estratégia centrada no Mar Negro definiria a significância, por exemplo, da Georgia, na costa leste desse mar. E mais importante, elevaria o Azerbaijão ao nível de relevância que o país deveria ter aos olhos dos EUA. Sem o país, a Georgia tem pouco peso, e com o Azerbaijão, há uma força contrapondo os jhadistas no Cáucaso.
 
Essa nova abordagem também obrigaria Washington a definir relações importantes.
 
Primeiro com a Turquia, maior potência no Mar Negro além da Rússia. Ancara tem interesses ao longo de toda a Grande Bacia, especificamente na Síria, no Iraque, Cáucaso, Rússia e Ucrânia. Sob a lógica da estratégia do Mar Negro, a Turquia se torna um dos aliados mais indispensáveis, uma vez que seus interesses fazem interface com interesses americanos na área. Alinhar as aspirações dos dois países significa alterações políticas de ambas as partes. No momento, as relações entre Estados Unidos e Turquia parecem ser baseadas na esquiva sistemática de realidades conflitantes. Tendo o Mar Negro como ponto central nos planos de ação, essa postura evasiva, que já não ajuda a criar  estratégias realistas, seria impossível.
 
O papel central da Romênia
 
A segunda nação a ser considerada é a Romênia. A Convenção de Montreux (1936) restringe o trânsito de navios de guerra no Mar Negro pelo estreito de Bósforo, controlado pela Turquia. Porém, a Romênia é uma nação do Mar Negro, e nenhuma dessas sanções se aplica. No mais, seu poder naval se resume a algumas fragatas antigas apoiadas por meia dúzia de corvetas. Alem de assegurar uma potencial fase para operações aéreas na região, ajudar a Romênia a construir uma força naval significativa – potencialmente com navios anfíbios – resultaria em um agente de dissuasão contra a Rússia, e também moldaria o panorama do Mar Negro de modo que a Turquia atuasse ao lado da Romênia e, consequentemente, ao lado dos Estados Unidos.
 
Washington precisa retomar a lógica da Guerra Fria, composta de quatro etapas. Primeiro, na época esperava-se que os aliados dessem base geográfica e apoio substancial com tropas para responder a ameaças regionais. Segundo, os EUA forneceriam auxílio militar e econômico necessário para manter essa estrutura. Terceiro, os EUA pré-posicionariam tropas como garantia do comprometimento americano e também como apoio imediato. E por último, as forças americanas eram totalmente comprometidas a defender nações aliadas, apesar de nunca a quarta cláusula ter sido necessária.
 
No momento, as alianças americanas na Grande Bacia do Mar Negro não são
mutuamente sustentáveis e não permitem aos EUA exercer poder coeso na região, dada a divisão teórica em três cenários de operação distintos. O país oferece auxílio, mas de forma inconsistente. Há tropas envolvidas, mas sua missão não é clara, não se sabe se estão nas posições certas, e também não se sabe bem qual é a política regional. “Estratégia do Mar Negro” é apenas um nome por enquanto, mas, às vezes, um nome é  suficiente para direcionar o pensamento tático.
 
Enquanto os Estados Unidos pensarem na Ucrânia, na Síria e no Iraque como se estivessem em planetas diferentes, será impossível alcançar a logística para uma estratégia  integrada. Pensar no Mar Negro como pivô de uma única região heterogênea pode ancorar as ações americanas. Simplesmente embasar conceitos teóricos e estratégicos não vence os conflitos, nem os previne. Mas qualquer elemento que traga coerência aos planos dos Estados Unidos deve ser valorizado.
 
A Grande Bacia do Mar Negro, em sua definição mais ampla, já é objeto de envolvimento militar e político dos EUA, só não é percebida assim nos cálculos militares, políticos, e nemmesmo da mídia e do público. Mas deveria, pois essa perspectiva é bem mais alinhadacom a realidade que se desenrola rapidamente diante de nós.

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