A Reunião de Cúpula do G-7

 

SERGIO DUARTE

Embaixador, ex-Alto Representante das
Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash sobre
 Ciência e Assuntos Mundiais
.

A reunião de cúpula do G-7, realizada de 19 a 21 de maio, demonstrou a forte coesão e a identidade de pontos de vista sobre a situação internacional entre os países que compõem o Grupo (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) e tornou mais evidente a divisão geopolítica entre Pequim e Moscou, de um lado, e parte do Ocidente, do outro. O local escolhido para a reunião anual dos países que compõem o G-7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) foi a cidade de Hiroshima, arrasada pelo primeiro bombardeio atômico da história mundial.

A escolha do local é um claro símbolo da preocupação de toda a humanidade com a ameaça de uso de armamento nuclear. Os temas de segurança internacional ocuparam grande parte dos debates, inclusive durante o tempo destinado à interação com os líderes dos países não membros do G-7 convidados à segunda parte do encontro (Austrália, Brasil, Comores, Coreia do Sul, Ilhas Cook, Índia, Indonésia e Vietnam).

Três documentos foram adotados ao final da reunião dos membros do G-7. O primeiro acentua a decisão de “enfrentar os desafios globais do momento, com base e parcerias internacionais mundiais em direção a um futuro melhor”, com base no respeito à Carta das Nações Unidas e por meio de parcerias internacionais. Menciona as seguintes medidas concretas, delineadas em um documento de referência: apoio à Ucrânia enquanto for necessário; fortalecimento dos esforços em prol do desarmamento e não proliferação; coordenação em busca de resiliência econômica com redução de riscos; impulso à transição energética; lançamento do “Plano de Ação de Hiroshima” para segurança alimentar; e o objetivo de mobilização de  600 bilhões de dólares para a infraestrutura global.  O G-7 condena veementemente a invasão russa e recorda o preceito, firmado em 1968 e reafirmado pelos presidentes da Rússia e dos Estados Unidos em 2021, de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deve ocorrer”.

Para o Grupo, o armamento nuclear deve servir, “enquanto existir”, para fins defensivos e para dissuadir agressão e evitar a guerra e a coerção. Essa categórica formulação, compartilhada por seus aliados, parece indicar que tais armas não deixarão de ser parte integrante das doutrinas militares desses países até que por alguma ação não especificada – mas pela qual não se consideram legalmente responsáveis – elas possam vir a ser eliminadas. A grande maioria dos países não possuidores de armas nucleares considera, porém, que a mera existência dessas armas constitui uma ameaça à segurança de todos e advoga sua abolição.

Alguns comentaristas chamam a atenção para a possibilidade de uso de armas atômicas russas contra a Ucrânia. A doutrina militar da Rússia justifica sua utilização em caso de “ameaça existencial”. A propósito, Belarus concluiu nos últimos dias um acordo com a Rússia para a colocação de armas nucleares ““táticas”[1] em seu território. Tais análises apontam que diante de uma escalada convencional ucraniana, cada vez mais vista como provável para retomar áreas ocupadas e fortemente apoiada por insumos militares dos países da OTAN, não restaria aos militares russos outra opção senão lançar mão da carta nuclear.

Por sua vez, a aliança atlântica tem afirmado não pretender usar seu próprio poderio atômico em defesa da Ucrânia. Não se pode prever qual seria a extensão da reação da OTAN a uma escalada nuclear por parte da Rússia. Outros analistas ocidentais, porém, acreditam que a probabilidade de um ataque nuclear russo contra a Ucrânia seria extremamente baixa e confiam na capacidade de dissuasão representada pelo arsenal de que dispõe a OTAN.

Outro motivo de preocupação para o G-7, e especialmente para o Japão, anfitrião do evento, é a crescente ameaça de proliferação nuclear na península coreana. Ao longo dos últimos meses, o ditador norte-coreano Kim Jong-Un vem desenvolvendo sua capacidade de ataque nuclear, por meio de constante experimentação de mísseis de alcance cada vez mais longo. Ao mesmo tempo, Pyongyang contempla a possibilidade de ataques preventivos em caso de “ameaça imediata”. 

Por sua vez, o presidente da Coreia do Sul afirmou que seu país poderia vir a considerar a aquisição de capacidade nuclear própria. Posteriormente, durante visita oficial à capital dos Estados Unidos, o presidente Biden assegurou a seu colega a inabalável determinação norte-americana de defender nuclearmente a Coreia do Sul na eventualidade de um ataque pelo país do norte.     

Esses fatos levaram Washington a reiterar seu apoio ostensivo à Coreia do Sul e intensificar sua presença militar na região, elevando por sua vez o risco de escalada. Uma eventual recolocação de armas nucleares norte-americanas nesse país, sugerida por alguns, poderia suscitar reação hostil da Rússia e China, vizinhos da Coreia do Norte.  Os Estados Unidos anunciaram a decisão de basear ainda no corrente ano um submarino dotado de armamento nuclear em algum porto sul-coreano.

Um segundo documento adotado pelo G-7 contém as perspectivas para o desarmamento nuclear segundo a ótica do Grupo e reafirma o compromisso de atingir um mundo sem armas nucleares “com segurança não reduzida para todos”. Recorda também o fato de que as armas nucleares não foram usadas nos últimos 77 anos. Apresenta a “visão” do G-7 em matéria de desarmamento, controle de armamentos e não proliferação, limitando-se porém a reiterar posições tradicionais do grupo, sem trazer propostas que possam levar a novas reduções do armamento nuclear existente ou a progressos no sentido de medidas efetivas de desarmamento nuclear. Não transparece no documento o entendimento de que haja uma obrigação juridicamente vinculante de promover a abolição das armas nucleares. (Íntegra do documento abaixo)

Na verdade, todo o esforço dos nove países detentores de arsenais atômicos – e não apenas os membros do G-7 – tem se orientado no sentido de justificar a posse desse armamento como necessário para garantir sua própria segurança em um ambiente internacional incerto e imprevisível. A preservação dos regimes existentes “e outros esforços globais” são considerados uma necessidade fundamental. O documento não menciona o Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN), rejeitado pelas potências nucleares e seus aliados. Tampouco há referência direta à revitalização dos órgãos das Nações Unidas encarregados do debate e negociações de desarmamento e controle de armamentos, que se encontram paralisados há mais de duas décadas.

De fato, o arcabouço de instrumentos multilaterais e bilaterais elaborado desde o final da Segunda Guerra Mundial no campo do desarmamento e controle de armamentos se encontra gravemente erodido. Devido à crescente deterioração do relacionamento entre Rússia e Estados Unidos, o tratado Novo START, de 2010, que determinou reduções importantes dos arsenais nucleares de ambos, se encontra suspenso e deverá expirar em 2026. Não existe, no momento, qualquer limitação em vigor sobre o tamanho e características das forças nucleares de ambos os lados. Tanto as duas principais potências quanto os demais países nucleares vêm se dedicando, com maior ou menor vigor,  ao aperfeiçoamento tecnológico de seu armamento.

O G-7 chama atenção para a aceleração do esforço de aumento do arsenal nuclear por parte da China “sem transparência nem diálogo significativo”, e para a atividade militar chinesa na área do Indo-Pacífico, especialmente a situação de Taiwan, que constituem motivo de preocupação no que se refere à estabilidade global e regional. Menciona também o desenvolvimento de armas nucleares e mísseis balísticos por parte da Coreia do Norte, conclamando esse país a abster-se dessas atividades ou outras provocações e afirma que a DPRK “não pode e jamais poderá ter” o status de potência nuclear nos termos do Tratado de Não Proliferação. A China reagiu com indignação às menções sobre sua atuação na área externa, acusando o Ocidente de buscar uma “guerra por procuração” na questão de Taiwan.  O documento trata também dos programas nucleares iranianos, que são causa de “profunda preocupação”. Para o G-7, a crescente escalada de tais programas “não tem justificativa civil crível e leva o país perigosamente próximo a atividades nucleares bélicas”. Reitera em seguida a decisão de não permitir que o Irã jamais desenvolva armamento atômico e apela a todos os países para que apoiem a implementação da Resolução 2231 do Conselho de Segurança, que estabelece restrições às atividades nucleares iranianas.     

O terceiro e mais extenso documento adotado contém um plano de ação sobre diversos pontos abordados durante os debates, a saber: a situação na Ucrânia; desarmamento e não proliferação; a situação na região do Indo-Pacífico; economia, finanças e desenvolvimento sustentável; mudança do clima; meio ambiente; energia e economia de fontes limpas; ciência e tecnologia; questões de gênero; direitos humanos, refugiados, migrações e democracia; terrorismo; e finalmente assuntos regionais. Neste último trecho, o documento registra o compromisso de “acentuar a cooperação com os países do Caribe e América Latina para “promover interesses e valores compartilhados e respeito aos direitos humanos”. Sugere também a necessidade de medidas para enfrentar exigências humanitárias e de segurança em toda a região, especialmente na Venezuela, Haiti e Nicarágua.

A guerra na Ucrânia dominou os debates e as conversações bilaterais entre os membros do G-7 e os oito países convidados. O presidente ucraniano Volodomir Zelensky participou de muitas dessas conversas e reiterou a posição de que somente mediante a retirada das tropas russas de todas as regiões ocupadas será possível avançar em direção à paz. Muitos países ocidentais partilham dessa convicção. Outros procuram levar adiante a ideia de um esforço de países neutros em busca da paz. No entanto, o caminho para o fim da guerra parece ainda muito distante.


[1] Consideram-se “táticas” as armas nucleares de  alcance entre 200 e 1.000 km. e de poder explosivo reduzido, cujo uso se limitaria ao campo de batalha, em oposição às denominadas ”estratégicas”, de alcance intercontinental e portadoras de cargas explosivas de centenas de milhares de quilotons. 

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