O Risco de uso de Armas Nucleares na Ucrânia

O RISCO DE USO DE ARMAS NUCLEARES NA UCRÂNIA

 

SERGIO DUARTE

Ex-Alto Representante das Nações Unidas

para Assuntos de Desarmamento. Presidente

das Conferências Pugwash sobre Ciência e

Assuntos Mundiais.

 

A guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia já dura há oito meses e não há sinal de que a situação possa evoluir para um cessar-fogo que permita o início de negociações sérias entre as partes envolvidas. As hostilidades prosseguem sem que se possa afirmar que um ou outro dos beligerantes venha a prevalecer decisivamente, ao menos no curto prazo.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão primordialmente responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais, se vê impossibilitado de agir nessa questão devido ao direito de veto sobre suas decisões, de que dispõe a Rússia. De fato, os cinco membros permanentes do Conselho – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia – são titulares exclusivos desse direito, o que na prática impede aquele órgão de tomar as medidas contidas no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas à revelia de qualquer deles.

A Assembleia Geral da ONU, onde não há veto mas cujas decisões não têm força obrigatória, deplorou a invasão da Ucrânia pela Rússia por 141 votos favoráveis (inclusive o Brasil), cinco contrários (Belarus, Coreia do Norte  Eritreia, Síria e a própria Rússia), e 35 abstenções [1].

A agressão armada é claramente proibida pela Carta. Nos termos dos Artigos 2.2, 2.3 e 2.4 todos os membros da organização mundial, inclusive os cinco acima citados, se comprometeram a cumprir de boa fé seus compromissos, resolver as controvérsias por meios pacíficos e abster-se de ameaçar ou usar a força contra a integridade territorial ou a independência política de outros Estados. À luz do direito internacional, a “operação militar especial” russa contra sua vizinha é evidentemente ilegal.  

A Ucrânia conta com o apoio político e com o fornecimento de armas e material militar moderno por parte dos membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Até o momento os beligerantes têm utilizado somente armamento convencional, embora de elevado poder destrutivo. Nas últimas semanas, porém, aumentou a preocupação internacional sobre a possibilidade de que venham a ser empregadas armas nucleares no conflito.

Várias autoridades russas fizeram declarações em tom ameaçador nesse sentido, e no dia 30 de setembro passado, ao anunciar a anexação de territórios nas regiões ucranianas de Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporijia, o presidente Vladimir Putin declarou: “Defenderemos nossa pátria com todos os meios à nossa disposição”. Dias depois, o presidente Joe Biden descreveu a situação atual como mais perigosa do que a crise dos mísseis de Cuba, ocorrida em 1962.

O Secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, declarou em 18 do corrente que haverá “consequências severas” para a Rússia caso venha a usar armas nucleares na Ucrânia e disse também que a aliança atlântica “está preparada para qualquer eventualidade”. Mesmo com certas nuances. nenhum dos dois lados descarta utilizar armamento nuclear se vier a considerar isso necessário.  Mais recentemente, a Rússia acusou a Ucrânia – com escassa credibilidade – de pretender detonar em seu próprio território uma bomba convencional “suja”, de elevado poder de radiação atômica, e lançar a culpa sobre Moscou.

É importante, na avaliação dos riscos, observar que embora as doutrinas nucleares de ambas as superpotências, assim como a da OTAN, contemplem a possibilidade de uso dessas armas em certas circunstâncias, inclusive em caso de uma “ameaça existencial”, as declarações oficiais acima mencionadas não parecem prenunciar o emprego iminente de engenhos nucleares no conflito.

Comentaristas e analistas dessa grave situação têm debatido o possível papel das chamadas armas nucleares “táticas” na guerra, em comparação com as consideradas “estratégicas”. O glossário compilado e recentemente publicado pelas cinco potências nucleares reconhecidas pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) não faz distinção entre esses dois tipos de armamento, pois na verdade ambos se baseiam no mesmo princípio científico e se destinam a produzir efeitos mais ou menos desastrosos (explosões, ondas de calor extremo e dispersão de partículas radioativas) segundo sua maior ou menor potência.

A bomba B61-12 não estratégica de que dispõem os Estados Unidos, por exemplo, varia de 0,3 a 50 kilotons (kt). Em comparação, a detonação em Hiroshima tinha a potência de 16 kt. Estima-se que os EUA possuam cerca de 200 dessas bombas B-61, das quais 100 se encontram em bases localizadas na Europa ocidental, e que a Rússia tenha uma quantidade maior dessas armas. O total de ogivas nucleares estratégicas colocadas em posição de tiro em cada um dos dois países está limitado em 1.550, segundo o acordo NovoSTART, de 2009, com potências explosivas medidas em  megatons (Mt) [2].

Os documentos oficiais russos e norte-americanos consideram “estratégicos” os sistemas objeto daquele acordo e “não estratégicos” todos os demais. Na prática, entende-se que estes últimos se destinam a um emprego tático, isto é, em operações de alcance limitado contra forças, instalações ou estruturas de apoio adversárias, enquanto os primeiros, de potência explosiva muito maior, buscam produzir efeitos de grande amplitude e longa duração.

Os engenhos “estratégicos” utilizam vetores de alcance intercontinental, enquanto os de uso não estratégico, ou “tático” atingem no máximo poucas centenas de quilômetros. Existe o receio de que diante da possibilidade de derrota militar na guerra convencional contra a Ucrânia, a Rússia lance mão de armas nucleares não estratégicas.  Até o momento nenhum dos contendores utilizou armamento nuclear na guerra.

Embora seu esforço bélico tenha custos elevados em termos de recursos econômicos e humanos e de prestígio político e militar, a Rússia conseguiu ocupar e controla atualmente uma ampla faixa de terra no leste da Ucrânia, privando esta última do acesso ao mar de Azov e parte do mar Negro, além de haver causado fortes prejuízos à infraestrutura e instalações industriais e urbanas em muitas cidades. Em contraposição, com constante apoio ocidental em termos de armamento convencional de ponta, a Ucrânia tem podido recuperar parte das regiões ocupadas e infligir graves perdas às forças russas.    

Diante do atual panorama do conflito, não parecem dadas as circunstâncias extremas em que estaria previsto o uso de armas nucleares por parte de Moscou, segundo a politica nuclear aprovada em um decreto de 2020 pelo presidente Putin, que declara essas armas “exclusivamente meios de dissuasão, cuja utilização é uma medida extrema e forçada pelas condições”.  Tais condições, ainda segundo o decreto, seriam as seguintes:

 

a) recebimento de informações fidedignas sobre o lançamento de mísseis balísticos contra ao território russo ou de seus aliados;

b) uso, por parte de um adversário, de armas nucleares ou outras armas de destruição em massa contra a Rússia;

c) ações hostis contra instalações governamentais ou militares cuja inabilitação possa provocar o impedimento de ações de resposta com forças nucleares; d) agressões contra a Rússia com armas convencionais que coloquem em risco a própria existência do Estado”.

A existência – ou não – dessas condições depende em parte de interpretação, mas pode-se inferir que as três primeiras não se verificaram até o momento. Seria sem dúvida difícil concluir que as atividades militares da Ucrânia constituam um perigo existencial para o Estado russo. Até agora a Rússia tem evitado lançar operações militares contra países da OTAN, como a Polônia e a Romênia, onde existem centros de depósito e distribuição de armamento e material militar destinado à Ucrânia. Tais operações configurariam o disposto no artigo V do Tratado da Aliança Atlântica, segundo o qual um ataque a qualquer dos membros da OTAN constitui um ataque a todos e provocaria uma reação armada – isto é, o envolvimento direto da aliança atlântica no conflito até agora restrito à Rússia e Ucrânia.

Alguns analistas costumam identificar três circunstâncias em que poderia haver uso de armas nucleares por parte da Rússia no atual conflito:

 

a) uma detonação “de demonstração” em área não habitada;

b) um ataque de “contraforça” em campo de batalha, e

c) um ataque a um centro populoso a fim de buscar um acordo político de término da guerra ou a derrocada do atual governo ucraniano. É difícil prever qual seria a reação da OTAN nesses casos, mas muito provavelmente nenhuma dessas opções acarretaria o fim da guerra em condições vantajosas para a Rússia. 

Haveria, sem dúvida, o risco de uma reposta nuclear capaz de levar a uma conflagração mais ampla e certamente catastrófica pra ambos os lados, assim como para o restante do planeta.  

No exame das eventualidades acima descritas, não se pode excluir a possibilidade de erros de avaliação ou de interpretação de dados transmitidos pelos sistemas de alerta, nem tampouco a de acidentes. Deve-semesmo assim ter presente que além do repúdio universal aos danos ambientais e humanos causados mais além da área dos ataques, existe uma poderosa norma moral não escrita, comumente denominada “tabu nuclear” e que constitui a base do entendimento geral de que uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deve ocorrer. 

Nesse sentido, aliás, se expressaram conjuntamente os presidentes Biden e Putin um junho do ano passado, em uma declaração feita em Genebra com o estímulo e apoio da opinião pública internacional. Qualquer uso de armas nucleares seria objeto do opróbrio da comunidade internacional, inclusive países aliados de uma ou outra das duas maiores potências atômicas. 

O uso de armas nucleares, em qualquer cenário imaginável no atual conflito, parece portanto constituir um imenso risco em troca de vantagens limitadas e muito provavelmente não levaria à obtenção dos objetivos declarados da Rússia, ao mesmo tempo em que reforçaria a determinação da Ucrânia a resistir e a decisão da OTAN a sustentar seu esforço. A violação do “tabu” sobre o uso bélico de armas nucleares, consolidado ao longo dos últimos 77 anos desde a primeira – e única – vez em que tais armas foram usadasnum conflito, em Hiroshima e Nagasaki, poderia levar ao envolvimento de outros países no apoio à causa ucraniana e aumentar o isolamento da Rússia.

A razão e o bom senso nem sempre governam as ações dos indivíduos, inclusive líderes e dirigentes políticos. É importante que o mundo permaneça consciente dos graves perigos decorrentes de qualquer uso de armas nucleares e, ao vê-los ressurgir no contexto da guerra na Ucrânia, redobre os esforços em favor de um urgente diálogo entre a Rússia e os Estados Unidos em busca de um cessar-fogo seguido de negociações de paz. 

 

Além disso, toda a comunidade internacional deve exigir com veemência o cumprimento dos compromissos de segurança e desarmamento contidos nos instrumentos multilaterais em vigor, assim como seu aperfeiçoamento. A opinião pública tem papel fundamental nesse esforço. A humanidade não pode permanecer perpetuamente refém do instável e imprevisível equilíbrio nas relações entre as potências armadas. A única garantia contra o uso de armas nucleares é a sua completa eliminação.      

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