Lauro Ney Batista: o último de uma geração de otimistas

Nota DefesaNet

Recomendamos a leitura de artigo do próprio Sr Lauro Ney Batista.

SOBRE OS CORTES DE VERBA PARA A DEFESA Link

O Editor


Júlio Ottoboni
Especial para DefesaNet

Um dos mais profundos conhecedores de aeronáutica do país, criador do primeiro núcleo de desenvolvimento de empresas aeroespaciais, Lauro Ney Batista, é  empresário de São José dos Campos, foi projetista aeronáutico e possui 30 anos de experiência na indústria aeroespacial e de defesa. Desiludido com o meio, acabou por encerrar sua vida profissional dentro do setor aeroespacial. Seu currículo comporta empresas como AVIBRAS, ENGESA e EMBRAER. Em 1991 criou sua companhia para fornecer serviços de design para a indústria aeroespacial e de defesa e descobriu um universo totalmente estagnado, repleto de dificuldades para o pequeno e médio empresário. Desde 2004 foi coordenador da CEDAER – uma comissão de empresas aeronáuticas da região do Vale do Paraíba, que tentavam buscar soluções para o setor e conseguir suporte para estimular investimentos que revertam o quadro de dificuldades enfrentadas até agora.
 
1) Nos últimos anos tem havido grandes disputas entre cidades e estados na reativação do setor da indústria de defesa, que é englobada pelo segmento aeroespacial. Qual sua análise para esse fenômeno, considerando as instabilidades desse mercado e até as incongruências governamentais, como por exemplo, a presidente Dilma lançar uma Lei de Incentivos Fiscais à indústria de defesa em março de 2012 e logo depois ter feito significativos cortes nas verbas desse Ministério?
 
A competitividade na busca por empresas sempre existiu na maioria dos municípios e estados com administração mais atuante, mas isso também depende diretamente do desempenho do próprio mercado. Os setores aeronáuticos e de defesa têm se destacado nos últimos anos devido principalmente aos programas governamentais de reaparelhamento das Forças Armadas, com destaque para o programa dos submarinos da Marinha, e dos caças F-X2 e do cargueiro KC-390, da FAB, entre outros. Infelizmente, como sabemos, o Programa F-X2 tornou-se um fiasco e o programa do KC quase seguiu o mesmo caminho, devido aos cortes no orçamento. Isso só não ocorreu porque a EMBRAER "passou o chapéu" mundo afora, em busca de parceiros de risco e conseguiu manter o programa. Infelizmente, porém, devido a esse fato, exceto pela própria Embraer hoje não existem empresas brasileiras no projeto – o que representa uma imensa perda para a indústria nacional. Com relação à lei de incentivos fiscais de 2012, a medida acabou sendo inócua, pois beneficiava somente a segunda parte do processo, com isenções de impostos sobre o faturamento, mas não garantia o principal e mais importante elemento, que é o próprio faturamento. E, além de não garantir contratos às empresas nacionais, devido aos cortes orçamentários, o governo federal voltou a comprar equipamentos de defesa no exterior – como fez recentemente nos acordos com a Rússia.
 
2) Como cidades com polos consolidados neste segmento podem se beneficiar?
 
Pela atração de novas empresas e pelo crescimento das já existentes. É importante lembrar que empresas de alto conteúdo tecnológico e com produtos de alto valor agregado geralmente possuem uma ampla rede de fornecedores especializados, a chamada "cadeia produtiva". Essa também se beneficia do crescimento das grandes companhias, gerando um efeito "bola de neve" positivo. Infelizmente, esse processo está sendo tolhido devido à diminuição da participação das empresas brasileiras no mercado aeroespacial, como no caso do KC-390, à indefinição de programas como o F-X2 e à total falta de incentivo governamental para o desenvolvimento das pequenas empresas do setor. Um excelente exemplo disso é o que acontece em São José dos Campos, onde, apesar do espaço disponível e da ociosidade da pista, não é mais permitida a instalação de empresas aeronáuticas no aeroporto da cidade. Como resultado, a imensa maioria das pequenas empresas de aviação e defesa que foram criadas na cidade na última década acabaram fechando, mudando de foco ou tiveram que se mudar para outras regiões. Até a própria EMBRAER está se vendo forçada a construir novas instalações em outras regiões (como Sorocaba), para poder expandir suas atividades. Com isso, perde o município e perde o país.
 
3) São Bernardo, Sorocaba e São Carlos, além do polo mineiro, são candidatas a terem o status de grandes centros produtores aeroespaciais. Qual o motivo desta descentralização das indústrias que se concentravam no eixo Rio-São Paulo?
 
Como mencionei na resposta anterior, os dois principais motivos são a proibição da instalação de novas empresas no aeroporto e o desinteresse das autoridades em fornecer soluções. Por quase dez anos, a CEDAER tentou, em vão, convencer os governos municipal e federal da importância de se criar uma área empresarial no aeroporto de São José dos Campos, de maneira a possibilitar a expansão da Embraer e também a instalação de outras empresas aeronáuticas no município. Como não houve interesse político em resolver o problema, as empresas acabaram se mudando para outras regiões, incluindo a própria Embraer, que já tem unidades em Botucatu, Gavião Peixoto e em Sorocaba.

A EMBRAER, inclusive, tem até aumentado a fabricação de componentes no exterior (como Portugal), devido, entre outras coisas, à dificuldade de encontrar fornecedores no Brasil. Esse cenário só deve melhorar após a inauguração do centro empresarial Aerovale, que está sendo construído no município de Caçapava, vizinho a São José. Este aeroporto empresarial, único na América Latina, só foi possível porque um empresário da construção civil soube da demanda das empresas aqui da região e se propôs a construir ele mesmo o aeroporto. Se não fosse por isso, o futuro da indústria aeroespacial no Vale do Paraíba continuaria incerto.
 
4) O criador da EMBRAER, Ozires Silva, disse que São José dos Campos – o maior centro aeroespacial do Brasil – não estava se preparando para as novas exigências do mercado aeronáutico e que sofreria com as consequências disto. O senhor concorda com essa afirmação e qual seria o motivo deste processo?
 
Concordo integralmente. Na verdade, o município de São José nunca se preparou para nada neste sentido. Tanto a criação do CTA, como posteriormente da Embraer, foram obra do governo federal, ainda na época do regime militar – o qual podia ter os seus defeitos, mas pelo menos sempre incentivou a indústria nacional. Tanto é, que nos anos 80 tivemos a maior expansão já vivenciada pelo setor de defesa, com a consolidação da Embraer, e empresas como AVIBRÁS e ENGESA se posicionando como os maiores exportadores do Brasil – inclusive, desenvolvendo tecnologia nacional, em vez de depender unicamente de compras externas. Ultimamente, porém, não apenas o DCTA parece ter perdido totalmente a sua função primária de incentivar a indústria aeronáutica nacional, quanto a prefeitura de São José parou completamente no tempo, dormindo sobre os louros da arrecadação das empresas que se instalaram aqui meio século atrás, mas sem nada fazer para se adaptar aos novos tempos e às novas necessidades do setor aeroespacial.

O resultado é a fuga de empresas e de investimentos que estamos vivenciando. Melhor exemplo disso, é que a solução para o problema de instalação de novas empresas aeronáuticas está sendo criada no município vizinho, apesar de todo trabalho de convencimento que tentamos fazer aqui em São José durante quase dez anos. Com isso, exceto pela Embraer, as poucas empresas do segmento aeroespacial que ainda restam em São José deverão se mudar para Caçapava.
 
5) O senhor criou e coordenou a CEDAER (Comissão Empresarial para o Desenvolvimento Aeroespacial) que atuou fortemente na década passada para restituir a indústria de defesa e aeronáutica na região do Vale do Paraíba. Como está a entidade hoje?
 
Encerramos as atividades, pois fizemos tudo que esteve ao nosso alcance aqui em São José e como o nosso principal foco era conseguir um aeroporto para instalar nossas empresas, a construção do AEROVALE, em Caçapava, resolve a necessidade da maioria das empresas do grupo. Sinto apenas pelas pequenas empresas que não conseguiram sobreviver e pelas que se viram forçadas a se mudar para longe de suas raízes. A minha própria empresa acabou falindo, pois dependia de fornecer serviços para essas empresas como forma de se capitalizar. Também dei duro para conseguir me capacitar como fornecedor para os programas KC-390 e F-X2, consegui assinar acordos de cooperação com a Boeing e com a Dassault, mas foi tudo em vão. No final do ano passado abri uma pequena relojoaria e hoje fabrico relógios artesanais para não morrer de fome (risos).
 
6) Houve o sucateamento do setor aeroespacial e quem foram os principais responsáveis por isso?
 
Houve e continua havendo. Somente grandes empresas como a EMBRAER, que já estão consolidadas, possuem poder econômico e dependem bem menos do poder público, conseguem progredir com seus próprios esforços. As demais estão quase que em completo abandono pelo governo. Até empresas pioneiras, como a AVIBRÁS, quase fecharam as portas nos últimos anos e esta só foi salva pelo contrato assinado recentemente com a Indonésia, para fornecimento de lançadores ASTROS 2. Se dependesse do governo federal, já teria ido à falência faz tempo. Os principais responsáveis por isso são a falta de interesse do governo em desenvolver a indústria nacional e a total ausência de continuidade nas poucas ações ensaiadas pelo governo. Vejam o ridículo exemplo do F-X2.

O governo federal fez de palhaços não apenas os concorrentes internacionais (e seus respectivos países e governos), como também todas as empresas brasileiras que iriam participar do programa. Tudo bem que, para uma empresa do porte da BOEING o dinheiro que eles gastaram aqui durante todos esses anos de enrolação do governo pese pouco no orçamento. Mas muitas empresas brasileiras gastaram o que não tinham e o que não podiam, para tentar participar do programa – incentivadas pelo próprio governo. Depois de tudo, o governo simplesmente deixou todos a ver navios.
 
 
7) Qual sua analise para o atual momento do segmento aeroespacial no país, estamos realmente criando outro período para a história industrial deste setor ou as ações são inócuas?
 
Enquanto não houver uma verdadeira política de estado – e não apenas de governo – para o desenvolvimento da indústria aeroespacial nacional, todas as ações, por mais bem intencionadas que pareçam ser, terão pouca eficácia. O governo brasileiro deveria se espelhar nas grandes potências mundiais, que possuem reais políticas de incentivo para o setor aeroespacial e de defesa e sustentam financeiramente essas empresas com programas governamentais, para que elas não dependam exclusivamente do mercado para sobreviver. É o preço que deve ser pago pela tão falada "soberania". Mas, o que estamos vendo ultimamente no Brasil é exatamente o contrário:

As empresas nacionais sendo sucatadas e empresas como a EMBRAER, que já foi um "orgulho nacional", hoje é uma empresa exclusivamente comercial, com participação cada vez maior de capital estrangeiro, nível de nacionalização de componentes cada vez menor e cada vez menos fornecedores nacionais. Até a Índia já está lançando seus próprios satélites de GPS, enquanto o Programa Espacial Brasileiro jaz em berço esplêndido há décadas. Enquanto países bem menores que o Brasil em quase todos os aspectos, como a Suécia, têm condições de vir nos oferecer jatos supersônicos, não conseguimos sequer comprar o que já existe pronto no mercado. É uma vergonha.
 
8) O senhor mencionou que as recentes políticas de incentivo tem sido inócuas. O senhor acredita que o governo conseguirá editar novas medidas para estimular a indústria de defesa sem a criação de linhas de crédito especiais para essas empresas em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)? O senhor é a favor da constituição de fundos emergenciais de suporte para esse setor para manutenção de sua capacidade produtiva em períodos de baixa demanda?
 
Como mencionei na resposta anterior, sem uma política consolidada e abrangente, qualquer programa ou incentivo isolado não passará propaganda. O maior problema do Brasil é que gasta-se bilhões com despesas supérfluas, corrupção e projetos mal elaborados, enquanto que a P&D e outras atividades importantes ficam relegadas a um quinto plano. Vejam os tristes exemplos do acidente do VLS, ocorrido há mais de dez anos. Esse foguete lançador de satélites já deveria estar em operação há pelo menos duas décadas, não fosse a total falta de prioridade e a verba "conta gotas" liberada pelo governo. Se já estivesse operacional, estaria poupando divisas para lançarmos nossos satélites e até gerando lucro, lançando cargas para outros clientes. Enquanto isso, até países como a Índia já passaram à nossa frente.  

O desenvolvimento de novas tecnologias e principalmente tecnologias que garantam a nossa soberania e a segurança nacional não podem ser encaradas como um produto comercial qualquer. Da mesma forma, as empresas que trabalham em setores estratégicos necessitam ter segurança institucional e financeira para poder atuar satisfatoriamente. Vemos isso em praticamente todos os países desenvolvidos, a começar pelos EUA. No Brasil ocorre exatamente o contrário: São as empresas que precisam utilizar seus recursos ou recorrer a empréstimos e até parcerias no exterior para bancar os programas do governo – tal como está acontecendo com o KC-390.  Assim, o Brasil nunca terá soberania em nada e sempre será um país de Terceiro Mundo.

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