Ministro da Defesa José Múcio – Interessa aos comandos militares que tudo seja absolutamente esclarecido sobre 8 de janeiro

Ministro da Defesa José Múcio – “As Forças Armadas são órgãos do Estado brasileiro, elas respeitam quem está no poder” Foto Lucas Lacaz Ruiz Agência A13

Murillo Camarotto e Andrea Jubé
Valor
19 Abril 2023

Convocado pelo presidente poucas semanas após as eleições, o ministro da Defesa, José Múcio, começou a trabalhar antes mesmo da montagem do gabinete de transição. Ao aceitar o convite para ingressar no novo governo, teve que lidar imediatamente com as quase 50 mil pessoas que estavam acampadas em frente aos quartéis generais país afora.

O Brasil estava todo dividido. Qual foi a família que não teve uma cicatriz por conta dessa eleição que passou?”

Na primeira semana no cargo, deu declarações polêmicas, foi surpreendido pelos ataques aos prédios dos três Poderes, teve que trocar rapidamente o comando do Exército e foi alvo de intenso fogo amigo, vindo majoritariamente do PT. Passados os primeiros cem dias de gestão, Múcio celebra a pacificação da caserna e trabalha agora para que o clima de normalidade não seja meramente passageiro.

O ministro encabeça uma proposta para que militares que almejam a política sigam obrigatoriamente para a reserva. Por outro lado, busca alternativas para garantir mais recursos para a modernização das Forças. Além de cavar maior espaço no Orçamento, quer garantir financiamento para a expansão da indústria de Defesa. “Não pela arma, mas pelos empregos”, disse ele em entrevista exclusiva ao Valor.

“As Forças Armadas são órgãos do Estado brasileiro, elas respeitam quem está no poder”

Segundo Múcio, a Embraer deve anunciar na próxima semana a produção de aeronaves A-29 Super Tucano versão OTAN em Portugal, em uma parceria com a Indústrias de Defesa de Portugal. O anúncio será feito durante a viagem de Lula ao país europeu. Sobre as declarações do presidente em relação à guerra na Ucrânia, o ministro foi econômico, mas deixou clara a sua visão: “Quem invadiu foi a Rússia”.

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: Ministro, o senhor acabou de participar de uma importante feira de equipamentos de defesa. Nesse evento, os comandantes das Forças ressaltaram a importância do fortalecimento da base industrial de defesa do país. Saiu algo de promissor desse evento?

José Múcio: Os investimentos em defesa respondem por 1,17% do nosso Orçamento, algo entre R$ 19 bilhões e R$ 20 bilhões. A Otan diz que o ponto ideal é em torno de 2%. Portugal, que é um país pacífico, está em 1,6%. Estive com a ministra da Defesa de Portugal, que me disse que o objetivo final é chegar a 2% em 2026. Isso é o investimento que você faz para o Estado. Outra coisa é estimular e apoiar a indústria de defesa para que tenha acesso a financiamento. A área de Defesa é muito próxima à área de diplomacia, você tem que fazer acordos com embaixadores, ministros, comandantes das forças de outros países, para apresentar os produtos que fazemos aqui. Então, estamos demandando esforços para que os nossos empresários tenham acesso a quem não tem e funcionemos com um divulgador da nossa base industrial de defesa.

Valor: O governo passou meses debatendo o arcabouço fiscal, que pretende abrir espaço para mais investimentos do governo. Como a área de Defesa será contemplada?

Múcio: Não estamos investindo para armar o Brasil. Um país que tem 10 milhões de desempregados, 30 milhões de pessoas passando necessidade e você dizer que vai comprar um [caça] Gripen de US$ 100 milhões ou um submarino de € 500 milhões, prefiro dizer que estamos gerando emprego, e o emprego mais rápido para gerar no Brasil é na indústria de defesa, porque as fábricas já estão prontas, você só precisa da encomenda. Nós estamos fazendo um submarino e Itaguaí (RJ), mas se precisar fazer dois, é só contratar 3 mil homens, porque o estaleiro já está lá. É o caminho mais fácil para gerar empregos de qualidade. No final, você tem a arma, mas você tem que olhar para os resultados de todo o processo.

Valor: Mas vai ter dinheiro?

Múcio: Temos dois caminhos. Um é estimular a indústria de defesa brasileira, viajar para vender os produtos, encontrar linhas de financiamento ou caminhos para encontrar garantias para as pequenas indústrias terem mercado. E o outro é nós encomendarmos. Então, a primeira coisa nossa aqui foi estreitar as relações. Levei o presidente para almoçar com o alto comando da Marinha, lá ele pediu um plano de investimentos. Fiquei de apresentar um plano a ele, que quer o mesmo para a Aeronáutica e o mesmo para o Exército. E eu fiquei de fazer. Se estamos em 1,2% [do Orçamento], vou fazer um plano pra 1,4%, depois 1,5%, à medida que o Orçamento permitir. Mas tenho que dizer que o governo tem outras prioridades, então precisamos ter equilíbrio pra saber de que forma será feito.

Valor: Quando serão entregues esses planos?

Múcio: Vamos ver se a gente apresenta entre o fim de maio e o começo de junho. E também há outras alternativas.

Valor: Quais seriam?
Múcio:
Luciano Coutinho [ex-presidente do BNDES] está vendo uma fórmula de a gente criar um mecanismo, um fundo, pelo qual a gente possa investir em defesa sem tirar dinheiro do Orçamento. Ele e o presidente da Fiesp [Josué Gomes] conversaram com o presidente Lula sobre isso. Mas ainda estão vendo como pode ser feito. O vice-presidente [Geraldo Alckmin] está coordenando isso.

Valor: E qual o papel formal do Luciano Coutinho?

Múcio: Ainda não sei de que forma vamos materializar essa vinculação dele. Agora, por exemplo, ele está envolvido em salvar a Avibras. Está procurando uma fórmula para ajudar a Avibras a se safar do problema gravíssimo que eles estão enfrentando. Avibras é donatária de tecnologias importantes, que nós não podemos perder.

Valor: Como está a questão da unificação dos cadastros de armas do Exército e Polícia Federal?

Múcio: O que pudermos fazer para dar uma condução que seja compatível com o nível de despolitização que estamos vivendo, será feito. Esse negócio do 8 de janeiro ainda está muito vivo na cabeça das pessoas. Acho que vai terminar se unificando e tendo um responsável só por isso. O Exército vai participar de uma parte, mas terá um comando.

Valor: Que ficará com a Polícia Federal?

Múcio: A tendência é essa.

Valor: Por falar em 8 de janeiro, o senhor talvez seja o ministro com o começo de gestão mais atribulado de todos. Estamos agora na época dos balanços de 100 dias. Qual o seu balanço na Defesa?

Múcio: Há coisas que a gente vê com os olhos e há aquela que a gente percebe. O nosso grande trabalho aqui você não vê com os olhos. Apresentamos uma PEC para o governo definir como conduzir os militares que participam da política peçam baixa do Exército. Não no sentido de punir quem foi, mas até de estimular. A carreira militar é uma carreira de muitos anos, com princípios rígidos de hierarquia e disciplina. Um desses militares que se desloca para ser político se desencantou com o que está por vir. Quando ele perde a eleição fora e volta, não volta o mesmo militar. Volta fazendo proselitismo político, fazendo grupo de WhatsApp e Twitter, pensando na próxima eleição. Isso contamina o convívio dele com a hierarquia e a disciplina. Então, apresentamos isso combinados com os comandantes das Forças e levamos à Casa Civil para ver qual a melhor condução, se uma proposta do governo ou agregar a alguma outra proposta parlamentar. O governo está para resolver. Será salutar para as Forças Armadas.

Valor: O que mais?

Múcio: O trabalho nosso em Roraima [com os indígenas Yanomami] foi enorme. Um trabalho gigantesco em São Sebastião [enchentes no Litoral Norte de São Paulo], as visitas do presidente Lula aos comandos. Já esteve com a Marinha, estará com o alto comando do Exército para almoçar no dia 2 de maio. E a questão política, que foi um grande avanço aqui no ministério.

Valor: O senhor diria, então, que a temperatura política nos quartéis baixou após os 100 primeiros dias?

Múcio: Serenou completamente.

Valor: Durante a crise dos acampamentos e, principalmente, após o 8 de janeiro, o senhor foi alvo de muitas críticas e fogo amigo. Chegou próximo de deixar o governo?

Múcio: Sair durante a crise? Não. Não foi nem fogo amigo, foram bombas amigas, implosões amigas. Muito. Mas eu tinha consciência do que estava fazendo. Absoluta. E vou lhe dizer mais: faria tudo outra vez. E acho que é porque foi feito daquele jeito que estamos dizendo hoje que as coisas estão serenas. A discussão sempre se deu em torno dos acampamentos.

Valor: Como assim?

Múcio: Detectamos que nas Forças havia bolsonaristas radicais e bolsonaristas legalistas. Foi esse convívio dos dois grupos que promoveu aqueles acampamentos. Chegando lá, você encontrava militares da reserva, esposas de militares que estavam nos quartéis, familiares de militares que estavam trabalhando. Então, mexer naquilo era mexer com um pedaço do Exército da ativa. Quando a gente assumiu havia 46 mil (pessoas acampadas) e na véspera do dia 8 de janeiro havia cerca de 4,8 mil.

Valor: O senhor chegou a dizer que havia familiares seus entre os acampados.

Múcio: Tinha porque o Brasil estava todo dividido. Qual foi a família que não teve uma cicatriz por conta dessa eleição que passou? O Brasil ficou dividido, a eleição foi resolvida com 1,8% de diferença. O trabalho de todos nós é juntar todo mundo.

Valor: Mas eles reivindicavam afastar um presidente legitimamente eleito, isso não era um atentado à democracia?

Múcio: Agora, se você perguntar o que foi aquilo, era um atentado daquele grupo. Havia um chefe ali? Não foi encontrado. Os militares não saíram dos quartéis. Não deram uma nota. Não saiu uma declaração de ninguém. Você nunca mais na sua vida viu uma declaração de um comandante. Saiu tudo por aqui. Combinamos tudo. Propósitos, declarações, tudo por aqui. Aquele dia foi um mar de gente que queria materializar suas indignações, mas não havia um comandante naquilo. Eles vieram na frente fazer o quebra-quebra e o Exército veio atrás? Não. Aquilo foi um bando de baderneiros que usaram um inocentes úteis.

Valor: Mas quando o senhor diz que faria tudo de novo, o senhor mencionou a questão dos familiares e a democracia…

Múcio: O que eu faria de novo era ter conduzido os acampamentos como eu conduzi. Você perguntou se eu pensei em entregar meu lugar. Não. Porque eu sabia que estava fazendo o correto. E a prova do que estou lhe dizendo é o ambiente que estamos vivendo. Houve uma coisa que foi muito dura, que foi a substituição do comandante do Exército [Júlio César de Arruda]. Aquilo foi um deadline. Foi uma coisa dificílima, duríssima, num sábado, 10 horas da manhã, eu sozinho aqui neste gabinete. Pedi para abrir o gabinete para vir aqui conversar. Aquilo foi uma coisa que mostrou que a gente sabia o que queria fazer.

Valor: Depois de tudo isso, o senhor continua achando que os acampamentos eram uma manifestação de democracia?

Múcio: Voltaire já dizia que você tem que defender o direito do outro pensar e falar, mesmo que seja contra você. Você não pode se indignar porque o outro pensa diferente de você. Você pode até não gostar. Acho que a gente tem que vencer com as razões, com os argumentos, que são mais fortes. Você fazer uma passeata é coisa de democracia? Paris vive povoada de passeatas, aquilo é coisa de democracia? A manifestação pública, o direito de dizer, é coisa da democracia. Foi isso o que eu quiser dizer. Agora, aqueles acampamentos foram o estopim. Você via a esposa do general, um general do Exército, era preciso interpretar aquilo. Eu ia lá duas vezes por dia.

Valor: O senhor diria que hoje em dia não tem mais clima para voltarem com os acampamentos?

Múcio: Não há mais clima, acampamento zero. Depois daquilo [ataques do 8 de janeiro], no outro dia, acabou.

Valor: Então, se tentarem montar algo de novo, o que acontece?

Múcio: Saem no mesmo dia. Reparem: houve alguma coisa no 31 de março [data do golpe militar de 1964]? Nada. Houve alguma coisa na chegada do [presidente Jair] Bolsonaro? Nada. Estávamos todos preparados.

Valor: A democracia no Brasil, então, não está mais em risco?

Múcio: Não está. Acho que nunca esteve, mas alguns pensaram em colocá-la em risco. Tenho absoluta certeza hoje de que os comandos não queriam golpe.

Valor: Está em andamento o julgamento, no STF, dos militares que se envolveram nos atos de 8 de janeiro. Se virarem réus em ações penais, isso vai causar nova turbulência na relação com o governo?

Múcio: Não vai. Interessa aos comandos que tudo seja absolutamente esclarecido. Pior coisa é o que não foi esclarecido, é a suspeição permanente, é o que não se resolveu. Nós queremos que essas páginas sejam todas viradas. Os culpados que paguem. Se foram crimes civis que paguem na Justiça comum, se forem crimes militares, que sejam julgados na Justiça militar.

Valor: Depois da troca do comandante, veio à tona um áudio do atual comandante [Tomás Paiva] dizendo que “infelizmente” Lula havia ganhado. Isso não gerou crise…

Múcio: Nenhuma. Aquele áudio ainda ontem falei sobre isso numa reunião. Se você ouvir o áudio completo, ele disse assim: “olha, para alguns, infelizmente Lula ganhou”. Mas “para alguns”. Uma coisa que eu repito muito é que não procuro saber em quem eles votaram. O que eu quero é que cumpram as leis. As Forças Armadas são órgãos do Estado brasileiro, elas respeitam quem está no poder. Eles prestam continência ao cargo, não ao cidadão. Mas está pacificado, a democracia não corre risco, o ambiente está ótimo. O presidente vai para a festa [do Exército] quarta-feira, vai para o almoço com o Alto Comando do Exército no dia 2 de maio. Ontem eu estava na passagem do comando militar do Sudeste. Estamos nos movimentando no melhor ambiente de fraternidade e responsabilidade para o nosso país.

Valor: Também se falou muito sobre GLO nesse período.

Múcio: Repare que discussão. Não querem GLO por medo de golpe. Quem dá golpe não precisa de lei, de regra ou Constituição. O golpista é um infringidor. A gente usou a GLO quando o Papa veio para o Brasil, nas Olimpíadas, para que o Exército entrasse nos morros do Rio. Olha o absurdo no Rio Grande do Norte. Tocaram fogo em Natal e a gente mandou jato buscar soldados no Pará, em Salvador, em Manaus Sou a favor que as Forças Armadas sirvam a sociedade nessas horas de emergência. Então, depois da PEC [dos militares na política], estou querendo criar um mecanismo para que as Forças Armadas possam ir para a rua atender a sociedade – e a sociedade entender o papel das Forças Amadas – sem que haja nenhuma ameaça de golpe. A polícia do Estado entra em greve, o governador vai enlouquecer, os bandidos vão tomar conta da cidade. Eu quero uma forma da força – já que a GLO não pode de jeito nenhum, não vai se falar nessas três letrinhas nesse governo.

Valor: Teria que mudar a Constituição?

Múcio: Não sei. Conversei com o presidente e com o [ministro da Justiça] Flávio Dino, que estava estudando isso. Mandou um texto que eu não li ainda. Vou ler e vou apresentar aos comandantes, vamos dar sugestões.

Valor: O presidente Lula criou uma polêmica ao sugerir que a guerra na Ucrânia é culpa dos dois países. Como ministro da Defesa, o que pensa a respeito?

Múcio: Acho que foi a Rússia que invadiu.

Valor: O senhor vai com o presidente para Portugal. Qual a agenda da Defesa lá?

Múcio: Tem o negócio do [avião cargueiro] KC-390, que eles compraram nossos, e a Embraer está fazendo um acordo para fabricar os nossos Super Tucanos numa subsidiária da Embraer com uma indústria portuguesa. E isso vai ser anunciado lá. A Embraer está bombando. Estavam também estudando fabricar o KC-390 em Portugal já dentro dos parâmetros da OTAN, que se aplicam aos equipamentos de defesa da Europa.

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