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A História do Pedido de Impeachment: Como Construir Falsos Mitos


Paulo Eneas
Com a colaboração de Meire Lopes.

 
As críticas que estão sendo feitas às declarações recentes da Dra. Janaína Paschoal em relação aos desdobramentos do processo de impeachment têm sido contestadas por meio de um argumento pueril. Segundo esse argumento, ela não pode ser criticada por ter sido “uma heroína que fez aquilo que ninguém mais teve coragem de fazer”. Esse argumento, além de ingênuo, espelha um desconhecimento sobre as negociações de bastidores envolvendo os políticos ocorridas ao longo do ano passado e que resultaram na escolha do pedido que seria usado para o processo de impeachment. Essa história pode ser resumida muito sinteticamente da seguinte maneira:
 
a) Assim que o movimento popular contra o então governo petista ganhou volume, cerca de uma centena de pedidos de impeachment foram protocolados na Câmara dos Deputados. Desses, uma parcela de fato não atendia aos requisitos técnico-jurídicos.
 
b) No entanto, dezesseis desses pedidos obviamente atendiam as exigências técnicas para serem apreciados pela mesa diretora da Câmara dos Deputados. E nem poderia ser diferente, pois seria a máxima ingenuidade e inocência achar que, dentre os milhares de advogados no país, somente a Dra. Janaína e o Dr. Miguel Reale reunissem as qualificações técnicas para elaborar o pedido no formato jurídico adequado.
 
c) Dentre os pedidos que atendiam as exigências técnicas estava o pedido elaborado por um grupo de ativista de Brasília. Entres estes ativistas estavam Adolfo Sachsida, Beatriz Kicis, Claudia Castro, Dênia Érica Gomez, Ricardo Campos, Alexandre Leuzinger, Genesco Castro Banatto, Aldo Julio Ribeiro, Luiz Fragoso Peret, Miriam Barros, Paulo Chagas, Stelson Ponde de Azevedo, Wani Aida Braga. Esse pedido estava detalhadamente fundamentado em um documento de cerca de três mil páginas.
 
d) Esse pedido foi na verdade o primeiro pedido de impeachment entregue formalmente nas mãos do então presidente do legislativo, Eduardo Cunha. A entrega foi feita numa cerimônia na Câmara do Deputados em meados do ano passado, cerimonia essa que contou com participação das lideranças de todos os movimentos de rua, que assinaram o pedido.
 
e) Um pouco antes da entrega desse pedido precursor, o PSDB havia recomendado um estudo técnico ao Dr. Miguel Reale sobre a viabilidade do impeachment. Nesse estudo, o Dr. Miguel havia concluído que não havia base legal para o impeachment, conforme mostra essa matéria aqui do jornal Valor Econômico de maio do ano passado.
 
f) Com base nesse parecer do Dr. Miguel Reale, em que ele concluía não haver base legal para o pedido de impeachment, o PSDB decidiu ingressar no TSE pedindo anulação da chapa Dilma-Temer. Esse pedido tucano junto à justiça eleitoral foi feito dois dias antes da cerimonia mencionada no idem (d) acima. Até então, a Dra. Janaína era uma ilustre desconhecida da imprensa e do movimento pró-impeachment.
 
g) O movimento viveu uma baixa a partir de meados do ano passado devido aos erros políticos de seus dirigentes, principalmente após a desastrosa Marcha para Brasília. Esse período de refluxo foi acompanhado por novos desdobramentos no Congresso, com o então governo petista e seus agentes na imprensa promovendo uma guerra de destruição de reputação contra seu maior inimigo, o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha.
 
h) Em meio a essa disputa no centro do poder, Eduardo Cunha decide acatar um dos pedidos de impeachment. Mas por razões que ainda precisam ser explicadas, ele não acatou o pedido apresentado pelos movimentos no meio ano, citado no idem (d) acima, mas sim o pedido elaborado por Dra. Janaína e pelo mesmo Dr. Miguel Reale que meses antes havia afirmado em parecer a pedido dos tucanos que não havia base legal para o pedido de impeachment.
 
i) É razoável considerar que a escolha de Eduardo Cunha não foi técnica, que já tanto o pedido elaborado pelos movimentos quanto o da Dra. Janaína e Dr. Miguel Reale, assim como outros de um total de dezesseis, atendiam aos requisitos jurídicos. Portanto, a escolha do pedido foi resultado de uma negociação com outras forças políticas, em especial os tucanos, que sempre se mostraram contra o impeachment da agora ex-presidente, mesmo quando as evidências de crimes de responsabilidade cometidos por ela já se avolumavam.
 
j) A inclusão de Hélio Bicudo como um dos autores da petição seguramente atendeu também a um critério político, pois dessa forma se assegurava que a peça-chave do pedido de impeachment não conteria nenhuma figura pública associada ainda que de maneira tênue às correntes conservadoras ou de direita da sociedade, que também fizeram parte obviamente do movimento pró-impeachment.
 
Deste ponto em diante, a história já é conhecida. A Dra. Janaína ganhou projeção nacional e passou a ser apresentada como “a” autora, junto com Miguel Reale e Hélio Bicudo, do pedido que finalmente levou ao impeachment da ex-presidente. Mas o fato é que, a despeito de a Dra. Janaína ter desempenhado com competência sua função de advogada do impeachment, isso não exclui o fato de que ela ocupou essa posição em vista de uma decisão política tomada no âmbito da Câmara dos Deputados e dos partidos, decisão essa tomada à revelia dos movimentos.
 
Os movimentos pró-impeachment criaram as condições políticas para que o impeachment ocorresse de facto ao levar milhões de pessoas às ruas. Estes mesmo movimentos tiveram também o cuidado e a competência de tomar a iniciativa de apresentar o primeiro pedido de impeachment atendendo os requisitos jurídicos. Portanto, o impeachment poderia ter progredido da mesma forma com um pedido apresentado pelos movimentos, coisa que não ocorreu pelo fato de os políticos e os partidos terem tomado para si essa prerrogativa, terceirizando-a nas mãos da Dra. Janaína.

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