Preparação do líder militar para a guerra e a paz

General de Divisão R1 Joarez Alves Pereira Junior

A principal missão dos militares é a defesa da Pátria. Para tanto, sua diversificada formação deverá prepará-los para o pior cenário – a condução da guerra –, durante a qual vive-se um regime de exceção, com mudanças significativas quando comparada ao tempo de paz, e há, até mesmo, uma modificação da legislação para a aplicação nesse período de crise extrema.

A vida profissional dos militares, em tempo de paz, tem foco na preparação para a guerra por meio de estudos e realização de exercícios militares. Além disso, esses profissionais conduzem as atividades administrativas da Força; participam de atividades em apoio à população, das chamadas ações subsidiárias e de apoio ao desenvolvimento nacional; garantem a presença do Estado em áreas remotas; exercem a vigilância de nossas fronteiras; e, por vezes, participam de operações de maior intensidade, nas ações de garantia da lei e da ordem ou nas missões de paz. Mas tudo muito distinto da realidade do conflito bélico.

A proposta do presente artigo é apresentar algumas ideias sobre quais seriam as principais condicionantes para preparar esse militar para exercer a liderança em situações e ambientes tão diversos, nos tempos de paz e de guerra.

Destacamos, inicialmente, que as bases da liderança são o conhecimento, a virtude e a visão. O conhecimento refere-se à capacitação e aos conhecimentos adquiridos, necessários para o bom desempenho de uma função em que exercerá a liderança. A virtude retrata os valores internalizados e as atitudes a serem praticadas pelos militares para o efetivo exercício da liderança. A visão diz respeito à capacidade do líder de ver o que ainda está invisível para a maioria, sendo obtida por meio da experiência profissional e de vida, própria ou de outros, da aprendizagem com erros e acertos e, particularmente, da sabedoria extraída do “meditar” sobre essas experiências.

Para formar e desenvolver o líder militar é preciso, portanto, trabalhar na construção dessas bases de sustentação da liderança. É perceptível, no entanto, que o conhecimento, as virtudes e a visão necessários para os tempos de guerra e de paz diferem, em alguns aspectos, quanto ao grau de importância e necessidade, o que impõe desafios para a formação do líder militar, diferentemente do que ocorre em outros campos profissionais.

Faremos, então, uma breve exposição sobre alguns aspectos relacionados a esses três pilares da liderança e suas diferenças para a guerra e para a paz.

CONHECIMENTO

Na preparação do líder militar para a guerra, o primeiro passo fundamental é a capacitação nas técnicas e táticas militares. O conhecimento a ser adquirido está mais diretamente relacionado ao emprego das unidades militares, de pequenas frações até divisões mais elevadas, à maneabilidade e à condução de operações em combate. O emprego do aparato militar é o conhecimento mais relevante a ser adquirido em suas diferentes especialidades na linha combatente, logística e de suporte.

É preciso, também, estudar o inimigo e conhecê-lo. Como afirmou Sun Tzu, “se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas”. Para tanto, é preciso trabalhar o conhecimento no âmbito da “inteligência militar”, em que parte dele se concentra no estudo do inimigo que se vai encontrar na guerra.

Fruto do pragmatismo e da objetividade que regem os combates, o conhecimento geral a ser obtido está mais focado nas ciências exatas e nos cálculos numéricos e estatísticos.

Mesmo quando se trata das ciências humanas, o foco deve ser nos conhecimentos aplicados ao tempo de guerra, como, por exemplo, o Direito Internacional dos Conflitos Armados e o Direito Internacional Humanitário.

O campo da inteligência a ser mais trabalhado na preparação do líder para a guerra diz respeito à inteligência emocional, tanto nos aspectos relacionados à inteligência interpessoal quanto à inteligência intrapessoal. Nesse sentido, o líder deverá ser exercitado nos aspectos relacionados ao autoconhecimento, ou seja, no conhecimento das próprias emoções que, uma vez trabalhadas, irão capacitá-lo a exercer o autocontrole, isto é, a capacidade de liderar a si mesmo antes de liderar  outros. Deverá, ainda, ser capaz de reconhecer a emoção nas pessoas, desenvolvendo empatia, facilitando a capacidade de motivar e influenciar o grupo e fazendo com que os demais compartilhem da sua visão.

No que diz respeito ao líder militar do tempo de paz, os principais conhecimentos a serem adquiridos dizem respeito a outras áreas. O conhecimento a ser aplicado nas atividades diárias estará bastante relacionado a aspectos administrativos e gerenciais, particularmente aqueles sobre a administração pública militar, que normatiza as ações desse servidor público. Os estudos da história militar, por vezes, não se sobrepõem aos interesses do conhecimento da história geral. O pragmatismo e a objetividade não têm o mesmo peso, e, em tempo de paz, as ciências humanas crescem de importância, particularmente nos aspectos relacionados à convivência social e à interação pacífica do grupo.    O próprio estudo do direito, no tempo de guerra focado nas exceções e nos direitos aplicados aos conflitos, volta-se para o direito civil e para a vasta legislação e normas do tempo de paz. A inteligência emocional continua relevante para o exercício da liderança e para a condução de pessoas, porém não com o mesmo foco e importância da capacidade de encorajamento exigida no tempo de guerra, em que o risco de morte é constante e a motivação é fator determinante para se contrapor ao instinto natural de sobrevivência.

Essa diversidade de conhecimentos a serem adquiridos pelo militar, o qual preparado para exercer a liderança em tempo de guerra, possivelmente a exercerá mais em tempo de paz, impõe um desafio para a composição do currículo das Escolas Militares, tanto em sua formação, quanto ao longo de todo o itinerário formativo.

Mas não ficam somente na obtenção do conhecimento as diferenças da preparação do líder para a guerra e para a paz. Vejamos o que se deslumbra para a internalização de valores e de prática de atitudes.

VALORES E ATITUDES

Ser possuidor de valores e ser praticante de algumas atitudes constituem uma base sólida para o exercício da liderança, seja em tempo de guerra, seja em tempo de paz. O que se pretende não é mostrar que se aplicam somente à guerra ou à paz, mas sim que sua importância é mais expressiva em determinado período específico.

Por exemplo, patriotismo é um valor basilar do militar, tanto no período de paz quanto no de guerra. No entanto, na guerra, ele cresce de importância, pois serve de fator de motivação para o enfrentamento das agruras do combate. Portanto, é mais exigido em tempo de guerra do que em tempo de paz. É nesse sentido que são listados alguns valores e atitudes mais exigidos em um período do que em outro.

Além de patriotismo, em tempo de guerra são ainda necessários:

    – coragem física: a capacidade de superar o medo físico no cumprimento de uma tarefa;

    – honra: o princípio de quem tem uma conduta virtuosa e que faz com que o militar conserve a própria estima e se faça merecedor da estima dos outros;

    – ser exemplo: ser a referência a ser seguida pelos demais;

    – entusiasmo: ter fé na missão e estar motivado e verdadeiramente apaixonado pelo que faz, mesmo diante de muitas adversidades;

    – autoconfiança: a confiança em si próprio, que constitui um atributo fundamental para inspirar a confiança nos outros;

    – lealdade: traduzida na verdade ao falar, na sinceridade ao agir e na atuação de acordo com os preceitos que regem a honra. É uma postura fundamental para a coesão do grupo;

    – capacidade de motivar: ter a capacidade de influenciar as pessoas de modo a extrair o melhor de cada um e de motivá-las para, se preciso for, sacrificar a própria vida;

    – confiança: encarar as situações pelo lado positivo, esperando o desfecho favorável, apesar das dificuldades;

    – senso de justiça: julgar com neutralidade em período de crise e estresse, punindo e recompensando na medida justa;

    – disciplina: agir corretamente quando ninguém está observando;

  – determinação: persistir mesmo diante de situações críticas e difíceis, mantendo o firme propósito de não desistir sem lutar;

    – espírito de corpo: a ser desenvolvido como fundamento para o fortalecimento e a motivação do grupo para o combate, particularmente em situações adversas; e

    – capacidade de comunicação não verbal: quando os gestos e as posturas são mais eloquentes do que as palavras.

Conforme já mencionado, os valores e as atitudes relacionados são importantes para o tempo de paz, mas se tornam imprescindíveis para o exercício da liderança em tempo de guerra. Outros, embora importantes para a guerra, são indispensáveis para o tempo de paz:

    – honestidade: valor de quem apresenta probidade, isto é, de quem não se deixa corromper;

    – integridade: ligada à inteireza, ou seja, ser pleno, apresentando um caráter sem falhas;

    – senso de justiça de paz: julgar de acordo com as normas e leis “civis”, punindo e recompensando de acordo com as diretrizes aplicadas em um período sem o estresse do combate;

    – coragem moral: agir de acordo com os princípios morais, respeitando ideais e valores e colocando-os acima dos seus interesses pessoais;

    – coerência: apresentar sintonia e conexão entre as palavras e ações;

   – capacidade de comunicação verbal: se expressar de forma eficiente para transmitir ideias e, dessa forma, auxiliar no desempenho e na coesão do grupo; e

    – flexibilidade: adaptar-se às mudanças externas de um mundo cada vez mais dinâmico e com maior inovação tecnológica.

É notório que é grande o rol de valores e atitudes comportamentais a ser trabalhado para a formação do líder militar para o tempo de guerra e de paz. Ele não se esgota na listagem acima, que procurou destacar somente os imprescindíveis para cada situação e não agregou os desejáveis.

A terceira pilastra de sustentação da liderança é a visão. Como poderá ser trabalhada nos ambientes de guerra e paz?

VISÃO

A visão é reconhecida como um dos pilares de sustentação da liderança tendo em vista que, com o líder, simplisticamente falando, o grupo iria mais longe do que se estivesse sozinho. E, para tanto, o líder desenvolve a capacidade de ver aquilo que ainda está invisível para a maioria.

E essa é uma qualidade a ser trabalhada e desenvolvida. Ela vem do somatório do conhecimento e do aprendizado das experiências vividas por si próprio e pelos outros. Com base nisso, para desenvolver sua visão, o líder deverá refletir sobre esse somatório e tirar os ensinamentos que servirão de base para projetar o futuro, criando a sua visão para tomar a decisão mais acertada.

E quais os aspectos que diferenciam a visão obtida pelo líder para os tempos de guerra e os de paz? Na guerra, a finalidade precípua é vencer as batalhas e, por fim, vencer a guerra, o que passa, em boa parte das vezes, pela destruição ou incapacitação de ações por parte do inimigo.

Um dos grandes focos de visão do líder, para tanto, estará na obtenção da surpresa, o que proporcionará grande vantagem em relação ao inimigo. Ele buscará tirar aprendizado do estudo de outros conflitos, das guerras e da história militar, que serão de grande valia para adquirir a sabedoria necessária para desenvolver a visão.

De grande importância, também, é a sua experiência em combate. No entanto, o mundo vive, apesar de não parecer, um dos maiores, senão o maior, período de paz da sua história. Mesmo para os militares profissionais, não é rotina a sua participação em ações reais de combate, condição que ainda é mais expressiva no contexto sul-americano, em que o último grande evento de guerra campal ocorreu no século XIX, por ocasião da chamada Guerra do Paraguai. Para compensar esse fato, a participação do líder em manobras e exercícios militares, em exercícios de simulação e em outros eventos que imitem o combate real é de extrema importância.

Já no tempo de paz, a visão estará direcionada para a busca de melhores resultados, procurando ser eficiente e eficaz no desempenho de ações administrativas, sujeitas a amarras regulamentares do serviço público, por vezes muito limitadoras.

A experiência necessária para o desenvolvimento da visão não virá das ações de combate, mas da vida administrativa e burocrática. A evolução das técnicas administrativas e dos meios de suporte é mais rápida, e o líder deverá estar atento para não tentar reproduzir uma verdade passada como visão plena de futuro.    

Por fim, considera-se que, embora a preparação principal dos militares esteja relacionada à atuação em combate, é possível, e até provável, que viverá a maior parte do tempo em período de paz. A preparação do líder é condição basilar da formação militar e deve ser praticada em todas as escolas militares. No entanto, como se procurou evidenciar neste artigo, ela deverá ser desenvolvida para atender ao líder do tempo de guerra e de paz, o que impõe uma amplitude de atividades a serem desenvolvidas para que se trabalhe nos militares os pilares de sustentação da liderança: conhecimento, virtude e visão.

Esse é o grande desafio das escolas militares durante todo o processo formativo, desde as escolas iniciais de formação até a de altos estudos. Elas deverão estar preparadas para formar e lapidar a formação do líder capaz de atuar em tempo de guerra e de paz, bem como em diferentes níveis de liderança, conforme ocorra a ascensão profissional do militar ao longo da carreira.

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Sobre o autor:

General de Divisão R1 Joarez Alves Pereira Junior  – Formado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1982. Cursou a Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME) em 1997/98. No exterior realizou o Curso Básico de Inteligência, no Forte Huachuca; o Curso da Escola de Guerra, no War College; e o Curso de Política e Estratégia da National Defense University; todos nos Estados Unidos da América. Foi instrutor da AMAN e da ECEME e comandou a Escola de Administração do Exército e Colégio Militar de Salvador.

Exerceu a função de Adjunto do Adido do Exército junto à Embaixada do Brasil em Washington. Comandou a 3ª Brigada de Cavalaria Mecanizada, em Bagé-RS e a 6ª Região Militar, em Salvador-BA. Foi Subchefe do Estado-Maior do Exército para Assuntos Internacionais. Exerceu, como última função no serviço ativo, a Vice Chefia do Departamento de Educação e Cultura do Exército. Atualmente é o Coordenador Executivo do Grupo de Trabalho que irá realizar o planejamento para a implantação de uma Nova Escola de Formação e Graduação de Sargentos de Carreira do Exército Brasileiro.

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