Gen Ex Santa Rosa – Decodificando a geopolítica global

Decodificando a geopolítica global

 

Maynard Marques de Santa Rosa

General-de-Exército (RRm) e

ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República

Publicado originalmente na Resenha Estratégica – MSIa

 

 

“Povo nenhum é suficientemente poderoso para estabelecer uma hegemonia mundial” (George Kennan).

 

O propósito desta síntese é focar o tema da geopolítica global segundo o conceito clássico e as memórias do diplomata americano George Kennan, cujo testemunho projeta luz sobre os bastidores da política internacional, desde os antecedentes da 2ª Guerra Mundial até o clímax da Guerra Fria. A narrativa dos fatos pela ótica perspicaz do autor permite a compreensão das raízes do cenário atual.

 

1.    Geopolítica

“Geopolítica é a aplicação da política aos espaços geográficos, sob a inspiração da História”, segundo o General Meira Mattos. É a ciência que faz a interface entre a geografia, a política e a história. O conceito do General Karl Haushofer é pragmático: “geopolítica é a geografia política aplicada”.

A geopolítica nasceu no século XX, mas herdou duas tendências sociológicas do século XIX: o nacionalismo e o imperialismo.

Nas últimas décadas, esta ciência foi relativizada no Brasil, ganhando um viés ideológico que lhe restringe a utilidade. O enfoque acadêmico passou a contemplar aspectos éticos e variáveis ambientais e sociais estranhas ao escopo científico original, colidindo com o pensamento predominante no restante do mundo.

Parag Khanna, respeitado pesquisador do do CFR (Council on Foreign Relations) e autor do livro The Second World (O Segundo Mundo, 2008), aborda o tema nos termos de Kjellén, Beufre e Foch, onde reafirma que “a luta pela liberdade de ação é a essência da estratégia”.

 

2. A ordem mundial

A ordem mundial é o resultado do equilíbrio de poder. À lei internacional falta objetividade para substituir o poder como força indutora da estabilidade. A estrutura legal tem validade, tão somente, como forma e referência moral. A segurança internacional ainda depende das realidades do poder.

George Kennan foi o inspirador da “Doutrina da Contenção”, que norteou a política de segurança ocidental durante a Guerra Fria. A proposta visava à contenção política do bloco comunista, mas a repercussão na opinião pública americana terminou evoluindo o conceito para contenção militar, e levou à criação da OTAN e à consequente militarização da Alemanha, que ele contraindicava com veemência.

Kennan escreveu que: “A vida política internacional é algo orgânico e não mecânico. Sua essência é a mudança. São as sombras das coisas e não a substância que movem o coração e dirigem as ações dos estadistas”.

3.Atores geopolíticos

 A teoria de Jung ressalta que os povos do mundo desenvolvem a própria personalidade coletiva e agem de modo semelhante à da personalidade individual. O enfoque junguiano humaniza os atores coletivos e explica as suas tendências comportamentais no contexto das relações internacionais.

O cenário global caracteriza-se pela atuação dos Estados mais poderosos, hoje encarnados, principalmente, por americanos, chineses e russos. Fazendo uso das memórias citadas, destaco as citações mais elucidativas sobre a psicologia social desses atores, começando pelos Estados Unidos.

“Os mais consistentes traços da ação de estado americana são: egocentrismo e introversão neuróticos, uma tendência para tomar atitudes levando em conta não o efeito sobre a cena internacional, mas sim sobre a opinião pública americana, em especial a dos congressistas. Portanto, a pergunta é, sempre: como fico no espelho da opinião interna americana, fazendo isso?” (pág. 47).

Kennan destacou a aversão inata dos americanos em tomar decisões específicas sobre problemas diplomáticos, preferindo buscar fórmulas gerais ou doutrinas universais com que justificar ações particulares.

“Até hoje, não estou bem certo quanto à origem dessa necessidade. Suspeito que seja um reflexo do quanto somos um povo dado a governar mais por leis do que segundo o discernimento do Executivo. Trata-se de uma tendência desastrosa. Impede e distorce o processo decisório” (pág. 272).

Concordando com esse raciocínio, lembramos, por exemplo, a política de impor ao mundo a ideologia dos direitos humanos.

Quanto à Rússia, a interpretação é sugestiva.

“A Rússia é um país de diretores teatrais; e a mais profunda de suas convicções é de que as coisas não são o que são, mas o que parecem. O poder da autossugestão desempenha um enorme papel. Para a Rússia, não há critérios objetivos de certo e errado. Não há nem sequer critérios objetivos de realidade e irrealidade”.

“Por trás da obstinada expansão da Rússia, nada mais há que a ancestral insegurança de um povo sedentário, numa planície exposta, rodeada de povos nômades e violentos. A estratégia do comunismo ortodoxo nunca foi de um confronto aberto com o poder capitalista, mas sim, evitar o confronto e conduzir o ataque mediante o que Lênin chamava de guerra parcial, uma maneira muito mais cautelosa”.

“A Cortina de Ferro foi criada pelo atraso básico da Rússia, por seu intrincado amor e ódio pelo Ocidente, pelo medo de que o Ocidente se revele superior”.

Sobre a China, ressaltou a habilidade no uso de subterfúgios e artifícios sutis da sua cultura milenar.

“Os chineses eram extensamente versados em transformar visitantes e residentes, até mesmo diplomatas, em reféns; e extraíam o máximo por meio de chantagem. Nossa ingenuidade se deixava envaidecer e enganar pela subserviência de talentosos serviçais que nos detestavam por detrás dos seus biombos” (pág. 49).

4. Geopolítica no pós-guerra.

Na origem da geopolítica, os interesses dominantes eram a segurança e a ambição de poder. No mundo moderno, após o crescimento exponencial da população e o fenômeno global da urbanização, eclodiu um novo e forte vetor de interesse: o da necessidade, que decorre da escassez de água e da demanda por alimentos, energia e recursos naturais.

Por isso, merece especial atenção o fato de ser o Brasil um dos maiores celeiros mundiais desses três insumos estratégicos.

a.    A União Europeia

Os antecedentes europeus poderiam sugerir uma motivação arquetípica na base da construção da União Europeia. O esboço federativo, tido como inspiração em ideais de paz e progresso, poderia ocultar uma intenção megalômana de reeditar o Império de Carlos Magno, com potencial para suplantar o colosso americano. O testemunho de Kennan, no entanto, mostra que a ideia foi uma estratégia americana.

“Após a guerra, o esforço americano de ajuda à Europa voltou-se não para o combate ao comunismo como tal, mas para a restauração da saúde e vigor econômicos da sociedade europeia (o Plano Marshall). O requisito essencial para o êxito deste empreendimento era que os países europeus deveriam unir-se e concordar num programa coordenado de recuperação em escala europeia. Ao insistirmos num enfoque conjunto, tentávamos obrigar os europeus a pensar como europeus e não como nacionais, quanto aos problemas econômicos do continente”.

 “Se o problema do nacionalismo alemão não pudesse ser resolvido empurrando a Alemanha para o passado – então, a única coisa a fazer seria levar a Alemanha e a Europa para o futuro: criar uma espécie de Europa federal unida”.

b.    Coreia e Vietnã

“O Japão e as Filipinas deveriam constituir as pedras angulares de um sistema de segurança adequado para a proteção de nossos interesses no Pacifico”.

A Península Coreana estava fracamente defendida, em 1950, o que estimulou a ameaça do Norte. A decisão americana unilateral de manter o Japão ocupado levou a União Soviética a avalizar a aventura de Kim Il-Sung, ao invadir a Coreia do Sul.

A guerra civil evoluiu para um conflito internacional, devido a um erro de avaliação do Estado-Maior do General Douglas MacArthur. Em 3 de outubro de 1950, os chineses informaram ao embaixador indiano em Pequim, K.M. Panikkar, que a China entraria na guerra, se as forças americanas avançassem além do paralelo 38, o que de fato ocorreu, após o desembarque americano de Inchon. As forças progrediram até a fronteira da Manchúria, a 40 km da cidade soviética de Vladivostok, provocando a intervenção em massa dos chineses, no dia 25 de novembro. Surpreendidas, as unidades foram destroçadas ao longo do rio Yalu, e tiveram de conduzir uma retirada precipitada que levou a guerra a um impasse.

“Na crise coreana, permitiu-se que as considerações militares prevalecessem sobre as políticas. Moral da história: é um risco terrível permitir-se que a política nacional seja determinada apenas por considerações militares”.

No início da década de 1960, o apego irracional à Doutrina da Contenção levou os EUA a intervirem no Sudeste da Ásia (antiga Cochinchina Francesa) contra a ameaça comunista, dando causa à Guerra do Vietnã.

c.     O jogo geopolítico

O equilíbrio geopolítico alcançado após a 2ª Guerra Mundial rompeu-se com o colapso da União Soviética. Os Estados Unidos passaram ao papel de “player” hegemônico, nas décadas de 1990 e 2000. Com ampla liberdade de ação e apoio da OTAN, promoveram duas intervenções militares no Iraque e uma no Afeganistão.

A OTAN perdeu a finalidade. Para sobreviver, passou a buscar protagonismo. Com liberdade de ação e motivação imperial, atacou e fragmentou a Iugoslávia, avançou sobre o Leste Europeu e o Norte do Mediterrâneo. Os russos responderam com a imposição de uma área de influência na Ucrânia e a reincorporação da Crimeia.

O protagonismo russo retornou nos anos 2000, com o emprego do petróleo e do gás como arma energética. No Oriente Médio, a intervenção na Guerra da Síria paralisou a construção do gasoduto do Catar ao Mediterrâneo, contribuiu para o refluxo da Primavera Árabe e reverteu a influência ocidental.

A hegemonia da Alemanha na União Europeia pode ter sido a causa principal do Brexit. A sobrevivência da OTAN pereniza a hegemonia americana na Europa e encontra justificativa como remédio preventivo do ressurgimento da ameaça alemã.

No Extremo Oriente, a ascensão da China levou os Estados Unidos a apoiarem a militarização do Japão e a estabelecerem um cordão estratégico de países aliados no seu entorno, envolvendo a Índia, o Vietnã, o Japão e a Austrália.

O protagonismo do Ocidente em duas frentes induziu a criação da OCX (Organização de Cooperação de Xangai), na década de 2000, unindo a Rússia, a China e os Estados do mar Cáspio em uma aliança estratégica.

O equilíbrio geopolítico da Ásia permanece instável, com a ocupação remanescente do Japão, a divisão da península coreana e a autonomia de Taiwan.

A expansão da China pode reacender o irredentismo sino-russo, decorrente do garrote geopolítico de Vladivostok, que impede o acesso chinês ao Pacífico Norte. Pode, também, reaquecer a Questão Coreana.

A surpresa tecnológica produzida pela China, com a tecnologia 5G e a sua digitalização financeira, devem impactar a economia global e o sistema financeiro internacional.

O Oriente Médio tende a continuar alimentando a dialética geopolítica do petróleo, com erupções eventuais de conflitos nas áreas de influência sunita e xiita. A Palestina continua como foco de instabilidade política. Israel é uma cabeça-de-ponte do Ocidente no mundo islâmico, tida como um corpo estranho no organismo.

Finalmente, o impacto do coronavírus deve produzir efeitos imprevisíveis em âmbito político e econômico no mundo inteiro. Após a crise, o potencial de vantagens comparativas do Brasil, se devidamente aproveitado, pode ensejar a elevação do seu “status” geopolítico à condição de ator global.

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