Blackwater versão russa – Moscou e o futuro das forças privadas de segurança


Por Alexey Eremenko – Texto do Moscow Times
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel

Em tempos soviéticos, profissionais militares russos trabalhavam por todo o globo, desde Cuba até o Vietnã, ensinando, aconselhando, ou às vezes apenas apontando o cano de seus Kalashnikov para os inimigos em nome do proletariado.

Agora, as autoridades russas querem que esses homens retornem à função, mas desta vez por dinheiro – e, quem sabe, como testas-de-ferro do governo.

Uma lei aprovada pela Duma no mês passado pretende a legalizar a operação companhias militares e de segurança privadas (PMSCs, na sigla em inglês) na Rússia – a ideia já era encorajada pelo presidente Vladimir Putin em 2012.

Entusiastas da medida dizem que  já está mais do que na hora de a Rússia, com suas fortes tradições militares, garantir uma parte do mercado das PMSCs, estimado em 350 bilhões de dólares por ano. Segundo o analista Ivan Konovalov, atualmente, empresas do Ocidente dominam o setor, mas muitos países em desenvolvimento receberiam bem empresas militares privadas com outra orientação geopolítica. Konovalov é co-autor de uma monografia sobre PMSCs na Rússia e ao redor do globo. “Mas será preciso muito esforço para fazer frente aos players atuais [desse mercado]”, diz Konovalov, também chefe da agência de inovação Center for Strategic Trends Studies, em Moscou.

De aocrdo com o analista, os serviços particulares de segurança russos também são uma questão ambígua. Apesar do apoio de Putin, há reservas quanto a abrir mão do monopólio da violência, e há no govero os que temem o que pode se tornar um contingente de mercenários impossível de controlar.

Para Alexander Golts, também analista, outro aspecto delicado é o fator “relações públicas”. O emprego de PMSCs em vez de tropas do Exército em cenários críticos – como a Ucrânia – não repercute tão bem diante da opinião pública quado se podia esperar, uma vez que se pode ligar essas empresas ao Kremlin de qualquer forma.
 
“Guardas florestais” da nova KGB

A lei aprovada mês passado procura permitir que as companhias militares privadas prestem consultoria, serviços de proteção, eliminação de minas e, acima de tudo, “soluções alternativas para conflitos armados fora da Rússia”, conforme o texto inicial da lei, disponível do nite da Duma. As empresas poderão usar armas de fogo, mas não equipamento militar pesado.
 
O autor do projeto, Gennady Nosovko, do partido Rússia Justa, negou que o texto atual possa desencadear atividade aberta de mercenários. Segudno o deputado, as PMSCs serão fiscalizadas pelo Serviço de Segruança Federal (FSB, na sigla em russo), agência sucessora da antiga KGB, responsável pelo credenciamento e monitoramento das companhias a fim de evitar excessos. “A diferença entre empresas privadas de segurança e mercenários é a mesma entre guardas florestais e invasores de terras”, delcarou Nosovko em entrevista ao Moscow Times por telefone.

Porém, nem o FBS nem o Ministério da Defesa se mostraram favoráveis à lei, pesar de o deputado afrimar que, em conversas privadas, autoridades das duas instâncias apoiarem a proposta.
 
Uma fina linha vermelha
 
A prática milenar dos mercenários ressurgiu na África e na América Latina nas últimas décadas do século 20, época em que regimes autoritários e insurgências contavam com profissionais estrangeiros altamente capacitados para reprimir dissidentes ou derrubar governos indesejáveis. Mas a atividade, definida pela ONU como recrutamento de civis para combater em troca de lucro em países com os quais essas forças não têm laços formais, é considerada ilegal na maior parte do mundo.

Por outro lado, empresas militares e de segurança privadas podem ser negócios legalmente reconhecidos, e suas especialidades incluem apoio logístico, eliminação de minas e explosivos, proteção e treinamento, e não atirar em ditadores ou seus inimigos. Diferente doa mercenários de antigamente, as PMSCs raramente têm acesso a equipamento pesado como blindados, artilharia ou aronaves de caça. Já veículos blindados para transporte de pessoal são normalmente permitidos.
 
Mas ainda há uma grande diferença entre um combatente a serviço de uma empresa particular e um mercenário, diz Alexander Nikitin, especialista em segurança a serviço do Moscow State Institute of International Relations (MGIMO). “Qualquer envolvimento de uma PMSC em conflito armado aberto significa cruzar uma linha vermelha que coloca essa empresa como grupo de mercenários diante da convenção da ONU”, explica Nikitin, que foi membro de um grupo das Nações Unidas que analisou o emprego de mercenários pelo mundo durante seis anos. Ele acrescenta que é necessário um trabalho legislativo minucioso para dar às PMSCs espaço para atuar sem exceder autoridade e se tornarem mercenários de fato.

As companhias privadas de serviços militares ganharam notoriedade nos anos 2000, em grande parte pela participação ampla nas campanhas dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. A então famosa empresa americana Blackwater, agora rebatizada de Academi, arrecadou mais de 1 bilhão de dólares em contratos com o governo americano em 2007, comparado com os 700 mil arrecadados em 2001, segundo a Forbes Russia.

Alexander Golts explica que os EUA adotaram as PMSCs porque – apesar dos salários exorbitantes cobrados pelos combatentes – os serviços custam menos ao Pentágono do que o envio de soldados regulares, que têm direito a diversos benefícios do governo.
 
Oferta e demanda
 
A Rússia está pronta para entrar no Mercado das PMSCs, com militares profissionais em uma reserva de 760 mil, sem contar os 300 mil jovens que completam o serviço obrigatório a cada ano. “Nós provavelmente temos mais pessoas que sabem manejar um Kalashnikov do que nos Estados Unidos”, diz Golts.

Uma área em que as empresas militares certamente encontrariam demanda são os projetos estrangeiros empreendidos por empresas transnacionais russas como a Gazprom ou a RusAl, que atualmente empregam forças particulares do Ocidente, explica Ivan Konovalov, do Center for Strategic Trends Studies de Moscou.

Contratos das Nações Unidas para apoio logístico e de infraestrutura também são outra possibilidade brilhante. Segundo Alexander Nikitin of MGIMO, a Rússia costumava ser o segundo maior provedor desse tipo de serviço para a ONU, apesar de, nos últimos anos, ter saído do ranking dos 10 países mais procurados pela Organização.

Por fim, há países com relações não muito cordiais com as potências do Ocidente, e que precisam de serviços particulares de segurança, explica o deputado Gennady Nosovko. “Há nações africanas e latino-americanas, por exemplo, que não têm alternativa no mercado neste momento, mas poderíamos lhes proporcionar uma”, afirma.
 
Legalizar os “homens urbanos?”
 
Porém, de acordo com esses mesmos especialistas, o verdadeiro motivo por trás do esforço renovado em torno das PMSCs pode ser a repercução negativa do envolvimento de Moscou na guerra civil da Ucrânia.

A Rússia anexou a península da Cirmeia em março deste ano usando tropas mascaradas e sem qualquer identificação, apelidadas de “homens urbanos” ou “homenzinhos verdes”. Putin só admitiu que se tratava de tropas russas após a anexação – até então havia negado publicamente a presença russa na Crimeia.

Moscou também foi acusada de enviar soldados para ajudar insurgents pró-Rússia no leste da Ucrânia em agosto e na semana passada. Autoridades russas não admitem o ocorrido, mas os relatos continuam, sustentados por evidências fortes de que as tropas não foram informadas sobre o local das missões ou foram coagidas a se apresentarem como voluntários. Os rumores de morte de soldados russos em uma guerra não-declarada obviamente não foram bem aceitos pelo público russo, o que teria feito o Kremlin reconsiderar as PMSCs, explica Golts.

Mas o analista alerta que essas tropas “testa-de-ferro” não evitarão danos à imagem do governo Putin se a opinião pública enxergar os coturnos em terra como portadores da vontade de Moscou. Além disso, uma nova convenção da ONU, ainda em discussão entre os Estados membros, tornará os países de origem responsáveis pelas ações das empresas militares privadas, explica Alexander Nikitin, que participou da elaboração da primeira versão do documento. “A convenção pode levar três ou quatro anos para ser aprovada, mas quando for, será um divisor de águas”, afirma.
 
Concorrência global e oportunidades
 
Emplacar no mercado das PMSCs também exige muito mais esforço do que atender às normas prescitas em uma lei. O setor é dominado por companhias baseadas na Europa e na América do Norte, que juntas somam 75% das 103 empreas que assinaram o Código Internacional de Conduta para Provedores Internacionais de Serviços de Segurança – um conjunto de regras para o setor. A adesão ao código é voluntária. Segundo Ivan Konovalov, os signatários formam um lobby que provavelmente usará seus melhores mecanismos legais para emperrar a entrada de rivais russos.

Além disso, os melhores vencimentos vêm de contratos com os Estados Unidos, e é pouco provável que empresas de segurança russas consigam essas missões. Para Alexander Golts, outro obstáculo pode ser a atitude: o serviço militar na Rússia é amplamente visto como um dever cívico e não um emprego bem-remunerado, o que desencorajaria trabalho militar por dinheiro.

No entanto, há candidatos suficentes: a página da Antiterror, uma das únicas PMSCs russas, recebe incontáveis candidaturas. Alguns dos usuários que interagem nas mídias sociais da companhia inclusive alegam ter experiência em serviço militar.

A Antiterror não quis se manifestar sobre os currículos apresentados. Atualmente a Rússia tem algumas empresas de segurança particulares operando em uma “zona cinza legal” enquanto esperam ser totalmente legalizadas. “Teremos nossa própria indústria das PMSCs, é inevitável”, afirma Ivan Konovalov. “Precisaremos apenas observar o quanto ela vai crescer uma vez que seja legalizada”.
 

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