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Janis Berzins – Rússia deve chegar à exaustão primeiro, segundo especialista na guerra na Ucrânia.

Soldados ucranianos batalham com tropas russas perto de Bakhmut, na região de Donetsk — Foto: LIBKOS/AP

Por Diego Viana
25 Maio 2023
Valor, de São Paulo


Nem Rússia nem Ucrânia têm força suficiente para vencer ainda este ano a guerra que Vladimir Putin esperava concluir em fevereiro do ano passado, quando ordenou a invasão do país vizinho, avalia o brasileiro-letão Janis Berzins, pesquisador sênior do Centro de Segurança e Pesquisa Estratégica (CSSR) da Academia de Defesa Nacional da Letônia e especialista na questão. Ele considera que uma ofensiva
ucraniana para retomar os territórios ocupados pela Rússia, algo que pode começar a qualquer momento, não será suficiente para expulsar os russos definitivamente, apesar da situação precária das tropas de Putin e dos armamentos recebidos do Ocidente.

Instalou-se um conflito de posições em que drones e mísseis de alta precisão convivem com trincheiras que remetem à Primeira Guerra Mundial. Ainda assim, um impasse bloqueia a possibilidade da paz: nenhum dos lados aceitaria abrir mão da península da Crimeia, no mar Negro, ocupada pela Rússia desde 2014. Embora o Brasil e outros países tenham manifestado a disposição para mediar a paz, a mera
boa intenção não vai bastar, afirma Berzins, assinalando que o parlamento russo já orçou hospitais militares até 2025.

Por isso, o cenário mais provável é que as lutas prossigam até a exaustão de um dos lados, que provavelmente será o russo, segundo o pesquisador.

Trechos da entrevista:

Valor: Em breve, deve começar a contraofensiva ucraniana. Os armamentos que receberam são suficientes para expulsar as tropas russas?

Janis Berzins: Os analistas ocidentais têm uma expectativa um pouco excessiva para essa contraofensiva, como se ela fosse resolver a guerra de vez. Não vai. A Rússia tem graves problemas, perdeu muito equipamento, mas não está tão fraca assim. Nos últimos meses, o front praticamente não se moveu. Por mais que a Rússia tenha perdas e o [grupo militar privado] Wagner esteja em apuros, a Ucrânia não conseguiu avançar mais este ano. Por mais que consiga mobilizar recursos, em armamento e pessoal, a contraofensiva não vai empurrar os russos para fora de todos os territórios, considerando que o objetivo é liberar o Donbass e entrar na Crimeia. Isso vai levar muito tempo. A contraofensiva deve ser o começo de uma reação gradativa.


Valor: A Ucrânia tem fôlego para fazer a ofensiva e depois continuar guerreando?

Berzins: Acredito que sim. Os ucranianos veem essa guerra como existencial e essa é uma motivação forte. Na guerra, a motivação é um dos fatores mais importantes. Se seus soldados estão desmotivados, você já perdeu a guerra. Esse é um dos problemas das forças russas, que não têm uma motivação pra lutar contra a Ucrânia. Outro ponto é que a Ucrânia luta basicamente com recursos recebidos do
Ocidente. E o Ocidente vai continuar bancando a guerra contra a Rússia.

Valor: Se tanto os ocidentais quanto os russos veem a guerra como um conflito “proxy” entre eles, devemos temer que Putin decida escalar?

Berzins: Para escalar é preciso ter os recursos. O pensamento militar russo enfatiza muito a dissuasão, mas de modo diferente do Ocidente. A escalação serve pelo efeito de coerção, como ameaça de punição. Como em 2014, quando Putin tomou a Crimeia e disse que, se houvesse reação do Ocidente, ele estava disposto a usar armas nucleares. Ou no ano passado, quando ameaçou, caso houvesse uma reação
forte, invadir o Báltico. Ele pode ameaçar o quanto quiser, e talvez quem não conhece o teatro de guerra acabe acreditando. Mas para entrar no Báltico é preciso ter recursos

Valor: A Rússia não tem os recursos necessários para entrar no Báltico?

Berzins: Isto envolveria a Polônia e a Finlândia. Não é só a Estônia, a Letônia, a Lituânia. A ameaça é pouco crível. O que Putin poderia tentar seria fazer postura, uma exibição de força. Por exemplo, posicionar tropas na fronteira e convocar exercícios. Entre fazer isso e invadir tem uma diferença grande. Não vejo muita capacidade de escalação.

Valor: E quanto à escalada nuclear?

Berzins: Essa é outra questão. A ogiva mais fraca é equivalente à bomba convencional mais forte. Em termos táticos, o efeito é o de uma bomba termobárica: destrói algo como um quarteirão. Mas tem o efeito psicológico, seguindo a ideia russa de “escalar para desescalar”, que é esquisita e controversa. A forma como a Rússia escala não é linear. O Ocidente escala linearmente: vai escalando e chega a um ponto em que não tem mais volta. A Rússia, quando escala, é para chegar a um ponto que serve como sinal. Por exemplo, cruzar a linha vermelha do nuclear. E isto para resultar em negociações. Se a negociação não dá certo, então se escala um pouco mais. Essa dissonância é perigosa.


Valor: O risco é usarem a ogiva de baixa intensidade e a reação do Ocidente ser desproporcional?

Berzins: Sim. Mas vamos supor que usem só uma. O Ocidente pode se envolver ainda mais, mas não vai fazer um bombardeio nuclear em retaliação. Porém, a China tem se colocado contra o uso do nuclear. A Índia, idem. Certamente o Brasil também se opõe, embora eu não tenha visto esse debate no Brasil. No momento em que a Rússia usar o nuclear, perderá todos os aliados. Neste estágio do conflito, o nuclear faz parte da estratégia de dissuasão por coerção.

Valor: A demonstração de fraqueza militar compromete o prestígio da Rússia?

Berzins: Sim, mas a Rússia só aparecia como um gigante militar aos olhos dos leigos. Um exemplo concreto: durante a operação síria, em torno de 2017, teve um momento em que Putin anunciou que os objetivos tinham sido atingidos e interrompeu a operação aérea. Alguns meses depois, ela recomeçou. Interpreto esse episódio assim: levando em consideração o programa de modernização que houve entre 2010 e 2020, a Força Aérea ainda não é suficiente para proteger a Rússia em caso de ataque maciço da Otan, que é seu maior medo. Não é possível ajudar a Síria a ponto de deixar o país vulnerável. Chegou um ponto em que era preciso fazer manutenção das aeronaves na própria Rússia. Foi esse o momento em que disseram ter atingido seus objetivos. É uma especulação, claro.

Valor: Na Ucrânia, a Rússia era totalmente dependente da vitória rápida? Não tinham plano B?

Berzins: Tem um problema na própria concepção do plano A. As informações que temos são de que Putin pessoalmente controlou tudo, desde o começo. Atuou até no nível que seria de tenente-coronel. Acredita-se que ele recebeu informação errada, inteligência do tipo “dizer o que o chefe quer ouvir”: que os ucranianos estavam com eles. Era para ser uma guerra rápida. Aliás, as forças armadas russas são organizadas para guerras rápidas, não para guerras prolongadas, como esta.

Valor: Então é uma guerra no improviso?

Berzins
: O planejamento estratégico de uma campanha envolve a capacidade de agir. Fazer um plano sem ter a capacidade é alucinação. Como casar a capacidade e a doutrina militar com o plano de Putin? A campanha rápida não deu certo, teve resistência. Então entraram na segunda fase, onde as fissuras estruturais das forças russas apareceram. A doutrina militar russa é sofisticada, mas há uma desconexão
entre essa doutrina e a capacidade operacional. Com isso, hoje as forças russas estão lutando mais ou menos como na Primeira Guerra Mundial. O nível tático é desorganizado, tem soldados desertando. Mandaram soldados para o front sem treinamento adequado, sem roupas e botas para o frio. Recrutaram prisioneiros. A guerra virou um moedor de carne.

Valor: É por isso que voltou a guerra de trincheiras?

Berzins: Isto representa o despreparo das forças russas, mais do que uma volta da guerra de trincheira. Estão fazendo a guerra de um jeito primitivo. E também é porque do lado da Ucrânia falta uma força decisiva para agredir os russos. Se tivessem uma força aérea suficiente, poderiam bombardear as trincheiras e pronto. Falta artilharia. E existe um problema de falta de munição generalizado, não só lá, mas no mundo inteiro.

Valor: Nesse cenário, seria de esperar que a Rússia buscasse uma saída honrosa, mas não pode aceitar o que a Ucrânia exige, que inclui a Crimeia. Há espaço para a paz?

Berzins
: Infelizmente, muito pouco. A Rússia jamais vai aceitar perder a Crimeia. Ponto. A Rússia passou uma lei reconhecendo a independência do Donbass. Isso, para a Ucrânia, é inaceitável. Não vejo como se possa chegar a um acordo, no futuro próximo, para acabar a guerra. O parlamento russo já orçou coisas como hospitais militares até 2025. Estão considerando que a guerra vai continuar por muito tempo. E vai ser uma guerra de exaustão. Levando em consideração questões estruturais, da economia como um todo, a Rússia provavelmente vai ter exaustão primeiro.

Valor: Nesse caso, o Brasil pode ter um papel na busca pela paz?

Berzins
: Pode, sim. Tem condições de ser um mediador da paz. Mas para isso tem que entender direto o que está acontecendo. Por exemplo, quando o Brasil sugere que a Ucrânia deveria aceitar a perda da Crimeia, mostra que não sabe o que está em jogo ali. Não basta a simpatia para mediar a paz. E pensando de maneira mais ampla, se o Brasil for exercer um papel maior na política internacional, vai ter que desenvolver mais sua economia. Foi por isso que a China se tornou relevante. Ela tem ambição estratégica, mas também tem os recursos para persegui-la. A Rússia tem cada vez menos. E a Índia também começa a crescer em importância. Isso é pouco falado no Brasil.

Valor: Pode haver um colapso econômico? No ano passado, apesar das sanções, o PIB russo caiu só 2,1%
.
Berzins:
Não creio, porque o que a gente chamaria de economia em colapso era o estado normal da URSS, sobretudo nos anos 80. Mas o PIB caiu só 2,1% por causa do preço do petróleo, que esteve alto. Em termos econômicos, a Rússia é dependente de exportações de commodities, sobretudo petróleo e gás. Ela tem reservas que estão sendo exploradas agora e em alguns anos vão terminar. Vai ter que explorar no Ártico, onde já estão sendo montadas refinarias. Mas esse projeto no Ártico é em colaboração com a Shell e a BP. Por causa das sanções, essas duas já saíram. Os russos não têm tecnologia para explorar a região. Os chineses tampouco. E quais são os avanços tecnológicos da Rússia nos últimos 30 anos? Não tem. Não dominam tecnologia ferroviária, não fabricam motor de navio. Cerca de 70% da tecnologia de um Sukhoi Su-34, um dos caças mais avançados, é do Ocidente. Os tanques T-72 e T-80 tinham sistemas de transmissão com componentes ocidentais. Precisaram voltar à tecnologia soviética. A Rússia passa por um retrocesso tecnológico. Os jovens programadores, por exemplo, fugiram.

Valor: Como fica a posição geopolítica da Rússia com a demonstração de fraqueza militar?

Berzins
: Algo muda na discussão do mundo multipolar, onde a Rússia vem sendo muito ativa, enquanto os americanos querem resguardar a hegemonia. Quem sai fortalecido é sobretudo a China. Mas, em termos militares, apesar de a China ser um colosso, uma guerra com o Ocidente seria extremamente complicada. É até impensável, o mundo todo perderia. Mas a hegemonia não é só militar. O que ocorreu no Afeganistão mostra claramente que é possível ter uma vitória militar, como os Estados Unidos tiveram, e mesmo assim perder

Valor: O fracasso pode trazer risco político para Putin? As elites russas podem derrubá-lo?

Berzins: Acho que não. E se Putin cair, será que algo vai mudar? A questão é: foi Putin que criou o sistema ou foi o sistema que criou Putin como ele é agora? No começo, Putin não era assim. Tentou fazer uma aproximação com o Ocidente. Foi o primeiro que telefonou para Bush depois dos ataques de 2001, e ofereceu ajuda. Chegou a considerar a entrada da Rússia na Otan. Então quem fez Putin ser quem é? O indivíduo influencia o sistema, mas o reverso é verdade também. Essa postura anti-ocidental é um pouco característica dos russos, que culpam o Ocidente por seus fracassos. Os chineses, por exemplo, não fazem isso. O que os preocupa é a percepção de que o Ocidente quer impedir seu desenvolvimento.

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