Putin quer você

Lula e o propagandista russo Pepe Escobar, em 2019: “Eu gostaaria que você conhecesse o Celso Amorim”

Duda Teixeira
OESTE
14 Dezembro 2023
 

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, ampliou a guerra de desinformação para fazer com que os brasileiros assumam o mesmo lado do Kremlin nos principais conflitos mundiais: a favor da Venezuela na sua ameaça de anexar 70% da Guiana, da Rússia na invasão da Ucrânia, do Hamas no conflito com Israel. Além de direcionar a opinião pública, o objetivo é influenciar as posições da política externa brasileira, evitando que o país se torne mais um detrator dos russos no exterior.

Essa máquina funciona com influenciadores brasileiros que reproduzem o discurso do Kremlin para os seus milhares de seguidores. Funciona com contas de robôs que divulgam links de interesse dos russos. Com grupos neofascistas treinados e financiados por Moscou. E com canais de comunicação mantidos por Moscou, como Russia Today, RT, e Sputnik News — ambos suspensos na União Europeia por espalharem desinformação.

Crusoé teve acesso exclusivo a um relatório do Centro para a Resiliência da Informação (CIR, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos com sede em Londres dedicada a expor violações dos direitos humanos, crimes de guerra e combater a desinformação. Seus pesquisadores rastrearam 112 mil mensagens publicadas no Facebook entre 2020 e 2023 para mapear como funciona essa operação russa.

Foram selecionadas contas que falavam sobre a Rússia e que compartilhavam os mesmos links, no mesmo instante. Foi uma maneira de identificar ações coordenadas. Então, os analistas olharam o conteúdo das mensagens. Entre 2020 e 2021, essas postagens enalteciam o desenvolvimento tecnológico e militar da Rússia e elogiavam sua vacina Sputnik V para a Covid. (Em 2021, Crusoé apontou o uso de contas de embaixadas, ministérios e canais ligados ao Kremlin, como Sputnik News e RT, para gerar dúvidas sobre as vacinas ocidentais, concorrentes da Sputnik.)

Entre 2021 e 2022, o CIR identificou um conjunto de contas enaltecendo Jair Bolsonaro, depois que o então presidente se encontrou com Putin semanas antes do início da invasão. Bolsonaro foi tratado como um líder poderoso, fazendo a coisa certa. Também foram divulgadas mensagens tentando culpar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, pela guerra na Ucrânia e falando do risco de uma hecatombe nuclear.

Este ano, os pesquisadores localizaram outro grupo, de esquerda, elogiando Lula, também por ele se aproximar da Rússia. Foi detectado ainda o uso de contas com abordagem de assuntos como carros, esportes e turismo, que eram usadas, vez por outra, para turbinar os textos políticos, em mais uma evidência de ação coordenada.

Até aí, a operação russa no Brasil seguiu na mesma toada do que foi feito em outros países. O diferencial local veio com a formação de uma rede de brasileiros de carne e osso que, bem coesa, espalha o ponto de vista do Kremlin nas redes sociais e nos veículos de mídia do Kremlin. Em outubro deste ano, o Departamento de Estado americano divulgou um texto sobre a organização “quase paramilitar” brasileira Nova Resistência.

O grupo, fundado em 2015, foi acusado de promover “ideologias neofascistas do filósofo russo Aleksander Dugin, cuja Quarta Teoria Política (4PT) busca unir grupos de extrema direita e extrema esquerda ao redor do mundo visando desestabilizar a democracia e derrubar a ordem internacional baseada em regras”. Diz o Departamento de Estado: “O site da Nova Resistência — registrado em Moscou — publica regularmente desinformação pró-Kremlin e pró-autoritária, comparável, em termos de conteúdo e tempo, a meios de comunicação com vínculos conhecidos com a inteligência russa”. Segundo os americanos, seus membros se reúnem com representantes da Belarus, Coreia do Norte, Síria, Venezuela e apoiam abertamente o grupo terrorista libanês Hezbollah.

No estudo do CIR, foram identificadas as treze contas no X, antigo Twitter, com discursos mais alinhados à Rússia e com mais seguidores, entre setembro e dezembro de 2023. Todas interagiam umas com as outras. Compartilhavam conteúdo, respondiam mensagens e interagiam com as demais. Em algum grau, todas estavam conectadas com a Nova Resistência e eram usadas para deslegitimar a Ucrânia, culpar a Otan e os países ocidentais pela guerra, criar confusão e ofuscar a realidade.

O presidente da Nova Resistência é o advogado Raphael Machado, que vive em Caxias do Sul e tem 21 mil seguidores no X. Ele contribui para a RT e promove o site Sputnik News, ambos do Kremlin. Qualquer que seja o assunto, Machado nunca sai da linha do governo russo. Em 9 de dezembro, ele fez uma publicação sobre a tensão entre a Venezuela do ditador Nicolás Maduro e a vizinha Guiana: “A busca pelo Essequibo responde a exigências históricas e necessidades geopolíticas (evitar uma nova base atlantista na região e enfraquecer as ferramentas geopolíticas dos EUA), tirando proveito de um contexto de instabilidade global”. Machado também afirma que Israel não está em uma guerra contra o Hamas, e sim contra a Palestina.

No dia 10, ele escreveu: “O que estamos vendo em Gaza é o desvelamento aos olhos do mundo dos planos sionistas para todos os povos da Terra. Para os líderes sionistas somos todos amalekitas e dignos apenas de extermínio ou escravidão”. O movimento histórico de judeus perseguidos em busca de autodeterminação e de um Estado próprio, contudo, nunca implicou na eliminação dos árabes, como quer fazer acreditar Machado.

O influenciador com mais seguidores da lista de cabeças pró-Putin é o jornalista Pepe Escobar, que tem 138 mil seguidores no X. Ele escreve para veículos de comunicação do Kremlin, como Sputnik News e RT, e para o site Strategic Culture Foundation. Este último é um jornal online do Serviço de Inteligência Exterior da Rússia, ligado ao Ministério de Relações Exteriores russo. Além de ser seguido por todos os demais influenciadores identificados pelo CIR, Pepe é tido por um especialista em geopolítica entre petistas e tem uma coluna no blog chapa-branca Brasil 247, que este ano recebeu meio milhão de reais do governo federal.

É difícil mensurar exatamente o quanto a Rússia tem conseguido moldar a opinião pública e a política externa brasileira. Nas diversas redes sociais, esses influenciadores, somados, têm 1 milhão de seguidores. A plataforma preferida deles é o X, que ficou mais livre com a compra por Elon Musk. No mundo real, a influência do grupo pode ser medida observando os vínculos que eles estabeleceram ao longo dos últimos anos.

Em 2019, a convite do Brasil 247, Pepe entrevistou Celso Amorim, atual assessor especial da Presidência. Na conversa, Pepe disse que Celso Amorim era o “Sergey Lavrov brasileiro”, em referência ao chanceler russo. Amorim, lisonjeado, agradeceu a comparação e disse que acompanhava as análises de Pepe com grande interesse.

Naquele ano, Amorim atuou como conselheiro editorial do Brasil 247. Além disso, Lula, que ainda estava preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, afirmou que Escobar e Amorim deveriam se conhecer para “um debate” (assista ao vídeo abaixo). Em abril deste ano, os influenciadores pró-Rússia articularam para que o guru de Putin, Alexander Dugin, publicasse um artigo, em português e em inglês, na revista da Escola Superior de Guerra, ligada ao Ministério da Defesa. Entre outros conceitos, Dugin defendeu um “mundo multipolar, em oposição àquele que era dominado pelos Estados Unidos. É uma das teorias preferidas de Putin, Lula e Celso Amorim.

Fato é que, seja com Bolsonaro ou com Lula, o Brasil tem evitado desagradar o autocrata russo. O petista não condenou diretamente as ameaças de Maduro à Guiana, disse que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e a OTAN eram responsáveis pela invasão russa e que Israel “repete ataques ainda mais sérios do que o ato terrorista” do Hamas. Putin, por ora, não tem do que reclamar.

A questão que se coloca é qual deveria ser a reação brasileira frente a essa ingerência russa e os riscos que ela representa. Apesar da acusação do Departamento de Estado americano de que é uma organização “neofascista e quase paramilitar”, a Nova Resistência segue ativa e com as contas funcionando nas redes sociais. Ninguém apontou um crime na atuação do grupo e as autoridades nacionais não se moveram.

Para Tom Southern, diretor de pesquisa do CIR, que realizou o estudo, há, contudo, vários motivos para se preocupar com Putin. “No Brasil, essa atuação é mais recente. Mas, na Europa, onde os russos interferem há 10 ou 20 anos, já é possível ver o impacto dessas ações na política”, diz Southern. Na direita, os frutos dessa campanha poderiam ser vistos nos movimentos pela família, em linha com o conservadorismo russo nos costumes. Na esquerda, os exemplos estariam na rejeição ao Ocidente e à Otan.

O aumento do antissemitismo, que ocorre dos dois lados do espectro político, também poderia ser um sintoma dessas operações. No início de novembro, o Ministério de Negócios Europeus e Estrangeiros da França condenou o envolvimento da rede russa, a RRN, na amplificação nas redes sociais de imagens de estrelas de Davi, um símbolo judeu, que foram pichadas em casas de judeus no 10º arrondissement, em Paris.

Nessa ação digital, foram usados 1.095 robôs na rede X, que publicaram 2.589 postagens com essas imagens de antissemitismo. O propósito, segundo o ministério francês, seria o de “explorar as crises internacionais para semear confusão e criar tensões no debate público na França e na Europa”.

Quando um país como o Brasil segue os ditames do governo russo, o perigo é menor. Mas bastaria que um futuro governo decepcionasse o Kremlin para que a estrutura criada ao longo de vários anos fosse usada para semear a discórdia.

Caso o Brasil não faça o que a Rússia quer mais adiante, Moscou poderá usar essa rede para gerar divisão e polarização na sociedade, assim como ocorreu em outros países. A Rússia ama as democracias, principalmente no sentido de que pode tentar manipulá-las nas eleições que ocorrem regularmente. Não acho que os brasileiros gostariam que algo assim acontecesse em seu país”, diz Southern.

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