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O tempo e a Comissão da Verdade


Flavio Flores Da Cunha Bierrenbach, 74,
Ministro aposentado do Superior Tribunal Militar. Foi procurador do
Estado de São Paulo, vereador, deputado estadual e
federal (PMDB) por São Paulo

 

"A verdade, se é que existe, dir-se-á que ela consiste na procura da verdade."Passei anos atribuindo a frase a Fernando Pessoa. Recentemente, um amigo especialista no poeta do desencanto assegurou-me de que não é o caso. Portanto, a epígrafe segue entre aspas, porém apócrifa.

Depois de meio século, os acontecimentos político-militares de 1964 continuam dividindo opiniões no Brasil. Aliás, uma das divisões é justamente esta: entre os que dizem revolução e outros –como eu– que insistem em chamar de golpe. Os primeiros afirmando que foi em 31 de março. Os demais marcando o calendário em 1º de abril, data ridícula.

Em países que superaram ditaduras e adotaram ou restabeleceram a democracia, um objetivo essencial das Comissões da Verdade tem sido a reconciliação. Aqui também. Agora, entretanto, que a Comissão Nacional da Verdade teve prorrogação de tempo, algumas opiniões deixam as sombras e a vêm acusando de parcialidade. Sustentam que os comissários não estariam preocupados com o outro lado. Que lado?

Milhares de brasileiros foram objeto de perseguição política e penal. Muitos saíram condenados, outros absolvidos, vários tiveram seus processos trancados por habeas corpus, inúmeros foram julgados com base em confissões e provas brutalmente extorquidas. Houve os que não chegaram lá –resultaram assassinados ou desapareceram.

Em outra escala e diversamente do que ocorreu no Cone Sul, o Estado brasileiro, a partir de 1964, promoveu uma espécie de racionalização jurídica. Utilizou atos institucionais para tipificar na legislação de Segurança Nacional e processar os opositores que qualificava como "subversivos" ou "terroristas". Quantos? Dez mil? Vinte mil?

Diferentemente de outros países que deliberaram pela eliminação física de dissidentes, o regime de exceção no Brasil preferiu processá-los na Justiça Militar, que faz parte do Poder Judiciário. Possivelmente, todos os que estiveram daquele lado já passaram pelas barras da lei, basta citar só a lei. Foram julgados.

Caso alguém tenha escapado àquele braço da lei, a Comissão da Verdade poderá contar a história. Imaginar que sobreviventes possam vir a ser constrangidos outra vez, além de uma afronta ao Judiciário, que já os julgou, consiste retrocesso equivalente a anular uma conquista do Iluminismo.

A história do Brasil registra tempos especialmente turbulentos. Além de revoluções e golpes, houve guerras civis, episódios extraordinariamente sangrentos. Alguns de grande altivez, outros escabrosos. Todos devem ser conhecidos.

A anistia tem sido um meio histórico para a reconciliação. Esta exige dois movimentos. Um é olhar para a frente e estender as mãos. Para que dois irmãos que se odiavam consigam estabelecer um projeto de convivência. Outro é olhar para trás e buscar saber o que aconteceu, pois quem não conhece a história pode estar condenado a repeti-la.

 

Dito isto, cumpre afirmar que a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira são instituições permanentes e regulares. Essas instituições não torturaram ninguém. Quem torturou foi a ditadura. A ditadura e seus sicários, asseclas, financiadores e cúmplices. À paisana, de farda ou de batina, civis ou militares, pouco importa. Para os militares, aliás, há a agravante de terem enxovalhado os uniformes que vestiam. Agentes da ditadura envolvidos em sevícias e atos degradantes praticados contra seres humanos foram criminosos comuns.

Insinuar que essas instituições sejam culpadas de crimes hediondos e condutas repulsivas é mais do que um equívoco. É atitude política de racionalidade oposta ao princípio da reconciliação.

Iniciei o texto com um verso. Quero terminar com outro poeta português. Salvo melhor juízo, trata-se de Antero de Quental: "Sim, pois é preciso caminhar avante, andar, passar por cima dos soluços"

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