Defesa, Teto de Gastos e Responsabilidade Fiscal

Defesa, Teto de Gastos e Responsabilidade Fiscal

Guilherme R. Garcia Marque
Analista e pesquisador da Fundação Getulio Vargas; doutorando pelo
Instituto Meira Mattos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
E-mail: guilherme.marques@fgv.br
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Em recente entrevista à agência internacional Sputnik Brasil, divulgada no dia 08 de dezembro [1], o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), Dr. Roberto Alves Gallo, manifestou suas impressões acerca das perspectivas para o setor da defesa face à atual conjuntura global – marcada, entre outros fatores, por uma expressiva escalada no nível dos investimentos em segurança nacional.

Em meio às nossas concordâncias mais gerais acerca da importância de se pensar o desenvolvimento da indústria de defesa brasileira e dos desafios referentes ao orçamento do setor, me saltou aos olhos o fato de que sua expectativa para o ano que vem está principalmente relacionada à possibilidade de uma “revisão” do Teto de Gastos (EC 55/2016), instituído pelo governo Michel Temer em 2016.

À guisa de informação, o Teto de Gastos desponta como um instrumento central da política de reequilíbrio fiscal do país, desenhado de modo a estabelecer um limite para os gastos públicos federais equivalente ao nível das despesas de 2016 corrigida anualmente pela inflação – limite este aplicado pelo período de dez anos, quando então poderá dar espaço a uma nova metodologia de correção a cada quatro anos, perdurando até o ano de 2036.

O tom da publicação, portanto, acaba por sugerir que o Dr. Roberto Gallo enxerga na vigência do Teto de Gastos um obstáculo para a expansão dos necessários investimentos em defesa – investimentos estes que permitiriam ao país acompanhar a “tendência global de expansão dos gastos bélicos”.

Em que pese os riscos de a publicação não ter captado toda a extensão de suas opiniões e percepções acerca do tema, procuro apresentar neste artigo uma série de argumentos que vão na direção contrária do que ficou transparecido na supracitada reportagem.

Um primeiro argumento a ser levado em consideração é de que a adoção do Teto de Gastos, que passaria a valer a partir do ano de 2017, não impactou negativamente a evolução das despesas realizadas no âmbito do orçamento do Ministério da Defesa. Para demonstrar isso, a Tabela 1 abaixo compila os valores autorizados e pagos corrigidos pelo IPCA entre 2011 e 2022, calculando suas médias para os períodos entre 2011-2016 (pré-vigência do Teto) e 2017-2022 (pós-vigência do Teto).

Tabela 1 – Evolução anual do orçamento do Ministério da Defesa, corrigido pelo IPCA (2011-2022)

AnoAutorizadoPago
2011R$ 129.504.391.526,00R$ 111.138.245.810,00
2012R$ 136.420.480.087,00R$ 110.099.646.959,00
2013R$ 132.199.154.593,00R$ 111.210.708.591,00
2014R$ 136.012.381.836,00R$ 115.641.385.512,00
2015R$ 138.096.115.682,00R$ 110.763.271.359,00
2016R$ 123.476.967.899,00R$ 109.699.452.017,00
2017R$ 127.976.070.126,00R$ 116.414.106.446,00
2018R$ 136.611.611.220,00R$ 117.608.570.480,00
2019R$ 144.577.789.923,00R$ 124.726.063.600,00
2020R$ 139.753.825.086,00R$ 119.853.946.659,00
2021R$ 132.997.048.168,00R$ 113.530.386.113,00
2022R$ 125.820.695.294,00R$ 101.448.195.549,00
Média 2011-2016R$ 132.618.248.603,83R$ 111.425.451.708,00
Média 2017-2022R$ 134.622.839.969,50R$ 115.596.878.141,17

Fonte: SIGA Brasil, Senado Federal [2].

Independentemente da métrica utilizada, observa-se que as médias dos valores correspondentes ao período 2017-2022 foram superiores aos apreendidos durante o período 2011-2016, com um crescimento correspondente a 1,5% no âmbito autorizado e de 3,7% no pago.

Outra métrica passível de análise complementar se dá pela via dos valores autorizados e pagos como proporção percentual do PIB brasileiro. Estas informações foram compiladas na Tabela 2, excluindo-se o ano de 2022, para o qual ainda não há disponibilidade de dados. Tal como verificado na análise referente a Tabela 1, tampouco é possível observar que o Teto de Gastos desempenhou um impacto negativo na evolução destes indicadores – evidenciando um crescimento de 2,8% no âmbito autorizado e de 4,8% no pago.

Tabela 2 – Evolução anual do orçamento do Ministério da Defesa como % do PIB (2011-2022)

AnoAutorizadoPago
20111,48%1,31%
20121,50%1,24%
20131,40%1,20%
20141,40%1,23%
20151,47%1,23%
20161,38%1,27%
20171,44%1,33%
20181,49%1,31%
20191,55%1,37%
20201,55%1,34%
20211,35%1,18%
Média 2011-20161,44%1,25%
Média 2017-20221,48%1,31%

Fonte: SIGA Brasil, Senado Federal [2].

O mais grave problema – devidamente apontado na reportagem junto ao Dr. Roberto Gallo – passa a se evidenciar a partir do detalhamento das rubricas, apresentadas na Tabela 3 abaixo, revelando uma média percentual de gastos com pessoal e encargos sociais que alcança exorbitantes 80,5% das despesas totais do Ministério da Defesa ao longo de todo o período analisado, bem como uma estabilidade para os períodos pré e pós vigência do Teto – patamar significativamente superior ao observado em países como Canadá (49,2%), França (44,0%), Alemanha (42,2%), Espanha (62,5%), Reino Unido (33,8%) e Estados Unidos (38,5%) para o ano de 2020. [3]

No âmbito dos investimentos, por outro lado, o Brasil alcançou uma média de 6,0% ao longo de todo o período analisado, com leve redução no período pós-vigência do Teto – patamar significativamente inferior ao observado no Canadá (14,7%), França (26,6%), Alemanha (17,4%), Espanha (19,4%), Reino Unido (23,8%) e Estados Unidos (29,7%). [3]

Tabela 3 – Evolução anual do orçamento do Ministério da Defesa – Pessoal e encargos sociais e Investimentos (2011-2022)

AnoPessoal e encargos sociais%Investimentos%
2011R$ 90.487.210.341,0081,4R$ 7.297.586.425,006,6
2012R$ 87.204.355.905,0079,2R$ 9.454.899.318,008,6
2013R$ 89.022.798.396,0080,0R$ 7.342.039.527,006,6
2014R$ 90.655.450.225,0078,4R$ 7.775.691.428,006,7
2015R$ 92.197.170.038,0083,2R$ 3.649.991.450,003,3
2016R$ 88.682.383.101,0080,8R$ 6.133.576.783,005,6
2017R$ 94.053.774.557,0080,8R$ 7.775.296.968,006,7
2018R$ 91.496.907.453,0077,8R$ 7.765.829.578,006,6
2019R$ 93.981.729.130,0075,4R$ 8.747.123.821,007,0
2020R$ 97.445.135.723,0081,3R$ 6.970.343.633,005,8
2021R$ 93.404.507.476,0082,3R$ 5.807.394.738,005,1
2022R$ 86.389.735.032,0085,1R$ 3.816.697.400,003,8
Média 2011-2016R$ 89.708.228.001,0080,5R$ 6.942.297.488,506,2
Média 2017-2022R$ 92.795.298.228,5080,4R$ 6.813.781.023,005,8

Fonte: SIGA Brasil, Senado Federal [2].

Há, portanto, um flagrante problema de desequilíbrio na alocação dos recursos orçamentários do Ministério da Defesa. Não há qualquer novidade nesta questão: se o Brasil deseja ampliar sua parcela de investimentos de natureza militar, rever sua estrutura de gastos se faz absolutamente premente. A experiência internacional pode fornecer valiosas lições nesse sentido.

O segundo argumento a ser levado em consideração é que a ampliação dos investimentos em defesa – e em qualquer outra área – deve estar devidamente inserida dentro de um irrefutável compromisso com a responsabilidade fiscal.

Antes de adentrar com maior profundidade nesse ponto, é preciso ressaltar que o Teto de Gastos sofreu profundas alterações e flexibilizações ao longo de sua vigência, cabendo destacar aqui os exemplos da PEC Kamikaze (EC 123/22), da PEC Emergencial (EC 109/22) e da PEC dos Precatórios (EC 113/21 e 114/21). O resultado foi um volume de gastos primários extra teto estimado em mais de R$ 200 bilhões só no corrente ano, reafirmando, assim, a crença já estabelecida de que o Teto de Gastos está “morto” [4]. Deve, portanto, ser imediatamente substituído por uma nova âncora fiscal apta a reduzir as incertezas quanto à capacidade do país de honrar seus compromissos financeiros e garantir a convergência da relação dívida/PIB.

Em outras palavras, a credibilidade política e econômica desta nova âncora fiscal estará diretamente relacionada à sua efetiva capacidade de disciplinar nossas despesas públicas. Face a dinâmica da nossa economia política e a pressão dos mais variados grupos organizados, qualquer exceção, por mais legítima que seja, poderá levar esta nova âncora fiscal ao mesmo fim do Teto, abrindo caminho para uma renovada pressão e escalada de gastos.

As implicações disso são absolutamente contraproducentes. Basta verificar, por exemplo, o impacto sobre a curva de juros (DI Jan/2025) observado mais recentemente na esteira dos inúmeros ruídos fiscais e discursos desencontrados [5] em torno da PEC da Transição (EC 32/2022), que por sua tramitação no Senado Federal, libera o montante de R$ 145 bilhões para o novo governo, fora do teto de gastos, pelo prazo de dois anos [6] – valor ainda passível de alterações a partir de sua tramitação na Câmara dos Deputados.

Gráfico 1 – Curva de Juros DI Jan/2025

Fonte: TradingView.com

O resultado se traduziu na elevação de 2,0 pontos percentuais nos prêmios de risco incidentes sobre os nossos títulos públicos com vencimento para janeiro de 2025, elevação esta que, se mantida, resultará em um custo adicional de aproximadamente R$ 130 bilhões em juros para a rolagem de nossa dívida pública – valor próximo ao da própria PEC da Transição, ou 26 vezes maior que o custo do recente programa de aquisições de blindados Centauro II pelo Exército. Por outro lado, vale lembrar que o Teto de Gastos legou ao país uma notável queda da taxa de juros de mercado já a partir do terceiro trimestre de 2016.

Em última instância, é preciso internalizar o fato de que qualquer flerte com a irresponsabilidade fiscal, inevitavelmente, implicará na menor disponibilidade de recursos para gastos prioritários e estratégicos.

Conclui-se, portanto, que o verdadeiro obstáculo para uma ampliação dos investimentos militares não reside no Teto de Gastos. Tampouco residirá em uma nova âncora fiscal que venha a efetivamente cumprir o que dela se espera: enfrentar o problema do gasto obrigatório – este, sim, o verdadeiro obstáculo para a ampliação de investimentos. Muito mais sustentável e virtuoso, do ponto de vista macroeconômico, é cobrar por um amplo, rigoroso, detalhado e periódico programa de revisão de gastos, apto a avaliar e descontinuar programas e políticas públicas ineficientes em prol da abertura do espaço fiscal necessário para viabilizar novos investimentos de maior qualidade e retorno – inclusive, neste sentido, os de natureza militar.

Se levada adiante esta que é uma prática comum aos países desenvolvidos, a gestão das contas públicas e o país só terão a ganhar.

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[1] “Para presidente da Abimde, fim do teto de gastos é esperança para indústria de defesa do Brasil”, em <https://sputniknewsbrasil.com.br/20221208/para-presidente-da-abimde-fim-do-teto-de-gastos-e-esperanca-para-industria-de-defesa-do-brasil-26333905.html>.

[2] <https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil>.

[3] Dados disponibilizados no documento “Defence Expenditure of NATO Countries (2014-2022)”, disponibilizado pela OTAN através do link: <https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2022/6/pdf/220627-def-exp-2022-en.pdf>.

[4] Para um levantamento mais completo acerca da recente deterioração fiscal promovida pelo Executivo e o Congresso, ler “O Executivo e o Congresso distribuíram presentes. A conta vai chegar”, de Marcos Lisboa e Marcos Mendes: <https://braziljournal.com/opiniao-o-executivo-e-o-congresso-distribuiram-presentes-a-conta-vai-chegar/>.

[5] “Lula diz que pessoas são levadas a sofrer por estabilidade fiscal e critica teto de gastos”, em <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/11/petrobras-nao-vai-ser-fatiada-e-bndes-voltara-a-ser-banco-de-investimento-diz-lula.shtml>.

[6] “Sob intenso debate, PEC da Transição é aprovada no Senado”, em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/12/07/sob-intenso-debate-pec-da-transicao-e-aprovada-no-senado>.

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