Valores éticos da cultura militar: alicerces dos projetos educacionais no Exército Brasileiro

Socorro Maria de Jesus Seabra Sarkis

O presente artigo tem como objetivo explicitar as possíveis razões que podem justificar o sucesso dos discentes egressos do Sistema Colégio Militar do Brasil. Além disso, pretende-se relacionar que o bom desempenho dos alunos ocorre primordialmente devido à existência de projetos educacionais alicerçados em valores éticos fundamentais na formação do indivíduo.

Nas escolas militares, esses valores éticos são explicitados e vivenciados, diária e intensamente, por meio do Projeto Valores, que sistematiza as atividades desenvolvidas com seus integrantes na conscientização de valores éticos, como disciplina, responsabilidade, camaradagem, dedicação, patriotismo, civismo, respeito, honestidade, solidariedade, lealdade, cooperação e culto às tradições, entre outros.

Outra característica dessas escolas é a valorização do esforço e das atitudes individuais, bem como o reforço e o suporte ao crescimento pessoal. Não há intenção de se esgotar o estudo sobre os colégios militares, nem a pretensão de sugerir que toda escola seja um colégio militar, mas sim de identificar o que esses colégios bem-sucedidos apresentam e que poderia ser expandido para outras escolas, particularmente no que diz respeito à existência de um projeto orientado por um conjunto de valores éticos.

É evidente a confiança que as escolas militares inspiram na sociedade, assim como a valorização do professor, o incentivo ao aprimoramento profissional e a modernização da gestão educacional, sem esquecer as tradições e a prática de valores perpétuos, especialmente os relacionados ao respeito às normas, à disciplina e à hierarquia pilares que sustentam todas as organizações militares.

Uma das principais metas da escola deve ser a formação do cidadão consciente dos seus direitos e deveres, apto para atuar na sociedade, e não somente um reprodutor de conhecimentos. Afinal, “um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O que supõe nele o enraizamento de sua identidade nacional”. (MORIN, 2003, p. 65).

Em função disso, considera-se, neste trabalho, o conceito de pátria como “Nação a que pertence uma pessoa ou de que uma pessoa é cidadã”, assim como a ideia de que “Pátria transporta força e calor das afeições familiares a todos os homens de um mesmo País” (FEBVRE, 1998, p. 228). Nesse aspecto, as escolas, foco deste trabalho, apresentam um reconhecimento social nítido no incentivo e na promoção do amor à Pátria.

Afinal, “por mais que a dimensão transformadora da Educação exerça um enorme fascínio no discurso educacional, ela não existe sem sua face especular, que é a conservação” (MACHADO, 2006, p. VII), especialmente no que diz respeito à conservação dos valores que sustentam a sociedade. Nesse quesito, as escolas administradas por militares apresentam uma sintonia fina entre o que precisa ser conservado e o que merece ser transformado. E um dos valores mais resguardados é o incentivo ao cultivo do amor à Pátria nos discentes.

A educação deve, por um lado, preparar as pessoas para a vida e para o novo e, por outro, não deixar de ser alicerçada em valores tradicionais que transmitam segurança e respeito ao conhecimento acumulado pela humanidade. De uma forma geral, todos estão sendo atropelados pelo excesso de informação e por desvios dos diferentes papéis que cada um exerce na sociedade. O mais velho é interpretado como obsoleto, e se despreza o que de valor as pessoas mais experientes e mais vividas poderiam ensinar aos mais jovens.

Com o propósito de diminuir, ou até acabar com esse desequilíbrio, é indispensável que a escola considere a realização de projetos para implementar ações, promovendo o envolvimento de todos os seus integrantes com aspectos culturais e sociais da sociedade para, então, garantir uma formação política aos estudantes, tornando-os mais participativos na vida social, de modo mais dinâmico, crítico e autônomo.

É importante também que as escolas tenham propostas educacionais que promovam atividades diárias permeadas por valores éticos, assumindo, inclusive, uma organização curricular que disponibilize tempo para essas atividades. Com isso, o ambiente escolar “em que os sujeitos vivem deve estar permeado por possibilidades de convivência cotidiana com valores éticos e instrumentos que facilitem relações interpessoais pautadas em valores vinculados à democracia, à cidadania e aos direitos humanos.” (ARAÚJO, 2006, p. 35).

É relevante lembrar o equilíbrio que deve existir entre os direitos e os deveres de um indivíduo algumas vezes, reivindicar os direitos ultrapassa os limites da obrigação do cumprimento dos deveres. Portanto, o exercício da cidadania é um tema que merece toda atenção pelas escolas, para que a pessoa se mantenha em equilíbrio dinâmico e atue na sociedade visando aos aspectos individuais e coletivos, e na articulação destes em prol do bem comum a todos.

O que se deve valorizar é a lealdade e o respeito entre as pessoas que, mesmo sem se conhecerem pessoalmente, partilham o sentimento de patriotismo. Conforme afirma Harari “Acreditar que minha nação é única, que ela merece minha lealdade e que eu tenho obrigações especiais com seus membros inspira-me a me importar com os outros e a fazer sacrifícios por eles.” (2018, p. 146). Acrescenta, ainda, que as “formas mais amenas de patriotismo têm estado entre as mais benevolentes criações humanas”, pois estabelece uma união entre nações e previne, de certa forma, sentimentos de “ultranacionalismos” que leva os indivíduos a conflitos extremamente degradantes. (HARARI, 2018. p. 146).

Vale alertar também para o risco de alguns valores da cultura militar serem mal interpretados; por exemplo, a hierarquia não deve ser sinônimo de superioridade, mas sim uma expressão de respeito, assim como a autoridade deve observar os limites e conviver com a ideia de tolerância, de respeito ao próximo e de proteção da integridade de todos.

As denominações militar e civil, na maioria das vezes, são tratadas como mundos à parte, em uma separação que compromete o sentido de que todos pertencem a uma mesma nação, a uma mesma sociedade e a um mesmo horizonte.

E nessa sociedade, obviamente, existem cidadãos com diferentes funções profissionais: há o médico, o engenheiro o advogado e o militar das Forças Armadas, entre outros. Esse horizonte alerta para que todos devem ampliar sua visão e incentivar o diálogo, além de chamar a atenção para a importância de se considerar a tradição e os aspectos históricos nos quais todos estão imersos. (GADAMER, 2017).

Entretanto, não se pretende afirmar que as escolas militares sejam os detentores do monopólio da educação de qualidade. Antes, vislumbraram-se pontos convergentes entre a cultura militar e a vida em sociedade civil, de forma a inspirar outras escolas.

A valorização da escola precisa ser incentivada. Dessa forma, propõe-se uma reflexão sobre a cultura e a elaboração de projetos alicerçados em valores éticos e na construção de uma educação de qualidade.

Afinal, a sociedade muitas vezes privilegia o sucesso no âmbito profissional, o bem-estar e a realização pessoal, mas ainda não trata com relevância os valores éticos, fundamentais na formação do espírito cidadão e no desenvolvimento da personalidade e da integridade de todos pertencentes à nação.

-x-

REFERÊNCIAS:

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, [2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 9 dez. 2018.

BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Departamento de Ensino e Pesquisa. Portaria nº 12, de 12 de maio de 1998. Aprova a Conceituação dos Atributos da Área Afetiva, para uso pelos Órgãos e Estabelecimentos de Ensino subordinados, coordenados ou vinculados técnico-pedagogicamente a este Departamento. Rio de Janeiro, 12 maio 1998. Disponível em: http://www.decex.eb.mil.br/port_/leg_ensino/3_avaliacao/5_port_012_DEP_12Maio1998_AtribAreaAfetiva.pdf. Acesso em: 18 nov. 2018.

BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Portaria nº 549, de 6 de outubro de 2000. Aprova o Regulamento de Preceitos Comuns aos Estabelecimentos de Ensino do Exército (R-126). Boletim do Exército, Brasília, DF, n. 42, p. 5, 20 out. 2002. Disponível em: http://www.decex.ensino.eb.br/index.php/regensino. Acesso em: 23 out. 2016.

BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Vade-Mécum de Cerimonial Militar do Exército – Valores, Deveres e Ética Militares (VM 10). Brasília: SGEx, 2002. Disponível em: http://www.eb.mil.br/documents/10138/6563889/Vade+M?cum+Valores.pdf/f62fb2bb-b412-46fd-bda0-da5ad511c3f0. Acesso em: 18 nov. 2018.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 3.182, de 23 de setembro de 1999a. Regulamenta a Lei nº 9.786, de 08 de fevereiro de 1999 que dispõe sobre o ensino no Exército Brasileiro e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, ano 136, p. 3, 24 set. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3182.htm. Acesso em: 18 nov. 2018.

BRASIL, Presidência da República. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 dez. 1980. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6880.htm. Acesso em: 27/12/2018

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.786, de 08 de fevereiro de 1999b. Dispõe sobre o Ensino no Exército Brasileiro e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, ano 136, p. 1, 9 fev. 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9786.htm. Acesso em 18 nov. 2018.

FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

HARARI, Yuval Noagh. 21 Lições para o Século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. 10 Lições sobre Gadamer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

MACHADO, Nilson J. Projeto de Vida. Entrevista concedida ao Diário na Escola Santo André, em 2004. Disponível em: http://www2.fm.usp.br/tutores/bom/bompt54.php. Acesso em: 27 out. 2017.

MACHADO, Nilson José. Educação e Autoridade – Responsabilidade, limites, tolerância. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

MACHADO, Nilson José. Qualidade da Educação: cinco lembretes e uma lembrança. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 277-294, set. /dez. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v21n61/a18v2161.pdf. Acesso em: 21 set. 2017.

MACHADO, Nilson José. Educação: Cidadania, Projetos e Valores. São Paulo, SP: Escrituras, 2016.

MORIN, Edgar. KERN, Anne-Brigitte. Terra-Pátria. Traduzido. Porto Alegre: Sulina, 2003.

PÁTRIA. In: Dicionário Aurélio de português online. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/patria Acesso em: 15 nov. 2017.
 

-x-

Sobre o autor:

Socorro Maria de Jesus Seabra Sarkis – Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP (FEUSP). E-mail: socorrosark@gmail.com

Possui graduação em Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Professora do Sistema Colégio Militar do Brasil no Colégio Militar de Manaus (1985), Colégio Militar de Fortaleza (1990), Colégio Militar de Salvador (2001). Nesses colégios, ministrou as disciplinas de Ciências e Biologia, com destaque em Feiras de Ciências e Olimpíada de Biologia. Finalmente na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, de 2009 a 2012, na disciplina de Biologia. De 2013 a 2020, organizou o Plano de Gestão Ambiental e assessorou a Seção de Licitações e Contratos na implementação das Licitações Sustentáveis. Ministra palestras com o tema da Dissertação sobre Valores Éticos da Cultura Militar, disponível no link: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-14052019-122606/pt-br.php. Escreveu artigo “Valores Éticos na Cultura Militar – Alicerces fundamentais dos projetos educacionais do Exército Brasileiro”, Anuário da Academia Militar das Agulhas Negras, Ano 9, nº 7, 2019.

Compartilhar:

Leia também

Inscreva-se na nossa newsletter