Um país flerta com a autodestruição

Nenhuma situação é tão ruim que não possa ficar ainda pior, diz um antigo provérbio. No momento, a situação no Brasil é muito ruim, mas, mesmo assim, todos os lados parecem se esforçar para jogar ainda mais lenha – ou seria diesel? – na fogueira.

Aos poucos, a ficha começa a cair para mim: este país quer soluções radicais, quer se fazer em pedaços. Dada à complexidade do problema, esta parece ser a solução mais simples e, assim, a mais satisfatória. É como diz o ditado: ontem estávamos à beira do abismo, hoje já estamos um passo adiante.

Para começar há as notícias falsas, que estão por todos os cantos e que tornam a situação durante a greve dos caminhões ainda mais obscura. Elas servem para promover um clima de confusão geral. E pânico. Podia-se ler que o governo vai bloquear o aplicativo de notícias WhatsApp para estrangular a greve. Ou que vai desligar a eletricidade para acabar com a greve.

Até mesmo conhecidos bem informados me asseguraram que o presidente Michel Temer em pessoa está por trás da greve. Sua intenção seria criar o caos e, assim, justificar um golpe militar para cancelar as eleições de outubro.

Bom, notícias falsas existem em todos os lugares e, pelo jeito, elas decidem eleições e referendos em todo o mundo. Mas certamente não fazem bem para o clima já acirrado no Brasil.

Afinal, sociedades só são bem-sucedidas quando são capazes de reunir na mesma mesa as diferentes posições e chegar a um compromisso em que todos cedem um pouco. Democracia também significa, afinal, deixar que aqueles que pensam diferente tenham seu espaço para existir.

Isso a democracia brasileira ainda não aprendeu. Em vez disso, todos gritam mais alto para silenciar o outro. Chamam isso de "palavras de ordem", embora, é claro, elas apenas fomentem a desordem. Em alguns discursos há um desejo explícito de eliminar o oponente político. O Brasil ainda arrasta consigo seu legado autoritário, e nele quem pensa diferente não têm qualquer espaço. Assim, os campos se opõem com uma virulência nunca vista. Diálogo ninguém mais quer. Em vez disso, todos parecem à procura de tumulto e confronto.

Enquanto isso, o governo do presidente Michel Temer se encaminha para o colapso. Mesmo os partidos que pertenciam à base de Temer rejeitaram nesta terça-feira (29/05) uma ofensiva conjunta promovida pelo governo para acabar com a greve dos caminhoneiros. O governo é fraco e está no fim, dizem políticos antes leais a Temer.

Uma terceira acusação contra Temer, que poderia ser apresentada a qualquer momento pela Procuradoria-Geral, provavelmente não conseguiria ser bloqueada no Congresso pelo presidente. Mas talvez ele caia também pela pressão das ruas. Políticos da oposição já clamam por uma greve geral. Nunca a queda de Temer pareceu tão próxima. Mas ela teria algum sentido agora, apenas quatro meses antes das eleições?

A formação de um governo em curto prazo dificilmente seria possível. A consequência, portanto, seria ainda mais caos nos próximos meses. A economia, já abalada, entraria numa nova recessão, e a confiança dos investidores estrangeiros no Brasil, recém e lentamente reconstruída, seria mais uma vez destruída.

Realizar eleições num clima como esse não traria nada de bom. As forças mediadoras e conciliatórias não seriam ouvidas em meio à gritaria geral. Afinal, ninguém está com paciência para soluções complicadas. As forças radicais, com suas soluções simples, ganhariam. E soluções simples em tempos difíceis não prestam para nada, diz um velho ditado.

O desandar da carruagem democrática

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Os dez dias de greve dos caminhoneiros expuseram a desconcertante complexidade do Brasil. Em mais um dos soluços de revolta organizada que acometem a população de tempos em tempos, a sociedade civil brasileira demonstrou a sua força. E também suas contradições.

Os caminhoneiros precisaram de apenas quatro dias para deixar o governo de joelhos e desencadear uma crise de abastecimento no maior país da América Latina. Mostraram que, como eles mesmos disseram, são o sangue que corre nas veias do país.

Embora estivessem separados por milhares de quilômetros de estradas, grupos de caminhoneiros autônomos se organizaram pelo WhatsApp, nos moldes da Primavera Árabe, e dentro de dez dias conseguiram derrubar o preço do diesel e dos impostos.

A população apoiou em peso a causa dos caminhoneiros: segundo pesquisa do Instituto Datafolha, 87% dos brasileiros foram favoráveis à paralisação, mesmo sofrendo o impacto do desabastecimento.

Assim, o Brasil assistiu a uma tempestade democrática perfeita: cidadãos fazendo uso do seu direito a greve e manifestação, com livre acesso a ferramentas de comunicação, gozando de apoio popular e vendo suas demandas serem atendidas pelo governo. Tudo isso sem repressão ou violência. Um país exemplar.

Até a coisa desandar. Caminhoneiros em todo o Brasil fizeram campanha nas redes sociais e estamparam faixas pedindo uma intervenção militar. Usaram seu direito democrático à livre opinião para pedir medidas antidemocráticas e, basicamente, a volta da ditadura.

Felizmente, os próprios militares desprezaram publicamente o apelo e reafirmaram sua lealdade à Constituição. Agora só falta os brasileiros entenderem que não haverá um salvador da pátria. A única forma de "botar ordem neste país" é participar do processo político antes, durante e depois das eleições. Votar com responsabilidade e fiscalizar os políticos.

O "lado sombrio da Força" também se manifestou em supermercados e postos de gasolina. A solidariedade demonstrada com os caminhoneiros contrastou com a mesquinharia de comerciantes que passaram a cobrar preços extorsivos por produtos escassos. Ou de consumidores que se acharam no direito de comprar mais do que precisavam só para garantir o seu, não se importando que os outros ficassem sem.

E o que dizer desta contradição: dos 87% da população que apoiaram a greve, 87% disseram não querer pagar pelos 13,5 bilhões de reais necessários para honrar o que foi prometido aos caminhoneiros. Ora, num país em crise, com um déficit orçamentário de mais de 150 bilhões de reais previsto para 2018, o dinheiro tem que sair de algum lugar.

O governo resolveu então cortar do lado mais fraco: no saneamento básico, no sistema de saúde, nas políticas de combate à violência contra a mulher, na demarcação de terras indígenas, na inovação. E quando foi anunciado que programas sociais pagariam parte da conta, a população deu de ombros.

As últimas semanas mostraram que a democracia brasileira tem muito mais força do que pensa para transformar o país, mas a sociedade precisa decidir se será parte da solução ou do problema.

Faltam apenas quatro meses para as eleições de outubro. Ainda dá tempo de começar a construir o melhor dos tempos.

 

 

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