Exclusivo – Líbano – Análise da Pós-tragédia

Muhammad Hussein

hussein@alhusseingroup.com

Consultor de Negócios Internacionais e Analista de Defesa especializado no Oriente Médio e Norte da África – Al Hussein Group

Análise especial para DefesaNet

 

 

Notas Essenciais:

 

* As consequências imediatas da catástrofe em Beirute foram a renúncia de Hassan Diab, Primeiro-Ministro Libanês, e um novo recrudescimento da revolta popular – instigada pela falência moral das instituições, a falta de responsividade do estado quanto aos serviços públicos essenciais, desabastecimento e colapso absoluto da economia.

 

* A ajuda humanitária internacional é um bálsamo nesse intricado momento do Líbano, mas o país deve empreender, urgentemente, as reformas necessárias para atingir melhoras nos índices econômicos, de qualidade de vida e governança, sob pena de a República dos Cedros sucumbir e se converter em um failed state.

 

* Os custos dos danos causados pelas explosões, até o momento, foram estimados em US$ 15 bilhões.

Briefing: Líbano – Análise da Pós-tragédia

Os eventos do último dia 04 de agosto, muito além de todas as perdas humanas e materiais que afligiram a população de Beirute, desencadearam novos movimentos de protesto e manifesta oposição não apenas em desfavor do Primeiro-Ministro Hassan Diab, mas, ainda, contra a elite política do país, a quem o povo culpa por décadas de comportamento pérfido e contumaz desídia no trato da coisa pública que, desafortunadamente, culminaram com a tragédia em evidência mundial.

É importante esclarecer que os manifestantes tencionam, além da indicação de um novo governo, que sejam feitas reformas profundas na estrutura do Estado Libanês, com a alteração do sistema sectário (distribuição dos cargos políticos e assentos no Parlamento de acordo com cada denominação religiosa do país), maior transparência e moralidade da gestão governamental, permitindo assim maior controle e destinação equânime dos gastos, bem como melhoria da prestação dos serviços públicos. A demanda popular tem como alvos diretos a corrupção e o clientelismo, práticas que se arraigaram no deep state e que exigirão um esforço hercúleo para a purgação.

Em suma, essa é a pauta política que, como cediço, exigirá tempo e intricadas negociações para avançar no Parlamento. É imperioso asseverar que as elites dirigentes serão refratárias a qualquer processo de mudança que altere o status quo do sistema confessional. De certa forma, os acordos de Taif, que puseram fim à Guerra Civil (1975-1990), trouxeram uma composição de governo que harmonizou a equação de acesso político igualitário de cristãos e muçulmanos no país. E isso traz, em princípio, estabilidade e previsibilidade. Essa é a leitura da comunidade internacional sobre o sistema singular de composição político-administrativa do Líbano: se cristãos, muçulmanos e drusos têm representatividade política assegurada, as possibilidades de querelas étnico-religiosas seriam ínfimas. Um ambiente pacífico teria o condão de gerar o ecossistema para uma vida política hígida. França, Estados Unidos e Reino Unido, historicamente, sempre perceberam o power-sharing do Líbano como uma força de estabilidade numa região do mundo pautada por conflitos e volatilidade dos atores políticos.

No entanto, o fato que, em princípio, gera estabilidade é o mesmo que propicia o aparecimento de famílias e castas políticas, dentro de cada espectro religioso, que controlam o acesso da população à vida pública. Trocas de favores e benefícios inconfessáveis perverteram o sistema sectário numa acomodação de grupos oligárquicos que se mantém no poder graças à práticas clientelistas e complacência com a corrupção. Esses fatores, aliados à ausência de transparência e accountability, retroalimentam o cancro que deprecia as instituições e vilipendia o interesse público social. Ao tornarem-se endêmicas, tais mazelas trouxeram, entre outras, as seguintes consequências: exponencial enriquecimento das famílias politicamente mais poderosas em detrimento da população (50% dos libaneses vivem hoje abaixo da linha de pobreza), sucateamento dos serviços públicos, maior crise econômica desde o final da guerra civil, desemprego, desabastecimento de alimentos e, por conseguinte, encarecimento dos preços dos itens mais básicos de consumo, além da constante escassez de água e eletricidade.

Esses problemas foram os antecedentes mediatos da revolta popular que, em outubro de 2019, fizeram cair o governo do então Primeiro-Ministro Saad Hariri. Para conter a insatisfação popular, foi indicado Hassan Diab, ex-Ministro da Educação (2011-2014) durante o termo do Presidente Michel Suleiman, para a formação de um governo tecnocrático que deveria reverter o colapso econômico do país.

A verdade é que Diab, que assumiu as funções de Chefe de Governo em 21 de janeiro de 2020, não conseguiu avançar qualquer reforma ou plano de recuperação da economia. As explosões do último dia 04 de agosto soterraram qualquer laivo de continuidade da atual ordem política.

Rumo das Apurações

As investigações sobre as causas da tragédia ainda estão em curso. Não há relatório preliminar concluído, mas foram expedidos mandados de prisões para algumas autoridades portuárias. Novas apurações indicam que tanto o Presidente Michel Aoun, como o próprio Primeiro-Ministro foram advertidos, em 20 de julho, dos riscos da perigosa carga estocada no Hangar 12 do Porto. Ao ser questionado, Aoun se eximiu da responsabilidade pelo fato de não ter autoridade direta de controle sobre a administração do Porto, além de haver dado, previamente, ordens ao Secretário-Geral do Supremo Conselho de Defesa para que fossem tomadas todas as providências que se fizessem necessárias para a mitigação do risco.

Queda do Governo Diab

A falta de governabilidade e fidúcia da atual gestão causaram a renúncia de alguns ministros, o que acabou por culminar com a carta de demissão do Primeiro-Ministro Hassan Diab, em 10 de agosto. Mas Diab continuará em exercício no cargo, em caráter interino, até que seja nomeado um novo Chefe de Governo.

 

Desconfianças da sociedade civil e mesmo de países aliados geram dificuldades para se achar uma nova liderança que tenha carisma, respeitabilidade e trânsito político para conduzir o país nesse delicado momento.

São cogitados, para a posição de Primeiro-Ministro, os nomes de Nawaf Salam, Juiz da Corte Internacional de Justiça e ex-Embaixador do Líbano nas Nações Unidas, e Muhammad Baasiri, Terceiro Vice-Presidente do Banque du Liban – o Banco Central Libanês. Alguns analistas aventam a possibilidade de retorno de Saad Hariri.

Até que as composições políticas sejam efetivadas para a nomeação e aprovação, pelo Parlamento, do novo Governo, o país terá de lidar com convulsões sociais, precariedade de serviços públicos, estagnação da economia e com os resultados das investigações sobre as causas das explosões no Porto de Beirute. Michel Aoun prometeu que o Comitê Investigativo laborará com total imparcialidade.

Novo Cotidiano

A capital libanesa encontra-se em clima de degradação devidos aos últimos acontecimentos. Há ausência de resposta estatal até mesmo para a coleta de destroços. A população é que se organizou para recolher lixo e restos, tentando fazer as vias públicas transitáveis. O fornecimento de energia elétrica se dá apenas pelo período de poucas horas por dia. Beirute carece de estrutura para atender os feridos da tragédia e os acometidos pela Covid-19. O país está confiando na ajuda humanitária que já está em seguimento. França, Rússia, Arábia Saudita, Catar, Brasil, entre outros, já providenciaram o envio de itens médico-hospitalares, remédios, insumos, alimentos e ajuda financeira emergencial propriamente dita.

Delegação brasileira liderada pelo ex-presidente Michel Temer teve reunião com o presidente libanês, Michel Aoun. Qual a capacidade brasileira de influenciar o Líbano e a Região?

Outro ponto de inquietude é o comprometimento da logística na oferta de alimentos, visto que 80% dos gêneros que abastecem os lares libaneses chegam ao país pela via marítima. Com as explosões no Porto, houve, inclusive, a destruição de todo o estoque de grãos que se encontravam armazenados em silos no local. Todavia, o Ministro da Economia em exercício, Raoul Nehme, garante que não haverá dificuldades com o fluxo de produtos e gêneros alimentícios provenientes do exterior. No que tange à oferta de farinha de trigo, Nehme afirma que o estoque suprirá a necessidade dos libaneses por quatro meses, mas há relatório da ONU que prevê o fornecimento por apenas seis semanas.

O presidente francês Emmanuel Macron lidera a iniciativa internacional de ajuda ao país. O montante global já arrecadado é de mais de 250 milhões de euros. Ressalte-se o fato de os doadores internacionais frisarem que, à parte da ajuda humanitária, qualquer dinheiro extra – assistências econômicas de longo termo – não será disponibilizado ao Líbano sem a implementação das necessárias reformas estruturais. E há quem advogue que mesmo as doações emergenciais devem ser dirigidas diretamente à sociedade civil, por meio de ONGS e demais associações, mas, de modo algum, por intermédio de agências governamentais.

O Ministro das Relações Exteriores Alemão, Heiko Maas, que visitou Beirute nos últimos dias, expressou que são esperadas reformas econômicas e uma nova governança da coisa pública. Maas continua: “A comunidade internacional está preparada para investir, mas precisa de segurança para esses aportes de investimentos. É importante ter um governo que combata a corrupção”.

Delegação brasileira comandanda pelo ex-presidente Michel Temer entrega a ajuda humanitária. Ao fundo a aeronave KC-390 da FAB Foto Ministério Defesa

Hezbollah

Alguns países estão sobremaneira preocupados com o Hezbollah e sua influência nos mais variados níveis de poder no Líbano. O grupo, diga-se de passagem, ajudou na formação do governo Diab. E terá poder de veto na aprovação do próximo. Considerado organização terrorista por vários governos ocidentais, o grupo xiita, aliado de Teerã, é um movimento político encartado na dinâmica da política libanesa.

Engendrado, em meados dos anos 80, como força de resistência à ocupação israelense no Líbano e protetor da população xiita, o Hezbollah vem enfrentando, nos últimos tempos, contundentes críticas públicas por se colocar como impedimento para as reformas políticas. Alguns detratores afirmam que o grupo deveria se preocupar mais com os assuntos nacionais, como a deterioração econômica do Líbano, em vez de atuar e intervir em conflitos no exterior (v.g. conflito sírio).

Analisar o Hezbollah, Partido de Deus no vernáculo, requer muita atenção aos traços de singularidade do movimento, porquanto não se trata de um ente homogêneo, mas de uma organização que engloba partido político, grupo paramilitar, rede de assistência social, além do seu próprio network de segurança, inteligência e relações internacionais, dissociado do sistema oficial libanês.

O futuro cenário político-econômico do Líbano é de difícil prognóstico e qualquer tentativa de reforma esbarrará no desiderato de praticamente todos os grupos políticos e confessionais de manterem o status quo.

Adendo 1: O Hezbollah pertence à Aliança 08 de Março que possui 69 das 128 cadeiras do Parlamento. Compõem o mesmo grupo o Movimento Patriótico Livre (Nacionalista Cristão), liderado por Gebran Bassil, genro do Presidente Aoun, o Movimento Marada (Católicos Maronitas), o Movimento Amal (formado principalmente por muçulmanos xiitas), liderado por Nabih Berri, atual Presidente da Chambre des Députés, e o Partido Social Nacionalista Sírio (sincrético, pró-síria), entre outros.

Adendo 2: O Departamento de Estado Norte-Americano está nas tratativas para a finalização de um acordo que delimite as fronteiras marítimas entre Líbano e Israel, zona que é alvo de inúmeras disputas pela possível existência de grandes reservas de gás natural.

Até o fechamento desse Briefing (13/08/20 – 23:47 Hora Local em Túnis), foram contabilizados 177 mortos, mais de 6.500 feridos pelas explosões e 300.000 desabrigados.

 

 

 

 

 

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