Brasil deve ficar mais vulnerável diante da concorrência chinesa

Assis Moreira


Nos últimos 15 anos, o dia 11 de dezembro de 2016 figurou como um fantasma na agenda do Brasil e dos outros parceiros comerciais da China, por significar que, a partir dessa data, os países terão menos capacidade de proteger suas indústrias domésticas contra importações baratas procedentes do mercado chinês. O fantasma está se aproximando. Dentro de cinco semanas, Pequim quer ser automaticamente reconhecida como economia de mercado na Organização Mundial do Comércio (OMC).

O impacto imediato é que as autoridades investigadoras dos países perderão a flexibilidade que tiveram até agora para impor sobretaxas maiores contra produtos chineses acusados de preços deslealmente baixos.

Há três anos, o governo brasileiro começou a tentar se preparar para um cenário que expõe ainda mais a indústria nacional à concorrência chinesa. O governo revisou a regulamentação dos processos de investigação antidumping e introduziu um artigo que poderia ser usado contra produtos de países com situação peculiar de mercado, como o chinês.

No entanto, essa proteção, na prática, tornou-se ilegal, recentemente, a partir de decisão dos juízes da OMC numa disputa entre União Europeia (UE) e Argentina sobre taxação do biodiesel argentino. O dilema do Brasil e dos outros parceiros é o que fazer a partir de 12 de dezembro.

No novo cenário, segmentos importantes da indústria brasileira vão sofrer um choque de concorrência rapidamente – mesmo com as opções que o governo brasileiro estuda para tentar frear o risco de uma enxurrada de produtos vindos de seu maior parceiro comercial. Globalmente, o momento é especialmente sensível, com a retórica anticomércio em alta, desemprego elevado e produtores exasperados com o excesso de capacidade chinesa em segmentos como aço, alumínio e outros, que derrubam preços e causam mais prejuízos.

Dumping se refere a uma situação na qual o produto é exportado a preço abaixo do seu valor normal vendido no mercado doméstico. Ou seja, se a empresa vende na China a US$ 10 e exporta a US$ 5, é dumping. Nesse caso, as regras da OMC permitem ao país importador aplicar uma sobretaxa contra o produto que causa ou ameaça causar danos ao produtor local. Essa taxação adicional deve ser igual à diferença entre o preço de exportação e seu valor normal. Ou seja, pelo exemplo acima, a sobretaxa seria de US$ 5 por unidade.

OMC certamente não confirmará que a China vai automaticamente obter o status de economia de mercado após 11 de dezembro, até porque esse status não existe na entidade. O que existe é uma cláusula especial no protocolo de adesão chinesa, com exceção no uso normal de cálculo de dumping. É que, em 2001, quando a China foi aceita na OMC, os EUA, União Europeia (28 países), Japão e outras economias recusaram reconhecê-la como economia de mercado.

Argumentavam que os preços domésticos chineses embutiam muito subsídio, eram fixados por políticas e agências do governo não com base na demanda e oferta e sim em planejamento feito por Pequim.

China submeteu-se então à cláusula, com duração de 15 anos, pela qual os parceiros podiam usar uma metodologia diferente com preços de terceiros países em vez daqueles apresentados pelos produtores chineses.

E isso resulta invariavelmente em sobretaxas maiores contra o produto chinês. Agora, para Pequim a situação é clara: uma vez expirado o prazo dessa cláusula, daqui a cinco semanas, os países membros da OMC precisam fazer suas investigações com base no Acordo Antidumping, usando os preços e custos apresentados pelos exportadores chineses como base para calcular a margem de dumping em eventual investigação.

Sentindo a relutância generalizada, o governo chinês intensificou as advertências para os parceiros abandonarem a antiga prática. Insiste que o protocolo é claro, incondicional e não aceita má interpretação ou atraso na aplicação da nova situação. Do contrário, vai abrir denúncias na OMC contra os parceiros. Segundo a agência chinesa Xinhua, cerca de 90 países já aceitaram tratar a China como economia de mercado, incluindo Rússia, Austrália e Cingapura.

Mas Estados Unidos, UE e Japão, os grandes do comércio internacional precisamente com a China, resistem. Em meio à divisão entre seus membros mais liberais e protecionistas, a UE na próxima semana deve formalmente apresentar uma proposta de novo método para calcular taxa antidumping sobre exportações de países com "distorções de mercado" ou onde o Estado tem forte influência.

expectativa é que a Europa use um regime especial antidumping de 1988, aplicando um teste de cinco pontos para avaliar se um país deve ser considerado economia de mercado ou não. Além disso, os europeus vão modernizar seus instrumentos atuais de defesa comercial. A indústria europeia diz que sua sobrevivência está em risco. Reclama que, enquanto a UE aplica tarifas de importação abaixo de 50% contra produtos chineses, os EUA adotaram sobretaxas que passam de 200%, e que isso contribuiu para estabilizar o preço do aço, por exemplo.

Com os EUA, o clima é mais tenso. Seja quem for o próximo presidente, Hillary Clinton e Donald Trump já concordaram com Barack Obama de que não dá para aceitar o status de economia de mercado para a China. Na semana passada, a delegação dos EUA na OMC defendeu que as autoridades de investigação poderão continuar usando metodologia alternativa para calcular dumping chinês. Consideram que, ao contrário da visão de Pequim, a redação "frouxa" do protocolo de adesão da China ainda permite que os países decidam se o país é ou não economia de mercado após 11 de dezembro. E portanto não requer que os países parem de usar outra metodologia para sobretaxar produtos chineses.

Setores nos EUA reconhecem que haverá enorme disputa comercial com a China, na OMC. Mas notam que o contencioso vai demorar de dois a três anos diante dos juízes, dando mais tempo para suas indústrias se adaptarem ao novo cenário competitivo.

Governo perde uma opção para proteger indústria

A situação do Brasil é especialmente delicada para tratar com a China, seu principal parceiro comercial, em um cenário de recessão e tentativa de recuperação industrial. O país e outros parceiros na Organização Mundial do Comércio (OMC) apostavam no uso do Acordo Antidumping da entidade, pelo artigo 2.2, que permite em certas circunstâncias usar dados que não os do exportador investigado para calcular dumping.

Ocorre que, numa disputa entre União Europeia (UE) e Argentina, concluída há duas semanas, o Orgão de Apelação da OMC decidiu que Bruxelas errou ao usar dados relativos a empresas fora da Argentina para sobretaxar o biodiesel argentino. Os europeus achavam que o custo da soja argentina era irreal e artificialmente baixo, por causa de uma tributação interna, e construíram outro preço.

Os juízes da OMC decidiram que a UE não podia fazer julgamento de valor sobre o que está atrás dos preços apresentados pelo produtor argentino, pouco importa se são baixos ou não razoáveis. O importante é o foco microeconômico, no produto exportado, e não uma análise da economia sobre custos irreais ou não.

Com isso, a base legal de uma proteção introduzida no Brasil, que poderia servir para o caso chinês a partir de agora, "foi para o vinagre", na expressão usada nos meios comerciais. Há três anos, prevendo o momento em que a indústria brasileira ficaria exposta, no fim de 2016, à concorrência normal com a China, a expectativa era usar o artigo 14, parágrafo 16, do Decreto 8.058 de 2013, que regulamenta processos de investigação antidumping no país.

Esse artigo tem alguns dispositivos que podem ser usados na investigação contra parceiros sobre os quais as autoridades de brasileiras têm dúvidas sobre a formação de preços – portanto, contra a China. Assim, o que já estava difícil fica mais complicado. O grau de liberdade para defender a indústria se reduz, mas o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços planeja adotar medidas ainda este mês, de olho na situação chinesa.

Segundo fontes em Brasília, uma das opções ao alcance do governo é a inversão do ônus da prova. Ou seja, o produtor brasileiro, ao pedir investigação contra um produto chinês, passa a ter de provar que aquele segmento chinês não pratica economia de mercado. Isso reduz as queixas contra Pequim, mas deixa uma brecha para a indústria brasileira. Outras opções incluem certas portarias e normas que poderiam atrasar a aplicação do novo status para a China.

O Brasil quer, sobretudo, "ficar meio na moita", como diz uma autoridade que acredita que algumas questões vão demorar a ser definidas no mecanismo de disputa da OMC em relação à situação de Pequim.

No entanto, para importantes analistas, de pouco servem malabarismos jurídicos sobre inversão do ônus da prova para frear produtos chineses. É algo interessante, mas difícil de convencer os chineses, sobretudo bilateralmente. Também é considerado irrealista esperar que a China concentre fogo sobre os EUA e adie denúncias contra outros parceiros.

A postura brasileira é monitorada por Pequim por seu peso no mundo em desenvolvimento e por suas promessas. Em 2004, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva acertou com os chineses o reconhecimento de economia de mercado. A Câmara de Comércio Exterior, que deveria implementar a decisão, nunca o fez em razão dos riscos para a indústria nacional.

O governo chinês nos últimos tempos nem pressionava mais o Brasil sobre a questão da economia de mercado, segundo fontes que relataram o encontro de Michel Temer com o presidente Xi Jinping em Pequim, estimando que a questão foi entendida por Brasília.

O Brasil, além disso, é um dos países que mais aplicam sobretaxa antidumping contra produtos chineses, desde equipamentos a caneta esferográfica e escova de cabelo. E a dependência em relação a Pequim no comércio bilateral reduz a margem de manobra.

"Com muita sofisticação dá para fazer algo" quando o setor privado ficar mais exposto à concorrência chinesa, a partir de 12 de dezembro, diz alta fonte na cena comercial. Um instrumento de defesa comercial que pode ser mais usado são as medidas compensatórias. Elas podem servir para neutralizar o subsídio que o governo chinês concede à indústria, desde que se consiga comprovar essas subvenções. Mas essas investigações são complicadas. E o potencial de atrito com a China, principal comprador dos produtos brasileiros, continuará elevado.

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