“Carniceiro da Síria” pode decidir guerra na Ucrânia?

O apelido do novo líder da invasão russa da Ucrânia, general Alexander Dvornikov, é "Carniceiro da Síria". No entanto, analistas militares argumentam que ele seria fundamentalmente diferente de outros comandantes russos no país árabe.

O oficial de 60 anos foi o primeiro comandante russo de alta patente deslocado para a Síria, depois que a Rússia passou a apoiar o ditador Bashar al-Assad. Ele atuou durante dez meses, de setembro de 2015 a julho de 2016. A essa altura, a revolução contra décadas de autoritarismo da família Assad havia desembocado numa brutal guerra civil.

O impiedoso bombardeio de áreas civis por jatos russos, sobretudo o da cidade de Aleppo, é considerado uma guinada decisiva em favor do líder sírio. Foram alvo mesquitas, mercados, escolas, hospitais e até fazendas e filas de alimentos. Os rebeldes adversários, que até então haviam obtido algum êxito contra o exército nacional, tinham pouquíssimos mísseis antiaéreos e nenhuma possibilidade de revidar.

Na Rússia, a campanha da Síria foi considerada uma vitória, valendo a Dvornikov não só um apelido pejorativo, mas também uma das mais altas honrarias do país: em 2016 foi designado "Herói da Federação Russa".

Procedimento padrão

No entanto toda essa notoriedade não é necessariamente merecida. Segundo um relatório recém-publicado pelo Institute for the Study of War (ISW), um think tank sediado em Washington, o procedimento do general no Oriente Médio não se afastou dos padrões usuais.

As forças de Moscou miraram civis sírios e infraestrutura crítica durante toda a intervenção, e "a experiência de Dvornikov em comandar o destacamento russo na Síria e de atacar civis, em si, não era exclusiva nem indicadora de aptidões especiais".

Além de não serem exceção, as "táticas e abordagens empregadas tanto na Síria quanto na Ucrânia […] não são especialmente eficazes". E a reputação "sangrenta" de Dvornikov está longe de ser inusitada entre os militares russos, comenta à DW Elias Hanna, ex-comandante das Forças Armadas libanesas.

Segundo ele, o exército russo é bem conhecido pelo emprego de violência excessiva para atingir metas militares. Assim, o comportamento do general na Síria foi o produto de uma cultura militar longamente estabelecida: ele está na ativa desde 1982, e há dados de que combateu também na Tchetchênia, explica o professor de estratégia e geopolítica da Universidade Americana de Beirute.

As estatísticas tampouco indicam que Dvornikov tenha iniciado um novo e mais violento capítulo na guerra síria: quando os russos intervieram nos combates, em setembro de 2015, o regime Assad já estava aplicando uma política de "terra queimada".

Entre setembro de 2014 e agosto de 2015, por exemplo, a organização médica Physicians for Humanity registrou na Síria 110 ofensivas contra hospitais ou instalações médicas – exatamente o mesmo número do ano seguinte, depois que os russos começaram os bombardeios. Os primeiros ataques contra estabelecimentos médicos datam de 2012.

É certo que os russos são responsáveis por um maior número de vítimas civis depois de sua entrada no conflito: dos quase 17 mil sírios mortos em 2016, um quarto foi de sua responsabilidade, indica o relatório anual do observatório Syrian Network for Human Rights.

No entanto, o balanço mortal de Assad até então já era extremamente "sangrento": em 2014 e 2015, antes da chegada de Dvornikov, houve 12.044 e 24.430 vítimas da guerra civil, respectivamente. Além disso, foi o regime sírio que empregou indiscriminadamente, contra a própria população, armas químicas e bombas de barril – ambos crimes de guerra.

Apesar de não haver registros de que as tropas de Vladimir Putin estejam recorrendo a tais meios na Ucrânia, elas estão usando bombas e mísseis "burros", que não podem ser mirados com precisão maior, tendendo a causar mais mortes civis. A Rússia também usou esse tipo de armamento na Síria.

"Carniceiro" foi escolha lógica

A indicação de Alexander Dvornikov para supervisionar as forças russas na Ucrânia está longe de ser surpreendente. Trata-se de uma decisão lógica: desde que voltou da Síria, em 2016, ele tem comandado a zona militar sul da Rússia, que inclui a região de Donbass e a Crimeia, onde Moscou aparentemente planeja sua nova ofensiva.

Ao longo de março, de todos os diferentes eixos de operações, o seu é que tem acusado os maiores avanços. O general também liderou as operações em torno da cidade portuária sitiada de Mariupol. Além de ser o oficial de carreira mais longa no sul da Ucrânia, ele atualmente também é o comandante de mais alta patente no país.

De acordo com os observadores do ISW, é difícil prever se a atuação de Dvornikov na Síria pode até fazer alguma diferença no atual conflito. Pode contribuir o fato de ele ter sido o primeiro comandante no país árabe, tendo que estabelecer operações de coalizão, inclusive uma base aérea; assim como sua experiência com combates urbanos em Aleppo.

Por outro lado, é bem diversa a natureza do confronto na Ucrânia, a qual dispõe de um amplo arsenal de equipamento antiaéreo e outras munições avançadas, além de uma força aérea própria. Na segunda-feira (11/04), o conselheiro nacional de Segurança da Casa Branca, Jake Sullivan, comentou: "Nenhuma indicação de nenhum general pode apagar o fato de que a Rússia já sofreu uma derrota estratégica na Ucrânia."

Há indicações de que as tropas russas estão desmoralizadas e de que a logística do exército é caótica. Na Síria, o número oficial de soldados russos mortos desde 2015 é 112; enquanto na Ucrânia calcula-se que dezenas de milhares já caíram, em apenas seis semanas.

"A natureza das confrontações na Síria dependia de ofensivas aéreas violentas dos russos", aponta Elias Hanna. "O general Dvornikov só liderou as operações militares bombardeando a partir do ar, as forças de infantaria quase nunca tiveram que se confrontar com ninguém no solo. Mas agora há uma guerra terrestre, com lutas entre exércitos regulares e soldados profissionais, além de capacidade aérea."

"Campanhas russas na Síria e na Ucrânia são semelhantes"

Corredores humanitários duvidosos, desinformação, ataques a áreas civis: estratégia russa no apoio a Assad e na invasão da Ucrânia apresentam paralelos surpreendentes. Mas não se deve ignorar as diferenças, diz analista

Primeiro Síria e Tchetchênia, agora a Ucrânia: especialistas já traçaram vários paralelos entre a estratégia russa nesses diferentes conflitos. Hanna Notte, pesquisadora associada do Centro para Desarmamento e Não Proliferação de Viena (VCDNP), concentra-se em questões de segurança e controle de armas, com ênfase particular em onde essas áreas se cruzam, no tocante à Rússia e o Oriente Médio.

Em entrevista à DW, Notte explica os paralelos que observou nos conflitos na Síria e agora na Ucrânia, e como isso pode ajudar a prever o que acontecerá a seguir na guerra de agressão no Leste Europeu.
 

DW: Que paralelos identificou entre a campanha militar dos russos na Síria e como eles estão procedendo agora na Ucrânia?

Hanna Notte: O primeiro dos cinco paralelos que eu identifiquei foi a ideia de a Rússia estar travando um combate sequencial, ou guerra em fases. O segundo é a tática de cercar cidades, executar sítios e bombardeios, mas também de estabelecer – isto é uma citação – "corredores humanitários". Os quais, acho, devem ser vistos com reservas.

O terceiro paralelo é toda a questão dos combatentes estrangeiros, que é complexa e multifacetada, porque a Rússia tanto acusa o outro lado de empregá-los quanto os usa, ela própria. E o quarto e quinto paralelos se referem à desinformação sobre o uso de escudos humanos pelo inimigo.

A Rússia tem frequentemente acusado os terroristas da Síria de usarem civis como escudos humanos. Agora acusa o Batalhão Azov da mesma coisa em Mariupol. Também propaga desinformação sobre o outro lado realizar ataques químicos de "bandeira falsa".

No entanto, embora vejamos esses paralelos em táticas específicas, é sempre importante ter em mente as diferenças entre as campanhas da Rússia na Síria versus a da Ucrânia, que são significativas em termos de objetivos e da escala militar. O que está em jogo para a Rússia continua sendo bem diferente.

O que é guerra sequencial, exatamente?

Na Síria, o que vimos em vários pontos da guerra – lembremos, a Rússia interveio em setembro de 2015 [o conflito já se iniciara em março de 2011] – foi o governo Assad e as forças armadas russas suspenderem a luta em partes do país para se voltar contra outra região.

Então, no início de 2017, eles instituíram as assim chamadas "zonas de desescalada" em áreas no leste da Síria, o que liberou recursos para o governo tomar mais território na direção do leste, mas também para se reagrupar, reabastecer.

E aí, em 2018, os militares sírios, com respaldo russo, voltaram e tomaram novamente essas zonas de desescalada, com exceção de Idlib, que até hoje está fora do controle do governo sírio.

Na Ucrânia, a Rússia anunciou que a primeira fase da "operação militar especial" estava concluída, e que agora ela estaria se concentrando em "liberação" – estou citando – na região de Donbass. E, de fato, houve uma retirada das tropas russas dos subúrbios de Kiev e do norte do país.

Minha intenção ao enfatizar esse aspecto é menos sugerir que veremos um padrão semelhante de sequenciamento e fases, mas simplesmente para advertir contra o otimismo indevido, ou a certeza de que, só porque eles dizem que vão agora se concentrar no Donbass, podemos suspirar aliviados e achar que as lutas no resto da Ucrânia acabaram.

As tentativas de instituir corredores humanitários para os civis evacuarem as áreas sitiadas, sobretudo em Mariupol, falharam diversas vezes. Do ponto de vista do exército russo, qual é a estratégia aqui?

Sim, infelizmente o precedente da Síria também sugere que se deve olhar esses corredores com muita cautela, por várias razões. Um bom exemplo é o sítio de Aleppo, uma grande cidade da Síria: em 2016 ela esteve sitiada por, creio, seis meses. E lá a Rússia também abriu corredores humanitários, porém muitas vezes os civis não confiaram.

O problema é que, por exemplo, considerando os corredores nos subúrbios de Damasco, em 2018, a população decidiu não ir embora por ter medo de ser posteriormente rotulada como alvos legítimos pelos militares russos. A narrativa é que ela podia sair, e os que ficassem seriam "terroristas". Então isso é uma fonte de preocupação, em relação ao que podemos ver na Ucrânia, futuramente.

E, claro, se só considerarmos o caso de Mariupol e a tentativa de estabelecer corredores humanitários lá, a coisa está se provando muito difícil. Quero frisar uma última complicação aqui: na Síria, nos "corredores" para fora das zonas de desescalada, os russos deram uma espécie de opção. Os residentes podiam se render, depor armas e ficar, ou podiam ir embora – em geral iam para Idlib.

Agora em Mariupol, ao que parece os civis estão sendo forçados a ir para a Rússia, às centenas, em ônibus para evacuação. E nesse país, alguns estão aparentemente sendo obrigados a fornecer depoimentos alternativos sobre o que realmente aconteceu em Mariupol.

Há grande medo de que em algum momento o exército russo possa empregar armamentos químicos. Sob que condições isso poderia ser uma opção.?

Deixe-me talvez começar dizendo que, de um modo geral, a "linha vermelha" quanto ao uso de armas químicas num conflito armado foi muito enfraquecida devido ao que aconteceu na Síria.

Mesmo depois de a Síria declarar que havia destruído seus arsenais, vimos uso repetido de armas químicas naquele conflito. E a Rússia tem basicamente protegido o governo sírio contra atribuição e responsabilização perante a Organização pela Proibição de Armas Químicas (OPCW). O Conselho de Segurança da ONU e os países ocidentais fracassaram em restabelecer aquela "linha vermelha".

Quanto a se a Rússia empregaria esse armamento na Ucrânia, a questão não é só se ela temeria ou não as consequências e a atribuição. Coisas como o massacre de Bucha nos mostram que ela se importa relativamente pouco em ser inculpada por tais atrocidades pela comunidade internacional. A questão ainda é: os russos considerariam isso útil? Quando uma arma química é uma opção eficaz num conflito militar?

Bem, considerando o uso de armamento químico pelo governo Assad na Síria, em geral ele foi intimamente entrelaçado – do ponto de vista operacional e tático – com a campanha contra a oposição armada, com o propósito de punição coletiva em áreas mantidas pela oposição, combinado a sítios e outras formas de violência indiscriminada.

Acho que a questão para a Ucrânia é se perguntar: se passarmos a uma guerra de desgaste – e acho que para alguns analistas já é o caso –, em que se trata de esgotar a população civil, ao longo do tempo, será que faz sentido o uso de armas químicas? Especialmente se os custos não forem tão significativos assim?

Deixe-me talvez concluir dizendo que, mesmo que a Rússia não empregue armamento químico na Ucrânia, essa constante propaganda de bandeira falsa sobre o outro lado encenar um ataque químico é, ainda assim, útil para o governo russo. Em primeiro lugar, porque reforça a narrativa da própria população de que a ameaça de armas de destruição em massa emanaria, na verdade, da Ucrânia em relação à Rússia.

Claro, a mera possibilidade de que isso aconteça gera medo e terror na Ucrânia. Além disso, é algo que teóricos de conspiração nos países ocidentais ocasionalmente repetem, semeando dúvidas quanto a se a Rússia não estaria com razão num ponto ou outro. Então, pensando bem, é bastante conveniente para a Rússia, a um custo relativamente baixo.

 

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