Especial – O Brasil não começou em 1988: o Caso Xokleng, o julgamento do “marco temporal” e o neocolonialismo do século XXI

Nota DefesaNet

Pela importância do assunto do Marco Temporal para o futuro do Brasil, o Movimemnto de Solidariedade Ibero-americana disponibilizou aos leitores de DefesaNet a íntegra do Alerta Científico e Ambiental, publicado em 02 Setembro 2021.

O Editor

Diogo de Oliveira

Biólogo, antropólogo e indigenista especializado da Funai

Alerta Científico e Ambiental – MSIa

 

Neste fim de agosto de 2021, o STF retomou a discussão sobre a demarcação de terras indígenas, tendo como base na disputa judicial entre a União e a etnia xokleng contra o estado de Santa Catarina, em nome da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, na região do Alto Vale do Itajaí. A reserva indígena foi criada em 1926, com 40 mil hectares, mas reduzida para 14 mil, em 1954. Em 1979 começou a ser construída a Barragem Norte, para contenção de cheias do rio Itajaí, e 20 anos depois, como compensação pelos impactos causados, foram realizadas obras de infraestrutura e prestados serviços públicos aos índios. Daí surgiu a proposta de reconstituição de área com dimensão próxima da original, com 37 mil hectares, a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em 1999. Atualmente, vivem na área indígena cerca de duas mil pessoas, organizadas em oito aldeias, entre indígenas, mestiços e não indígenas, além de haver índios que vivem na cidade ou em pequenos sítios fora das aldeias.[i]

Na área de ampliação, vivem cerca de 500 famílias de pequenos agricultores, que pelo texto constitucional devem ser removidas de lá e não têm direito a indenização pelos imóveis. O caso dos xokleng representa uma centena de situações semelhantes ao redor do país, em muitas das quais não houve nenhuma garantia de acesso à terra para os indígenas, nem mesmo do mínimo para a subsistência. Esta é a situação de indígenas guarani, xavante, kaiowa, entre outros conhecidos há muitas décadas pelo Estado brasileiro, e a de “ressurgências étnicas”, formadas a partir da “etnogênese” de grupos autoidentificados como indígenas. Para a resolução dessas disputas fundiárias, é necessária muita cautela e diálogo entre as partes envolvidas, para fazer a mediação e a pactuação entre os direitos. Do contrário, serão causados traumas e ressentimentos que causarão mal-estar no conjunto da sociedade local e nacional.

O clima de confusão política que o Brasil atravessa e as incertezas globais no início do terceiro milênio deixam turvo o horizonte para um debate democrático e maduro, com vistas a solucionar de forma prática estas questões. A interferência internacional na questão ambiental e indígena dá visibilidade aos acontecimentos, porém é ruim no sentido de trazer para a escala geopolítica um assunto eminentemente interno ao Brasil, que tem, além deste, um conjunto de dilemas internos para resolver. O caso dos xokleng-laklãnõ Os xokleng são indígenas do tronco étnico jê, que viviam de caça e coleta pelo alto das serras, circulando um amplo território que ia desde o sul da serra paranaense até o nordeste gaúcho.

A partir de meados do século XIX, passaram a encontrar com frequência as famílias dos pioneiros colonos catarinenses, com as quais travavam sangrentos conflitos. Desta forma, os indígenas viviam sob ameaça permanente das ações dos bugreiros, que eram pequenas tropas especializadas em proteger as colônias e em perseguir e matar os índios. A guerra entre colonos e botocudos durou 60 anos, entre 1852 e 1914, até que os indígenas aceitaram se deixar pacificar, por intermédio de um agente do Serviço de Proteção ao Índio, Eduardo Hoerhann, e dos anciãos xokleng, Antonio Caxias Popó e Vacla Pathé. [ii] Foi a pacificação que garantiu o reconhecimento pelo governo catarinense da área original, de 40 mil hectares, com a construção do Posto Indígena Duque de Caxias, em 1926, onde os índios passaram a viver. Esta área foi reduzida em 1954 e afetada pela construção da barragem, em 1979, o que inviabilizou também o polo industrial que surgia em José Boiteux naquele período. Esta construção forçou a mudança das aldeias para as encostas dos morros e retirou a área de baixada plana, que era usada para produção agrícola e moradia.

Desde então, as casas foram atingidas por várias enchentes e algumas áreas dos morros estão em risco de deslizamento. Os descendentes atuais dos xokleng, em boa parte, são funcionários públicos de saúde e educação que atendem às próprias aldeias, aposentados e pensionistas, vivem de pequenos serviços ou trabalham nos frigoríficos da região. Inclusive, compartilham a área da reserva com mestiços e não indígenas em função dos casamentos e uma grande parte deles é evangélica. Entre os anos 1940 e 1990, viveu junto dos indígenas um grupo autointitulado cafuzo, remanescentes dos rebeldes na Guerra do Contestado (1912-1916), que foram reassentados em outra localidade.[iii] Também neste período, vários índios guaranis e caingangues foram transferidos para a reserva junto dos xokleng.

Nas vilas de agricultores, há áreas de reflorestamento e serrarias, granjas, tanques de peixes, plantações de fumo, hortaliças e alguma agricultura de subsistência, além de uma parte deles ser assalariada nas mesmas empresas que empregam os índios. É necessário encontrar espaços para que uma parte dos moradores da área indígena atual seja reassentada, inclusive, em função do crescimento demográfico. Ao mesmo tempo, há um impasse a ser sanado com os demais moradores locais, com os municípios e o estado de Santa Catarina.

Foi o governo estadual que emitiu o título originário da colônia Harmonia, em 1897, e formou a cidade de Ibirama, assim como emitiu o título originário da reserva indígena, em 1926, e depois o reduziu, em 1954. A área indígena declarada em 1999 abarca, por exemplo, 50% da superfície do município de Vitor Meirelles e 40% de José Boiteux, que foram emancipados nos anos 1960.[iv] Inclusive, a região como um todo foi impactada pela construção da barragem, entre 1979 e 1992, com a desestruturação da economia e a perda do parque industrial.[v] Em pleno 2021, uma modificação desta grandeza na estrutura fundiária e administrativa do país não é algo simples de ser executado e, portanto, carece de um profundo e amplo debate com a sociedade sobre a melhor forma de proceder.

Figura 1 – Croqui da área em disputa no caso xokleng-laklãnõ. Elaboração do autor.

 

A tese do “marco temporal” e sua aplicação em campo

No julgamento, o STF irá decidir a validade dos atos do governo estadual para a criação e a posterior redução da reserva dos xokleng, em 1926 e 1954, bem como do Ministério da Justiça para retomar a dimensão original, em 1999. Portanto, a Corte decidirá se existe um prazo para que a União passe a reclamar essas terras de volta e as atribuir integralmente para o usufruto exclusivo dos índios. Para que se tenha uma noção da retroação da medida neste caso, em 1954, Getúlio Vargas cometeu suicídio e Juscelino Kubitschek ainda não sabia que assinaria o decreto para a construção de Brasília; em 1926, foi reduzido o uso de balsas de acesso à Ilha de Santa Catarina, em função da construção da ponte Hercílio Luz como acesso ao centro de Florianópolis.

É para evitar estes tipos de mal-entendidos que se pretende estabelecer um “marco temporal” na Constituição de 1988, para a anulação dos títulos dos imóveis instalados em áreas reconhecidas como sendo de ocupação tradicional indígena e destinadas à sua posse permanente e usufruto exclusivo. Dificilmente, esta será uma solução, mas ao menos é uma iniciativa para o debate.

Clique na imagem abaixo para ter acesso à integra do Alerta Científico Ambiental em formato PDF

 

 

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