NUCLEAR – A REVOGAÇÃO DA RATIFICAÇÃO DO CTBT

Vladimir Putin no Valdai Club anuncia a decisão de revogar a ratificação do Tratado de Proibição  Abrangente de Ensaios Nucleares

SERGIO DUARTE
Ex-Alto Representante das Nações Unidas
para Assuntos de Desarmamento. Presidente
das Conferências Pugwash sobre Ciência e
Assuntos Mundiais.

O recente anúncio pela Rússia da decisão de revogar a ratificação do Tratado de Proibição  Abrangente de Ensaios Nucleares, conhecido pela sigla em inglês CTBT, representa mais um indício da deterioração do relacionamento entra as duas principais potências nucleares e denota o prosseguimento da tendência ao enfraquecimento do cumprimento das obrigações contidas nos acordos internacionais no campo do desarmamento, não proliferação e controle de armas nucleares.

As iniciativas de negociar um tratado multilateral de proibição de ensaios com explosivos nucleares são antigas. A primeira proposta nesse sentido foi feita pela Índia, em 1954. Desde a década de 1960 um grupo de cientistas especializados em sismologia iniciou debates informais, no seio do Comitê das Dezoito Nações sobre Desarmamento (ENDC), sobre a possibilidade de estabelecer sistemas de verificação confiáveis em um futuro tratado de proibição. O crescente número de detonações experimentais na atmosfera causava preocupação em todo o mundo devido às consequências ambientais e ao receio de proliferação do número de países dotados de capacidade nuclear bélica.

 Após haver dominado a tecnologia de ensaios subterrâneos, os Estados Unidos e a União Soviética negociaram um Tratado de Proibição Parcial de Ensaios Nucleares (PTBT), que se tornou mais conhecido pelo nome de Tratado de Moscou. Por esse instrumento, as Partes contratantes se obrigaram a proibir, prevenir e abster-se de realizar testes com explosivos nucleares ou qualquer outra detonação nuclear na atmosfera e no espaço exterior, assim como explosões subaquáticas ou em outros ambientes caso tais explosões ocasionem a presença de resíduos radioativos fora dos limites territoriais do estado que as leve a cabo.

O Tratado não previa sistemas de verificação além dos meios nacionais de cada estado. Em 5 de julho de 1963 os EUA, a URSS e o Reino Unido assinaram o PTBT, seguidos por mais de cem  outros países, inclusive o Brasil.

As potências nucleares continuaram a realizar ensaios, agora subterrâneos, com o objetivo de aperfeiçoar seu armamento, enquanto a comunidade internacional procurava expandir ao subsolo a proibição de novas explosões experimentais.  Os esforços dos sismólogos internacionais prosseguiram e na altura do final dos anos 1980 tornou-se clara a capacidade dos sistemas científicos de detectar explosões subterrâneas e distingui-las de movimentos telúricos naturais.

Esse avanço levou à negociação de um instrumento multilateral, que se iniciou na Conferência do Desarmamento, sucessora do ENDC, e culminou na adoção, em 1996, do Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT), que baniu todas essas experiências. Permite, no entanto, simulações em laboratório, desde que não produzam reação em cadeia.  

O CTBT criou uma forte barreira moral contra explosões nucleares experimentais. 183 países são seus signatários, dos quais 159 já o ratificaram. No entanto, o Tratado não se encontra ainda em vigor. Para isso são necessárias a assinatura e ratificação de 44 países, nominalmente mencionados no artigo XIV. Até hoje, oito dentre esses ainda não cumpriram integralmente esses requisitos. DPRK, Índia e Paquistão não assinaram, enquanto China, Egito, Estados Unidos, Irã, Israel e China, que são signatários, não o ratificaram. Desde o final dos anos 90 os possuidores de armas nucleares têm em geral se abstido de realizar novos ensaios. O mais recente foi levado a cabo pela Coreia do Norte, em 2006. Na ausência de testes torna-se mais difícil, embora não impossível, desenvolver e viabilizar novos projetos dessas armas.

A assinatura do CTBT pelo Executivo norte-americano em 1996 ensejou forte reação dos setores mais conservadores do Legislativo, que autorizou importantes recursos financeiros para a “modernização” das forças nucleares do país. A Rússia, igualmente signatária, também se dedicou a um programa de expansão de sua capacidade nuclear bélica, acrescentando sistemas de mísseis supersônicos e novos submarinos nucleares. 

Conforme indicado acima, até o momento nenhum dos dois países realizou ensaios explosivos após assinar o Tratado. Muitos especialistas argumentam que tais testes são necessários para assegurar a confiabilidade do arsenal existente e eventualmente para aferir com maior exatidão a performance de novos tipos de armamento.

O recente anúncio russo causa justificado alarme devido às frequentes ameaças feitas no passado recente por altas autoridades russas sobre o eventual uso de armas nucleares no conflito com a Ucrânia, além da transferência de armas nucleares “táticas” para o território da aliada Belarus. No entanto, a decisão parece mais destinada a gerar incerteza entre os adversários de Moscou, pois não modifica a atual doutrina e a postura nuclear do país. As autoridades russas se apressaram a comentar que não há, no momento, planos para realizar novos ensaios com explosivos e que a Rússia somente retomaria seus testes caso os Estados Unidos o façam primeiro.  

Há poucas semanas foram noticiadas experiências norte-americanas no estado do Nevada com uma bomba nuclear de alta capacidade explosiva, com o objetivo declarado de substituir armamento existente destinado a destruir instalações subterrâneas fortificadas. A Rússia não comentou tais informações. Têm surgido também relatos de recrudescimento das atividades no local de ensaios russo de Nova Zembla, no mar Ártico.

Novas experiências com explosivos por parte de outros possuidores tampouco parecem iminentes. Contudo, no atual contexto de guerra entre a Ucrânia e a Rússia, que já dura há quase dois anos sem solução, e diante da possibilidade de expansão da conflagração em curso no Oriente Médio, o anúncio russo de fato aumenta as tensões já existentes e constitui mais um golpe contra a já combalida estrutura internacional de acordos sobre controle de armamentos.

 O Instituto de Estocolmo para Pesquisas sobre a Paz (SIPRI) deu a conhecer no mês passado sua mais recente estimativa dos arsenais nucleares dos nove países possuidores – China, Estados Unidos, França, Índia, Israel, Paquistão, Reino Unido, República Democrática da Coreia e Rússia. Segundo o Instituto, em janeiro de 2023 existia um total de 12.512 ogivas nucleares em poder desses nove estados, isto é, apenas 86 mais do que em janeiro de 2022. O SIPRI calcula que aproximadamente 9.576 dessas ogivas se encontram armazenadas para uso potencial, das quais 3.844 a bordo de mísseis ou aeronaves e mais de 2.000 em estado de alerta operacional.

Nota DefesaNet

Abaixo tabela Forças Nucleares do SIPRI Yearbook 2023

Esses dados mostram que o total de armas nucleares russas e norte-americanas permaneceu relativamente estável em 2022, embora a transparência a respeito dessas quantidades haja diminuído após a eclosão do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Ambos os países continuam a desmantelar cerca de 1.000 ogivas que já se encontravam fora de serviço, em cumprimento ao acordo Novo START, celebrado em 2010.

O SIPRI estima que a China, cujas atividades nucleares são particularmente opacas, vem  aumentando significativamente o tamanho de seu arsenal,  que passou de 350 ogivas em janeiro de 2022 para 410 em janeiro do ano corrente e continua crescendo, a maior parte baseada em silos terrestres. No ritmo atual, até o fim da década Pequim poderia vir a dispor de uma quantidade de mísseis intercontinentais próxima à da Rússia ou dos Estados Unidos, o que tem servido em parte para justificar os esforços tecnológicos dos outros dois principais possuidores. 

Por sua vez, o Reino Unido anunciou em2021 que aumentaria  os limites unilateralmente fixados para seu arsenal, que passaria de 225 para 260 ogivas, a serem eventualmente dispostas em sua frota de submarinos a propulsão nuclear nuclear Trident

A França prossegue o programa de desenvolvimento de um submarino nuclear de terceira geração portador de mísseis balísticos e de um novo míssil de cruzeiro para lançamento aéreo, além da modernização de sistemas existentes. 

 Tanto a Índia quanto o Paquistão continuaram a expandir as capacidades de seus arsenais nucleares com a introdução de novos sistemas de lançamento durante o ano de 2022. A Índia possui um submarino a propulsão nuclear dotado de armamento atômico e tem-se dedicado ao desenvolvimento de mísseis de longo alcance, capazes de atingir alvos estratégicos na China.

A Coreia do Norte vem conferindo prioridade a seu programa militar nuclear, como elemento central de sua estratégia de segurança. Embora não haja realizado ensaios com explosivos atômicos no ano de 2022, levou a cabo mais de noventa testes com diversos tipos de mísseis. Analistas do SIPRI estimam que a RPDC possua atualmente cerca de 30 ogivas, além de material físsil suficiente para mais 20 ou até 40 em relação ao  inventário existente em janeiro do ano passado.

Israel não desmente nem confirma oficialmente possuir armas nucleares e mantém estrito silêncio sobre suas atividades nesse campo, mas acredita-se que também realize esforços de modernização de seu arsenal. 

O SIPRI registra ainda que a maioria dos países nuclearmente armados passaram a utilizar uma retórica mais assertiva sobre a importância do armamento nuclear, com ameaças explícitas ou implícitas quando à possibilidade de seu uso.

Na verdade, está em curso uma verdadeira “proliferação tecnológica”, na medida em que esses países continuam a acrescentar novas capacidades destrutivas às armas existentes ou a desenvolver novos tipos de vetores para lançamento por terra, mar e ar, embora até agora não tenham realizado ensaios com explosivos.  Recentemente, o presidente Vladimir Putin anunciou a conclusão de testes bem sucedidos com mísseis dotados de propulsão nuclear, tornando-os mais velozes e mais difíceis de detectar. Por sua vez, o Departamento de Defesa norte-americano afirmou sua intenção de pedir ao Congresso recursos financeiros para o desenvolvimento e produção de uma variante mais moderna da bomba nuclear de gravidade B-61, alegando a necessidade de fazer frente a “crescentes ameaças de adversários potenciais”.  Segundo relatos de imprensa a potência explosiva máxima do novo artefato poderá variar até 24 vezes mais do que a bomba lançada sobre Nagasaki. Finalmente, conforme mencionado acima, a China prossegue o programa de expansão da rede terrestre de silos subterrâneos e já é detentora da mais numerosa marinha de guerra do mundo.

A retomada da competição armamentista entre as principais potências torna menos previsíveis suas reações recíprocas, aumenta as tensões entre elas e potencializa os riscos de uma conflagração nuclear.  


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