Muro de Berlim – 25 anos de falência do marxismo

Por George Friedman – Texto do Stratfor

Adaptação, tradução e edição – Nicholle Murmel

Há 25 anos, uma multidão tomada por uma mistura desconfortável de alegria e raiva pôs abaixo o Muro de Berlim. Houve alegria pelo fim da divisão da Alemanha e o fim da tirania. Houve raiva contra medos que atravessaram gerações. Um dos medos era o da opressão comunista. O outro era a ameaça de uma guerra que pairava sobre a Europa e a Alemanha desde 1945. Um desses temores era moral e ideológico, o outro era geopolítico. E assim como em todos os momentos políticos decisivos, medo e raiva, ideologia e geopolítica se juntaram em uma mistura inebriante.

O apelo do pensamento marxista

A falência econômica do comunismo soviético há 25 anos é para nós um dado – resultante da fraqueza geopolítica. É difícil para nós lembrar o quanto o marxismo era sedutor, e o quão ameaçador era o poder soviético. Para a minha geração, nas melhores universidades, marxismo não era uma forma exótica de despotismo oriental, mas uma explicação convincente para como o mundo funcionava, bem como um imperativo moral ao qual um número impressionante de estudantes e professores estavam comprometidos. A grande maioria dos marxistas no que se chamava de “nova esquqerda” adotou a postura mais por modismo do que paixão. Um pequeno segmento da nova esquerda, particularmente na Europa e com apoio de inteligência soviética, agiu diretamente e assumiu riscos, cometendo assassinatos, ferindo e sequestrando pessoas, e explodindo coisas na busca de objetivos políticos. Essa minoria tinha coragem, os demais eram superficiais e cínicos. Não há dúvida de que os superficiais e cínicos eram mais elogiados.

Ainda assim, ideologicamente, o marxismo em suas variedades tinha um poder persuasivo que mesmo quem viveu na época tem dificuldade em lembrar. Sua atração tinha pouco a ver com democracia industrial, apesar de as canções dos movimentos trabalhistas serem entoadas regularmente. Tratava-se bem menos do proletariado e mais da revolta contra o que era percebido como o caráter unidimensional da afluência. Nuca foi claro para mim o que os marxistas tinham contra a ascenção social, já que eu era relativamente pobre, mas o rancor contra a rendição da geração anterior à vida comum era intenso.

O marxismo se tornou a ideologia dos jovens, que celebravam uma forma de superioridade moral. E isso não pode ser desconsiderado. Os jovens vieram conduzindo as revoluções na Europa desde 1789, e sempre foram movidos por um profundo senso de superioridade moral. A paixão do jovem Karl Marx, escrevendo em meio aos levantes de 1848, levou diretamente a Lenin e Stalin. A virtude auto-proclamada desses jovens tem consequências – algo que ninguém que frequentasse uma universidade na Europa ou Estados Unidos nas décadas anteriores ao colapso da URSS podia ignorar. A noção de que o novo é superior ao antigo está embutida no Iluminismo. Acrditamos no progresso, e os jovens tem mais futuro que os velhos.

Ao olhar para fotos dos que comemoravam a queda do Muro, percebe-se que foram os jovens que se levantaram. Eu não estava em Berlim na época, mas estive antes, e a cidade era um medidor do marxismo. Estou moral e estatisticamente certo de que muitos daqueles que celebravam a queda do muro eram marxistas.

Quando a icônica parede veio abaixo, em boa parte ela destruiu a ideologia marxista. A nova esquerda acreditava que o comunismo soviético era uma traição ao comunismo original. Uma vez que a teoria de Marx argumentava que a História é, até certo ponto, determinista, como o marxismo falhou sob a perspectiva de seus próprios sguidores é algo que nunca ficou claro para mim. Mas no fim das contas, o marxismo da minha geração tinha mais a ver com o fato de que os pais da juventude da época, criados durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra, se davam por satisfeitos com uma casa, um carro, um marido ou esposa e algumas economias. Os jovens sempre têm aspirações mais grandiosas do que apenas viver, mas essa geração também cresceu e superou a fase.

O destino do marxismo na Europa e nos Estados Unidos foi muito diferente do que aconteceu na União Soviética e no Leste Europeu. O comunismo morreu na URSS junto com Stalin. Junto com Mao na China, Stalin era o último grande comunista. Ele não apenas acreditava, mas agiu em função dessa crença. No coração do comunismo havia a luta de classes, e isso terminou quando o Partido Comunista venceu na Rússia. O Partido e o povo tiveram que ser purgados e forjados em algo sem precedente. Seria um processo doloroso, e Stalin estava pronto para impor essa dor – o líder comunista é o argumento mais preciso contra a sinceridade. Ele sinceramente acreditava não apenas na possibilidade de criar uma nova sociedade, mas nas medidas brutais necessárias para alcançar esse objetivo.

Stalin matou o comunismo. Ele tinha razão – criar uma nova sociedade exigia sofimento. Ele não percebeu, ou talvez no fim não se importasse com o fato de o sofrimento exigido ter tornado essa nova sociedade sem propósito, corrupta mesmo antes de nascer. Nikita Khrushchev tentou construir o Estado comunista sem stalinismo, mas quando Leonid Brezhnev, Alexei Kosygin e Nikolai Podgorny depuseram Khrushchev, em 1964, foi a revolução dos exaustos. Suas vidas se baseavam em um único triunfo – eles haviam sobrevivido a Stalin, e o objetivo era continuar sobrevivendo.

Brezhnev destruiu o comunismo ao tentar concentrar o máximo de poder e fazer o mínimo possível com ele. O governante afundou em corrupção e fraqueza, e exerceu seu regime. O restante do império não se revoltou, apenas tirou vantagem do fato de que a União Soviética era corrupta e auto-undulgente. Não foi tanto uma revolução, foi mais o fato de que eles deixaram abertas as portas da prisão.

A falha do marxismo

O marxismo se autodestruiu porque adquiriu poder, e exibir o credo marxista num cenário de poder lhe custa credibilidade. Caso nunca tivesse chegado a um governo, mais gente do que o punhado que ainda se denomina marxista tivesse levado a doutrina a sério.

A ideologia projetada por Marx foi repudiada, ainda que ela mesma repudiasse ideologias no geral. Foi o cúmulo do Iluminismo não só porque o marxismo tinha a noção mais extrema de igualdade imaginável, mas também porque era brutalmente consistente. A teoria trazia paradigmas não apenas em termos de política e economia, mas também arte, a criação adequada das crianças, métodos agrícolas e o papel do esporte na sociedade. Havia abordagens sobe tudo, e o poder do Estado à sua disposição, nada estava fora da sua jurisdição. No fim, o pensamento marxista desacreditou o Iluminismo – era o reductio ad absurdum da razção sistêmica. O marxismo estilhaçou as Luzes em uma infinidade de prismas, cada um livre para viver da única forma que a proposta comunista não tolerava – uma vida de contradições. Somos herdeiros da incoerência resultante.

Mas a verdade foi que o marxismo não apenas falhou em criar a sociedade que desejava, mas também não conseguiu motivar a nova esquerda. A doutrina nunca conseguiu escapar da realidade primordial da condição humana, e não digo escapar do interesse próprio e da corrupção. Foi incapacidade de fugir do fato de que a comunidade é a fundação da existência humana – mais importante que o indivíduo e certamente mais importante que as classes sociais.

Do começo ao fim, a União Sovética foi um império. Havia o centro em Moscou e um aparato que controlava os Estados vassalos. A ideologia podia alegar que estava se criando um” homem soviético”, mas na verdade o russo era russo, o cazaque era cazaque, e o armênio era armênio. Por mais que tenha tentado, Stalin nunca conseguiu solapar essa realidade. E quando ele morreu, e à medida em que as peças do bloco soviético se enfraqueciam  e se corrompiam, essas diferenças nacionais se tornaram ainda mais importantes.

Mais do que isso, a URSS se portava diante do mundo como um império. Ao assumir o poder, Lenin fez um acordo com a Alemanha – terras em troca de paz. Realmente, Lenin ascendeu como enviado alemão mandado a São Petesburgo em um trem lacrado para derrubar o governo e selar a paz com a Alemanha em termos melhores para Berlim. E ele fez esse acordo a fim de tomar o poder. Quando a Alemanha foi derrotada na Primeira Guerra, ele recuperou as terras e o resto do império em uma guerra civil que retomou o território de Pedro, o Grande. Quando olhamos para trás, a luta de classes foi apenas um prefácio. A realidade era mais próxima do que Marx havia denominado “despotismo oriental”, somado a uma rendição à realidade geopolítica da época.

Já Stalin passou a segunda metád da década de 1930 preparando a guerra contra a Alemanha, purificando as Forças Armadas, matando camponeses de fome a fim de adquirir metalúrgicas e construir armamentos. O fato de ele ter calculado errado o início não muda o final – Stalin fez uma guerra implacável ao longo da pátria-mãe e moveu o imperio soviético para o leste até o centro da Alemanha e os Cárpatos. A URSS se ancorou no centro da Europa fazendo guerra contra os EUA pelos antigos impérios europeus libertados no colapso do poder eurocêntrico. Trata-se de uma das grandes ironias da História que o maior conflito imperialista, a Guerra Fria, tenha sido entre duas potências anti-imperialismo – Estados Unidos e União Soviética.

Alemanha: os sonhadores de ontem não querem pagar a conta de hoje

Atualmente, todos sabemos que a URSS já estava condenada. Mas isso não estava nem de longe tão claro para os EUA enquanto lutavam até o armistício na Coreia e perdiam no Vietnã. Não estava claro durante a Crise dos Mísseis de Cuba em 1962, ou durnate o bloqueio de Berlim. Acima de tudo, não estava claro nos anos 1980, quando os soviéticos invadiram o Afeganistão. O marechal Josip Broz Tito havia morrido na Iugoslávia, e os comunistas estavam em maus lençois. A  sociedade grega estava despedaçada e os soviéticos financiavam todos os lados de uma guerra civil insipente na Turquia. A estratégia americana de contenção era sólida na Europa e previa a China em seu horizonte, mas parecia se desfazer em uma linha que ia da Iugoslávia até o Afeganistão.

Em retrospectro, vemos que o bloco soviético havia perdido faz empo sua vontade de exercer poder. Não poderia ter assumido riscos mesmo se quisesse. Nos anos 1980, era capaz de provocar os EUA e seus aliados, mas um golpe real era algo que assombrava apenas o imaginário dos cidadãos americanos. Ainda assim, os soviéticos jogaram o jogo geopolítico. Cercados, eles procuraram brechas e, falhando em encontrá-las, tentaram desequilibrar os Estados Unidos ao longo do globo. Havia presença soviética em todo lugar, mas a economia já estava fraca, e seus líderes queriam desfrutar de suas casas de campo. Em parte eles haviam perdido a crença, mas, também olhando para trás, eles eram fracos.

Marx argumentava que a revolução socialista viria em nações industriais avançadas, como a Alemanha. Em vez disso, ela aconteceu em um país completamente contrário ao que sua teoria propunha, e onde construir o comunismo era impossível. A revolução começou em uma porção enorme do continente eurasiano, e não na Península Europeia. Em um país empobrecido e isolado territorialmente, com transporte péssimo e população dispersa, não nas áreas próximas ao mar, com condições excelentes de circulação e concentração de pessoas. Isso significou que a ocupação de parte da Alemanha e do Leste Europeu após a Segunda Guerra deixou as autoridades soviéticas com uma região que passava a partilhar da pobreza russa, que precisava ser ocupada e defendida.
A solução americana para a disputa imperialista subsequente foi simples: esperar. Não havia mesmo outra solução – tentar invadir a Rússia já havia destruído Napoleão e Hitler. A geopolítica da época impôs uma estratégia de espera nos dois lados, e a URSS tinha menos tempo sobrando que os EUA e seus aliados.

E então o Muro de Berlim veio abaixo. Os sonhos mais fantásticos do Iluminismo foram estilhaçados. Os jovens marxistas da capital alemã, confusos com uma História que não se adequava aos seus sonhos contraditórios, arrumaram empregos na Siemens ou no Deutsche Bank, ou se mudaram para Bruxelas. Os americanos cantaram uma vitória até razoável, se a estratégia de fazer nada se enquadrar nas regras da Geopolítica. E o império soviético se despedaçou em pequenos fragmentos que não podem ser reconstruídos, apesar de um líder atul que gostaria de pensar em si mesmo como um Stalin, mas que na verdade é uma versão bem-vestida de Brezhnev.

O acontecimento mais importante do dia 09 de novembro de 1989, e que não deve ser esquecido, é que a Alemanha novamente se tornou um só país. Desde a Unificação de 1871, uma Alemanha coesa represeta um problema para a Europa. É uma nação produtiva demais para que se possa competir, e insegura demais para que se possa conviver. Não é uma questão de ideologia, mas de geografia e cultura. Os rapazes e moças que foram ao Muro na época, agora apoiam as políticas de austeridade na Europa, não aceitando a responsabilidade pela incompetência do resto do continente. Por que deveriam?

A queda do Muro de Berlim há 25 anos serviu como um ponto de exclamação na História, marcando o fim de uma ideologia e de um império. O episódio não foi o “fim da História”, e sim renovou o enigma que preocupa a Europa desde 1871 – o que a Alemanha fará agora? E o que o mundo ao redor fará com a Alemanha? Essas questões, antes um pouco incômodas se tornaram consideravelmente incômodas. No Velho Mundo, a História às vezes dá uma festa e então aparece com uma supresa desagradável.

Mas veja bem, a Europa é sempre uma surpresa, ou ao menos finge que é.

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