Movimentos de Rússia e Estados Unidos assustam o mundo.
Leonam Guimarães
Pesquisador na Área Nuclear
O mundo nuclear entrou novamente em uma zona de perigo. Em poucos dias, duas potências com arsenais atômicos colossais — Rússia e Estados Unidos — protagonizaram gestos que reacendem temores de uma nova corrida armamentista.
De um lado, o presidente Vladimir Putin anunciou o sucesso de testes com o míssil hipersônico Burevestnik e com o torpedo de propulsão nuclear Poseidon, capazes de transportar ogivas atômicas e alcançar alvos em velocidades ou profundidades que desafiam qualquer sistema de defesa existente.
De outro, o presidente Donald Trump, em uma decisão que rompe três décadas de moratória tácita, assinou uma ordem executiva determinando a retomada dos testes nucleares norte-americanos. O duplo movimento — inovação tecnológica de destruição de um lado e retorno à experimentação explosiva do outro — representa um divisor de águas na estabilidade estratégica global.
O míssil Burevestnik é um míssil de cruzeiro russo com propulsão nuclear e capacidade de carregar ogivas nucleares. Sua principal característica é o seu alcance “quase ilimitado”, o que o torna uma arma considerada única no mundo. O torpedo Poseidon, por sua vez, é um veículo subaquático de propulsão nuclear capaz de cruzar oceanos de forma autônoma e liberar uma ogiva destinada a gerar ondas gigantes contaminadas por radiação, com potencial de devastar cidades costeiras inteiras. Ambos os projetos consolidam a doutrina russa de dissuasão por incerteza: ao tornar a resposta do inimigo imprevisível e o ataque inevitável, Moscou amplia seu poder de chantagem estratégica.
O anúncio de Putin não é apenas demonstração de força militar, mas também mensagem política — a de que a Rússia, mesmo sob sanções e isolamento, mantém capacidade tecnológica de desafiar o equilíbrio de poder estabelecido.
Nos Estados Unidos, o gesto de Trump é igualmente simbólico. Ao ordenar o Pentágono a preparar a retomada de testes nucleares, interrompidos desde 1992, o ex-presidente pretende demonstrar que Washington não aceitará “ficar atrás” de seus rivais estratégicos. Trata-se de uma ruptura com a tradição bipartidária que, por mais de trinta anos, manteve o compromisso de não realizar testes explosivos, sustentando o espírito do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT). A medida, apresentada como resposta a supostos testes encobertos da China e da Rússia, na prática destrói o último consenso remanescente da era pós-Guerra Fria: a ideia de que a contenção nuclear dependia da previsibilidade, e não da ostentação.
O resultado combinado dessas ações é um cenário de instabilidade crescente. Armas hipersônicas e torpedos nucleares submersos reduzem drasticamente os tempos de alerta e ampliam o risco de erro de cálculo. A retomada dos testes, por sua vez, legitima a reabertura de programas adormecidos em outras potências e dá novo fôlego à indústria nuclear militar. A velha lógica da dissuasão — “quem atacar primeiro, morre junto” — cede lugar a uma nova era de ambiguidade estratégica, na qual a velocidade e a imprevisibilidade substituem a racionalidade do equilíbrio do terror. O risco não é apenas o de uma guerra deliberada, mas o de uma escalada acidental, deflagrada por erro técnico, falha de comunicação ou interpretação equivocada de intenções.
O impacto dessa reconfiguração transcende as fronteiras das potências envolvidas. Países que tradicionalmente defenderam o desarmamento e o uso pacífico da energia nuclear, como o Brasil, veem-se diante de um cenário em que a erosão dos tratados internacionais enfraquece o regime de não proliferação. O que era um tabu — testar armas nucleares — pode tornar-se novamente prática aceita. E, à medida que a dissuasão se diversifica em novas plataformas tecnológicas, cresce a tentação de alguns atores médios de investir em capacidades próprias sob o pretexto da “autonomia estratégica”.
O mundo volta, assim, a flertar com os fantasmas do passado. O anúncio de Putin e a ordem executiva de Trump, embora distintos em forma e motivação, convergem em substância: ambos colocam a lógica da força acima da contenção, e a competição sobre a cooperação. A história ensina que as corridas armamentistas nunca terminam bem — e que a fronteira entre demonstração e destruição é sempre tênue. Resta saber se a comunidade internacional, atônita diante dessa reativação de rivalidades nucleares, será capaz de restaurar os mecanismos de diálogo, verificação e confiança antes que o relógio do juízo final avance mais um minuto em direção à meia-noite.




















