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Decisões fatais e uma queda livre

Humberto Maia Junior e Rodrigo Turrer Com Luíza Ka

Com uma hora e 55 minutos do voo AF 447 desde o Rio de Janeiro, o piloto Marc Dubois, de 58 anos, decidiu descansar. Depois de duas décadas na Air France, e a dois anos da aposentadoria, estava acostumado à rotina das viagens intercontinentais: passar o comando aos dois copilotos durante o voo de cruzeiro sobre o oceano, a parte mais tranquila da viagem, para estar pronto no momento do pouso, em Paris.

Ele ouviu de um dos copilotos um breve relato da situação naquele momento: “Deveremos encontrar outras duas turbulências mais à frente. Infelizmente, não podemos subir muito mais agora, porque a temperatura está diminuindo menos rapidamente que o esperado”. Dubois deu-se por satisfeito e saiu da cabine. Dezoito minutos depois, o avião se espatifou no Oceano Atlântico, matando 228 pessoas, de 33 nacionalidades, no dia 1o de junho de 2009. 

A surpresa com as circunstâncias da tragédia foi generalizada. Por que um A330, modelo que jamais havia caído, desapareceu no mar sem pedir socorro? A transcrição de dados das caixas-pretas, divulgada na sexta-feira, em Paris, pelo Escritório de Investigações e Análises (BEA) da Aviação Civil da França, traz uma descrição mais clara do que ocorreu nos últimos minutos do voo 447, apesar de ainda não explicar completamente as causas do acidente.

A análise de duas horas de gravações de áudio e 1.300 dados dos computadores de bordo permite afirmar: decisões tomadas pelos pilotos, em meio à tempestade que enfrentavam desde às 2h06 – horário de Greenwich, referência internacional adotada na aviação –, agravaram a emergência em que a aeronave se encontrava e levaram a sua queda. Os primeiros problemas, entretanto, foram técnicos e começaram quatro minutos depois de o avião ter encontrado o mau tempo. Provavelmente s congelados, os tubos de Pitot – sensores do lado de fora da fuselagem que medem a velocidade do avião – passaram a fornecer dados contraditórios. Sem informações confiáveis, o piloto automático do avião se desligou automaticamente às 2h10min05s. Um dos copilotos assumiu a aeronave. “Eu tenho o controle”, afirmou.

Às 2h10min16s, o painel disparou o alerta de “stall iminente”. Stall, no jargão da aviação, é a situação em que o fluxo de ar que passa por cima e por baixo da superfície das asas se desfaz. Elas perdem a função de sustentar o avião, que passa a cair como uma folha seca. Acelerar é inútil. Diante de um alerta de stall, os manuais ensinam que o piloto deve baixar o nariz da aeronave, recobrar a sustentação aerodinâmica, estabilizar-se em relação à linha do horizonte, acelerar os motores e retomar a altitude.

Mas, segundo os registros da caixa-preta, os pilotos fizeram o contrário: levantaram o nariz do avião e o mantiveram assim. Às 2h11min40s, o comandante voltou à cabine. O avião já despencava 10.000 pés por minuto. Às 2h13min32s, um dos copilotos parece passar seu posto. “Vá em frente, você tem os controles”, diz uma voz na gravação. Os dois pilotos tentam dar comandos, contraditórios, ao mesmo tempo. Às 2h14min28s, os registros da caixa-preta param: o A330 se chocava com a água de barriga, a cerca de 200 quilômetros por hora e apenas três minutos e 30 segundos após o início da queda.

Os dados preliminares da caixa-preta deixam claro que as medidas tomadas pelos pilotos levaram à queda no oceano. Mas não é possível dizer se eles tinham as informações corretas e o controle da situação a ponto de saber o que estavam fazendo. “O relatório não informa de quais informações os pilotos dispunham no painel, o que estava registrado para guiá-los”, afirma Jorge Barros, especialista em segurança de voo. “No meio de uma tempestade, e à noite, não se enxerga nada.

O piloto está sem noção da linha do horizonte. E os impactos decorrentes da turbulência podem tirar do piloto a noção de espaço e velocidade.” Um piloto brasileiro com 17 mil horas de voo, que prefere manter o anonimato, diz que o alerta de stall iminente jamais deve ser desprezado, mesmo se as outras informações forem duvidosas. “As informações de velocidade às vezes tornam-se contraditórias, mas o alerta de stall é extremamente confiável.”

A existência de tempestades naquela região não é surpresa, e a tripulação foi informada sobre elas antes da decolagem. Programado para seguir o mesmo caminho do AF 447 sete minutos depois, um Airbus da Ibéria escolheu, antes da decolagem, desviar das áreas de turbulência. Pediu mais combustível e fez um trajeto mais longo, desviando pelo lado direito da rota. O avião da Air France optou por mudar a rota durante a tempestade e o fez para o lado esquerdo, onde a turbulência era mais intensa.

O BEA anunciou que apresentará no fim de junho uma análise das causas do acidente. À primeira vista, parece cômodo culpar os pilotos – isso livraria a Airbus de responsabilidades por erros de projeto, bem como a Air France por negligência na formação de pilotos e manutenção de equipamentos. Mas na aviação o mais importante é aprender com as falhas e evitar a repetição de tragédias. A Air France e a Airbus já gastaram cerca de R$ 45 milhões, esforço recompensado com o resgate das caixas-pretas, intactas, a 3.800 metros de profundidade. Ainda falta achar os três tubos de Pitot, suspeitos de terem enviado informações de velocidade contraditórias. A explicação completa para o acidente poderá levar anos. 

As autoridades americanas demoraram quatro anos para apresentar uma explicação para o desastre do voo 800 da TWA, em 1996. O Boeing 747 explodiu no ar ao partir de Nova York para Paris. Morreram 230 pessoas, no acidente de investigação mais longa da aviação comercial. Dez anos depois, o governo americano ainda produzia relatórios com recomendações baseadas nas causas da tragédia, e o Congresso mudou a lei de indenizações por morte em alto-mar. Apesar da dor que provoca, um desastre aéreo traz lições. Não aprendê-las pode representar um custo muito maior para a sociedade.

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