Cultura do Crime: como o investimento cultural consolida o domínio do imaginário¹
Foto Favela do Samba (SP) em primeiro plano soldado da PMESP
Gabriel do Couto Missuca²
Resumo
O presente artigo analisa a cultura do crime como ferramenta estratégica de organizações criminosas para consolidar poder territorial e social. Em vez de mero efeito colateral, a degradação da cultura aparece como pilar do poder criminal: música, estética, eventos clandestinos e lícitos e linguagem codificada são usados para moldar comportamentos, recrutar e dificultar a ação do Estado, colocando-a em xeque. Ao atuar no imaginário coletivo, o crime organiza lealdades, legitima presenças e amplia sua influência. Enxergar esse processo como um “Estado cultural” paralelo abre caminhos para políticas públicas que disputem o campo simbólico com inteligência e efetividade.
Palavras-chave: crime organizado; cultura; hegemonia; poder simbólico; Estado paralelo.
Abstract
This article analyzes crime culture as a strategic tool employed by criminal organizations to consolidate territorial and social power. Far from being a mere byproduct of criminal activity, cultural appropriation emerges as a central pillar of criminal power: music, aesthetics, both clandestine and legal events, and coded language are deliberately used to shape behaviors, recruit members, and undermine state action. By acting on the collective imagination, crime organizes loyalty networks, legitimizes its presence, and expands its influence. Recognizing this process as the emergence of a parallel “cultural state” opens new paths for public policies capable of competing in the symbolic field with greater intelligence and effectiveness.
Keywords: organized crime; culture; hegemony; symbolic power; parallel state.
Introdução
- “Toda forma de poder que se impõe sem resistência é, antes de tudo, simbólica” (BOURDIEU, 1989, p. 14).
Edward B. Tylor já definia cultura como “todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TYLOR, 1871, p. 1). Em outras palavras, a cultura é um dos alicerces de qualquer sociedade. Outros pilares — religião, família, política — só existem porque a cultura lhes dá forma. Podemos imaginá-la como uma mão invisível que orienta relações, costumes e valores.
O crime organizado, muitas vezes de forma empírica e pragmática, percebeu que controlar a cultura é mais eficaz do que apenas impor o medo: o medo paralisa, mas a cultura convence. Como lembra Alessandro Visacro, “a insurgência criminal não visa à tomada do poder do Estado, mas impõe uma renegociação das condições de existência do próprio Estado” (VISACRO, 2020, p. 10). Ainda assim, esse fenômeno costuma ser tratado como curiosidade ou efeito colateral da criminalidade, quando na verdade a cultura é parte central e deliberada de sua estratégia de dominação.
Esse poder simbólico acaba moldando preferências e comportamentos, funcionando como uma forma de soft power¹ — conceito definido por Nye (2004, p. 5) como a capacidade de influenciar pela atração e não pela coerção. É justamente isso que torna o “investimento” cultural eficiente: ele serve como ferramenta de controle social e também gera lucro econômico. Nesse ponto, trata-se de uma manifestação típica da guerra irregular, categoria descrita por O’Neill (2005, p. 15) como um tipo de conflito em que atores não estatais desafiam o Estado combinando ações armadas, políticas e culturais.
Assim, mais do que persuadir, a cultura legitima a presença do crime. Ela cria narrativas em que essas organizações, como o PCC, se apresentam como provedores de status, segurança ou oportunidades em comunidades e periferias. E, olhando mais de perto nessas áreas marginalizadas, a sobrevivência de populações em áreas de baixa presença estatal muitas vezes depende de economias ilícitas, o que facilita e até mesmo entrega de bandeja a cooptação social por parte de grupos criminosos. Assim, parte do capital do tráfico e de outras atividades ilegais é direcionado para sustentar esse poder simbólico.
Os exemplos são claros: pancadões em áreas dominadas, patrocínio de times de várzea, apoio a influenciadores digitais, eventos comunitários e até ONGs. Não se trata de simples entretenimento, mas de uma disputa de hegemonia cultural². Como aponta Stanislawski (2008, p. 368), esses territórios podem ser classificados como black spots, locais onde o Estado perde influência e a governança é assumida por outros atores.
Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. Os narcocorridos no México, o patrocínio de festas religiosas pela máfia siciliana e o uso do hip-hop por gangues norte-americanas mostram que, em diferentes contextos, a cultura se torna campo estratégico para o crime — ainda que esse uso seja, muitas vezes, mais prático do que teorizado.
Portanto, compreender a cultura do crime exige ir além da repressão policial e da criminalidade ostensiva. É reconhecer que o investimento simbólico constitui um pilar da hegemonia criminosa. É nesse terreno que este artigo se propõe a atuar: mostrar como o crime domina o imaginário, cria redes de lealdade e amplia seu poder — revelando uma dimensão ainda pouco explorada de suas estratégias.
- Cultura, Poder e Manipulação
Platão, ao refletir sobre o papel das ideias, comparava-as ao vento que move o barco sem ser visto, sugerindo que são elas — invisíveis, mas poderosas — que impulsionam o mundo. E o que seria a cultura, portanto, senão como uma ideia implantada na mente das pessoas, capaz de criar poder e dominação.
O crime organizado percebeu que é mais fácil transformar a sociedade do que lutar contra ela; mais prático manipular a justiça do que enfrentar diretamente as leis; mais barato dominar a política do que esperar sua autodestruição. Utilizando persuasão, manipulação e controle, o crime ataca os pilares dos bons costumes, moral e a ética e se projeta como resistência ao Estado, um embrião de um narcoestado.
Desta forma, as facções criminosas atualmente não apenas controlam territórios, mas também influenciam decisões políticas e sociais. Em algumas regiões, atuam como verdadeiros Estados paralelos, oferecendo serviços básicos, impondo regras próprias e até mesmo interferindo em cargos públicos. Como abordado em meu trabalho de conclusão de curso, os chamados pancadões revelam esse fenômeno do que podemos entender como controle inimigo:
- Crimes como furtos, roubos, estupro, tráfico de drogas, exploração sexual, violência e corrupção de menores são naturais nesse ambiente que proporciona algo chamado Black Spot. Esse termo, cunhado por Bartosz Hieronim Stanislawski designa áreas onde não há controle do Estado, não há governança estatal, ou seja, buracos negros. (MISSUCA; CARVALHO, p. 49)
Não existe vácuo no poder: onde o Estado não chega, alguém ocupa. Assim, a facção que promove bailes funk é a mesma que distribui drogas e armas. Cultura e poder caminham lado a lado no projeto criminoso, o que evidencia que a cultura do crime não é subproduto da pobreza, mas sim uma construção ideológica que disputa território, identidade e poder. Mais que controle territorial, trata-se de uma estratégia de infiltração cultural, política e econômica. Ao dominar aspectos da vida cotidiana e instituições públicas, o crime organizado redefine normas sociais e políticas, impondo sua própria visão de ordem e justiça.
- Vastos contingentes populacionais ao redor do mundo, em áreas com uma mínima presença do Estado, grande pobreza e marginalização política e social, são dependentes de economias ilícitas, incluindo o tráfico de drogas, para sua sobrevivência econômica e a satisfação de outras necessidades socioeconômicas. Por isso, é importante deixar de pensar no crime apenas como uma atividade social anômala que precisa ser suprimida. Mas, em vez disso, pensar no crime como um competidor que ameaça o próprio Estado. ( FELBAB-BROWN, Vanda 2010)
Ao absorver a ideia de Vanda Felbab-Brown, podemos pensar que em áreas onde o Estado está ausente e a pobreza predomina, as economias ilícitas deixam de ser apenas práticas desviantes e passam a garantir sobrevivência. Nessas condições, o crime não pode ser visto apenas como anomalia social, mas como um competidor que disputa legitimidade e espaço com o próprio Estado. É um Frankstein, uma aberração que não deveria existir, mas existe.
Com isso, como observa Bourdieu (1991), a dominação simbólica se estabelece quando valores e normas de um grupo são naturalizados, aceitos sem questionamento, tornando invisível a força que os sustenta. Essa violência simbólica molda comportamentos por meio de músicas, obras, influenciadores digitais e até no ambiente acadêmico.
Além disso, os seres humanos são profundamente atraídos por figuras que transcendem as normas e impõem sua própria ordem, mesmo que de forma violenta ou transgressora. É justamente esse o objetivo do crime organizado: conquistar com a cultura, poder e dominação. Nesse sentido, as organizações criminosas exploram a fascinação que o crime traz pelo poder absoluto e pelo “fora da lei”, construindo narrativas que seduzem e mobilizam, transformando a ilegalidade em uma forma de prestígio social e cultural.
O investimento cultural torna-se uma arma estratégica, capaz de moldar a identidade coletiva de milhares, senão milhões de pessoas e preparar o terreno para a expansão do poder econômico, territorial e principalmente simbólico. Quando uma comunidade perde a referência de sua cultura enraizada na tradição, abre espaço para que forças desagregadoras se imponham. Scruton (2007) observa que a cultura funciona como uma continuidade da ordem pela imaginação; quando essa imaginação é corrompida, corrompe-se também o senso de pertencimento social.
De repente o traficante da comunidade, o ladrão de carros, o RAUL (estelionatário) e o MC que canta músicas que atentam contra a vida de policiais militares se tornam heróis, oprimidos pelo sistema que conseguiram obter sucesso mesmo contra todas as circunstâncias. É a inversão total dos valores.
O crime organizado compreendeu bem essa lógica. Em todas as frentes, busca moldar mentalidades, dominar e subjugar, preenchendo com o mal o vazio espiritual e moral deixado por anos de subversão. O mal, assim, deixa de ser algo a ser combatido e passa a ser naturalizado no cotidiano das comunidades, o que torna sua erradicação ainda mais complexa. Nesse cenário, a estratégia de dominação ultrapassa a ação de uma simples facção e assume contornos de uma organização terrorista — ou melhor, de uma insurgência criminosa em guerra híbrida contra o Estado de direito. Como explica o Coronel Visacro (2019):
- As insurgências criminais diferem do terrorismo clássico e da insurgência tradicional, cujas metas visam à tomada do poder. A insurgência criminal não ambiciona capturar o Estado. Mas, ela precipita um processo que pode resultar na erosão total ou parcial das instituições nacionais e, por conseguinte, no colapso e na falência da governança estatal, impondo uma “renegociação do contrato social”. (VISACRO, 2019, p. 10)
Cultura e poder caminham lado a lado no projeto criminoso. A disputa pela cultura é, em última instância, uma disputa pela alma da sociedade. Combater o crime que se apropria da moral e a corrompe não é apenas tarefa policial, mas uma verdadeira guerra cultural e moral. Essa luta exige o resgate da tradição, da ordem e dos valores que dão sentido e sustentação à vida em comunidade. E a próxima etapa é que a cultura é mobilizada pelo crime para consolidar redes de lealdade, legitimar sua presença social e expandir sua influência, transformando-se em um projeto de poder que rivaliza diretamente com o Estado, o que será explicado no próximo capítulo.
2. A apropriação cultural pelo crime
O processo de apropriação da cultura pelo crime não pode ser compreendido como fruto do acaso, mas sim como uma estratégia deliberada para a manutenção e ampliação de poder. As organizações criminosas entenderam que o uso da força bruta e da intimidação, embora eficazes em curto prazo, não seriam suficientes (claro que isso não impediu eles de continuarem as usando) para consolidar sua influência no longo prazo. Era preciso recorrer ao campo simbólico, ou seja, à cultura, como ferramenta de dominação e manipulação. Nesse sentido, a cultura passa a funcionar como infraestrutura invisível que molda os comportamentos, os valores e as percepções sociais, constituindo parte fundamental da lógica criminal contemporânea.
Ao criarem controle sobre a cultura, isto é, símbolos, narrativas, linguagens, rituais, o crime transforma elementos que podem parecer em primeiro plano banais, em força estratégica. Esa apropriação cultural opera como forma de legitimação e naturalização da presença do crime, principalmente nos contextos de comunidades e periferias e outros onde o Estado é ausente ou ineficiente. E se o poder simbólico é aquele que impõe significados e visões de mundo de modo a serem aceitos como legítimo, compreendemos que a cultura controlada por facções não apenas é usada para divertir, mas para persuadir, disciplinar e organizar o coletivo. É o Estado Paralelo em ignição.
- A presença desse Poder Paralelo configura-se como um desafio substancial para a governança e para a segurança pública. Esses grupos não apenas se estabelecem como alternativas ao Estado, mas também instituem um novo conjunto de normas e valores que, em muitos casos, se mostram mais eficazes em suas comunidades do que as instituições oficiais. Um exemplo claro disso são as regras impostas nas comunidades dominadas pelo crime que com a prerrogativa da violência, ameaça e o terror e insuflam a ordem vigente. (MISSUCA; CARVALHO, p. 50)
No Brasil, um dos exemplos mais expressivos dessa dinâmica são os bailes ou aglomerados conhecidos como pancadões. Mais do que festas, eles funcionam como arenas políticas e sociais nas quais facções exibem poder, consolidam território e constroem uma identidade coletiva. Nesses ambientes, denominados black spots por Stanislawski, o Estado perde sua capacidade de governar, e o crime assume papel de gestor social e cultural. Os bailes não apenas garantem renda por meio do tráfico, prostituição, lavagem de dinheiro e comércio ilegal, mas também produzem um espaço simbólico onde criminosos são celebrados como heróis e o policial o inimigo.
Eles funcionam como plataformas de visibilidade, socialização e propaganda: gírias, miméticas, heróis locais e códigos de lealdade; promovem redes de contato que facilitam o comércio ilícito; e oferecem ao público jovem uma experiência que liga prazer e pertencimento à presença da facção. Em suma, o pancadão atua como laboratório ideológico: ali se celebrou a figura do “fora da lei”, ali se testam símbolos que depois circulam pela comunidade, naturalizando comportamentos criminosos. É o exemplo concreto de uma inversão de valores que desestabiliza normas sociais e reforça a hegemonia criminal.
Contudo, o fenômeno não se restringe aos pancadões. A música, por meio dos chamados “proibidões”, reforça as narrativas de ostentação, poder, crime e resistência contra o Estado. MCs transformam letras em instrumentos de propaganda, prestando homenagens a criminosos, narrando feitos de violência e exaltando símbolos de facções. O palco torna-se um ritual de consagração simbólica reforçando a identidade de grupo, consolidando valores paralelos que substituem os tradicionais. Como afirma Gramsci (1971), a hegemonia se constrói na capacidade de uma classe — ou aqui, de uma facção — impor sua visão de mundo como senso comum. A música cumpre exatamente esse papel: molda percepções, muda a personalidade, naturaliza a ilegalidade e transforma o ruim em prestígio social.
Estudos da psicologia da música demonstram que a música não é apenas entretenimento, mas um elemento poderoso que regula o humor, reforça a identidade emocional e influencia totalmente o comportamento coletivo. Por exemplo, Welch et al. (2020) mostram que a música melhora capacidades cognitivas e promove bem-estar em crianças e adolescentes. Outros estudos, como o de Blasco-Magraner et al. (2023), validam que diferentes estímulos musicais alteram estados afetivos — música triste intensifica afeto negativo, enquanto estilos mais leves elevam os afetos positivos. Esses achados fundamentam teoricamente como o crime explora a música para moldar mentalidades e fortalecer lealdades simbólicas.
Além disso, as redes sociais ampliaram ainda mais esse processo. Vídeos de shows, trechos de letras e cortes das músicas em reels virais com mensagens de lideranças criminosas circulam massivamente, reforçando símbolos e consolidando influências. DJs, MCs e influenciadores locais tornam-se ligações de uma rede que engaja com mensagens subliminares, adentrando o subconsciente com valores invertidos. O espaço digital retroalimenta o espaço físico: aquilo que viraliza online é incorporado ao baile e, posteriormente, reproduzido em escala maior. Trata-se de um ciclo de legitimação contínua que aproxima pessoas, cria identidades e fortalece a facção como a nova referência cultural.
A lógica dessa apropriação cultural pode ser melhor compreendida se analisada à luz da subversão ideológica, conceito trabalhado pelo ex-agente soviético Yuri Bezmenov. Em conferência realizada em 1984, Bezmenov descreveu as quatro fases da subversão — desmoralização, desestabilização, crise e normalização — afirmando que o objetivo era modificar a percepção da realidade de modo que, mesmo diante de abundância de informações, a sociedade não fosse capaz de chegar a conclusões sensatas.
Essa descrição aplica-se de maneira quase literal à estratégia do crime: a desmoralização ocorre quando valores tradicionais são corrompidos e substituídos pela lógica criminosa e subversiva; a desestabilização se manifesta na perda de autoridade do Estado nos mais variados lugares; a crise se dá quando o crime se torna referência para necessidades sociais básicas; e a normalização ocorre quando essa realidade é aceita como inevitável pela população.
Além da subversão pode-se perceber uma espécie de vontade de sobreviver e crescer. A estrutura organizacional do crime mostra preocupação explícita com a perpetuação. Documentos, códigos internos e estatutos (quando conhecidos) revelam regras sobre disciplina, hierarquia e socialização de novos membros — instrumentos típicos de organizações que almejam longevidade e não apenas lucro momentâneo.
É importante notar que experiências internacionais reforçam que se trata de um fenômeno global. Os narcocorridos no México cumprem papel semelhante ao dos proibidões no Brasil: narram feitos de traficantes e os celebram como ídolos populares. Na Sicília, a máfia por décadas financiou festas religiosas como forma de legitimação e de conquista popular. Nos Estados Unidos, gangues utilizaram o hip-hop como plataforma de afirmação identitária, projetando sua narrativa para fora. Esses paralelos evidenciam que o crime organizado, em diferentes contextos, entende a cultura como campo estratégico de poder.
E a população, em troca de entretenimento, proteção ou benefícios materiais, cede legitimidade para seus fins escusos e silêncio, tornando-se massa de manobra. Essa relação reforça o caráter insurgente do fenômeno: não se trata apenas de criminalidade comum, mas de uma insurgência que ameaça corroer as bases da ordem social e política.
Nesse sentido, a apropriação cultural não deve ser vista como fenômeno periférico ou anômalo, mas como estratégia central da guerra irregular travada pelo crime organizado contra o Estado. Visacro (2018) destaca que insurgências criminais não visam tomar o poder central, mas corroer sua legitimidade até impor uma renegociação do contrato social. Ao projetar símbolos, rituais e narrativas, o crime mina a confiança na autoridade estatal e pavimenta o caminho para sua própria dominação simbólica. A cultura, nesse processo, não é adereço: é arma. E como toda arma, exige resposta estratégica, sob risco de que a sociedade assista passivamente à consolidação de um Estado paralelo fundado não na lei, mas na manipulação. E a resposta deve vir do Estado para extinguir o crime organizado, ou pelo menos freia-los.
3 . Da Cultura ao Poder: o crime como Estado Paralelo
A apropriação cultural pelo crime, descrita no capítulo anterior, vai além da manipulação simbólica de músicas, festas ou influenciadores. Discutimos que as facções criminosas se apropriavam da cultura como forma de dominação. Agora, porém, fica evidente que esse domínio simbólico não é um fim em si: é o alicerce do poder real. O crime organizado no Brasil deixou de ser uma subcultura marginal para se tornar um Estado paralelo robusto, que compete com o Estado formal em legitimidade — influenciando, manipulando e controlando instituições públicas, além de exercer domínio sobre a sociedade como um todo.
Esses elementos, quando articulados, se convertem em um sistema de poder capaz de remodelar a vida social, corroendo gradualmente o Estado. E o que inicialmente pode ser confundido apenas como uma disputa pelo campo cultural, na prática, transforma-se em uma engrenagem política, social e econômica, consolidando o crime como um verdadeiro Estado paralelo.
Esse salto — do símbolo para o governo — acontece porque poder e violência não são a mesma coisa. Como lembra Hannah Arendt, o poder nasce do agir em conjunto, do consentimento; a violência, ao contrário, é um instrumento usado quando esse poder falha (ARENDT, 1970). Em outras palavras: o fuzil pode até abrir o caminho, mas é a cultura que mantém o controle.
Em outras palavras, a coerção impõe medo, mas a consistência vem da aceitação do crime como algo natural e que não pode ser mudado. Por isso, quando a facção investe em músicas, festas, empreendimentos, campanhas e redes sociais ela não está só “ornamentando o crime”: está criando o tipo de consenso que dispensa a violência o tempo todo. Quanto mais circula, mais parece normal. E, quanto mais normal, mais fácil converter simpatia em obediência.
Alessandro Visacro ajuda a nomear o que vem a seguir: a insurgência criminal. Ela não tem pretensão de tomar Brasília; mas quer renegociar o contrato social rua por rua. Nas palavras do autor, “a insurgência criminal não ambiciona capturar o Estado, mas precipita um processo que pode resultar na erosão parcial ou total das instituições, impondo uma renegociação do contrato social” (VISACRO, 2019). Ou seja, a facção acaba organizando o lazer, “resolvendo” conflitos, ditando regras e até “protegendo” comércios, enquanto o Estado se torna um mero coadjuvante. Passa a existir um contrato não escrito: diversão e “segurança” em troca de silêncio, lealdade e subserviência.
Evita-se o crime nas áreas tomadas pelo PCC — não por virtude, mas por conveniência: furtar e roubar “na quebrada” é proibido sob pena até de morte ou algo perto disso. Pelo mesmo motivo, baile só com aval do comando, os bares pagam caixinha e nada ocorre sem autorização do partido. Toque de recolher pode ser decretado a qualquer momento e, por incrível que pareça é acatado sem qualquer tipo de reclamação; carro insufilmados são revistados no acesso e quando um traficante mata uma mulher em um baile funk a população local fica calada. Agora quando um traficante ou ladrão morre em confronto com a polícia é difícil não encontrar manifestações a respeito.
Conflitos de vizinhança viram “audiência” no beco, com multa ou castigo; denúncia à polícia é proibida e tratada como “traição”. Nessas condições, as “leis” do crime parecem ter 100% de cumprimento — não porque todos da comunidade as aceita de bom grado, mas porque não há alternativa. “Lixo no chão, tiro na mão”, é um dos slogans em faixas na entrada da comunidade. Essa justiça paralela é brutal, porém rápida e extremamente eficiente – o crime é o juiz, o júri e o executor, não há processo legal, não há ampla defesa. Daí decorre a pax criminalis: uma “paz” imposta por códigos internos que proíbem certos delitos locais — não por virtude, mas por conveniência
Enquanto isso, política, Ministério Público e Judiciário sentem o efeito do clima social: confrontar o poder paralelo parece não só “impopular”, mas impossível, denunciar vira perigo, cumprir a lei uma tarefa para poucos. O capital simbólico, social, cultural e de poder acumulado pela facção aperta as instituições por fora (opinião, voto, intimidação) e por dentro (captura, corrupção, infiltração).
É assim que o que parecia entretenimento se transforma em rotina, e a rotina vira autoridade. Onde o governo não alcança, a facção assume: dita leis (regras de conduta locais), fiscaliza seu cumprimento e aplica sanções imediatas aos infratores. O domínio do crime organizado não se limita mais às vielas e celas; ele avança sobre o espaço institucional da República, corrompendo e cooptando elementos dentro do próprio Estado. Aqui, a crítica se faz contundente: estamos testemunhando a gênese de um Estado dual, em que agentes do crime e agentes públicos tornam-se, por conveniência ou coação, parceiros numa dança macabra.
Por exemplo, descobriu-se que o PCC expandiu seus tentáculos para a esfera econômica e política legal: em 2024, o Ministério Público apurou que a facção controlava empresas de transporte coletivo na capital paulista, usando concessões de ônibus para lavar dinheiro e ganhar influência. No mesmo ano, surgiram evidências de envolvimento de facções em eleições municipais, com candidatos financiados ou intimidados pelo poder criminoso.
Talvez o mais insidioso seja o projeto de infiltração institucional de longo prazo adotado pelo PCC. Não se trata apenas de corromper autoridades existentes – mas de formá-las dentro de casa. Relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério Público indicam que o PCC vem financiando cursos de Direito para jovens aliados, com o objetivo de fazê-los ingressar, de forma legítima via concurso público, nas carreiras de promotor, juiz e outros cargos. A organização criminosa está investindo agora para colher depois, são estratégias institucionais para operar com margem de eficiência e chance de êxito.
É preciso, portanto, amarrar os fios dessa análise rumo à conclusão. Com base no exposto, fica claro que o crime organizado no Brasil atingiu um patamar que excede em muito a questão policial: tornou-se um fenômeno político e social, reconfigurando, governando e infiltrando a máquina pública. O poder paralelo conquistado pelas facções representa hoje um dos maiores desafios à autoridade do Estado e ao contrato social. Na conclusão deste artigo, partir-se-á desse diagnóstico sombrio para discutir caminhos de enfrentamento. Afinal, se a violência por si só não é capaz de gerar poder legítimo (como lembrado por Arendt), resta a pergunta: como restaurar o poder do Estado sobre territórios e instituições já capturados simbolicamente pelo crime?
Conclusão
O presente trabalho abordou a complexidade do fenômeno criminal e como o crime organizado utilizou-se da cultura para tornar-se um poder paralelo que domina territórios, molda comportamentos e corrói instituições. O crime mostrou que não precisa de palácios nem de eleições para governar – basta dominar a cultura. Quem define as músicas, as vestimentas, a linguagem e a mídia também define como o jogo social funciona. O crime entendeu isso antes do Estado — e por isso se transformou de uma simples facção criminosa em uma organização criminosa extremamente eficiente, um verdadeiro poder paralelo.
Como visto nos capítulos anteriores, a força não está apenas na violência ou em seus fuzis, mas na cultura que confere legitimidade e oferece proteção contra a ação repressiva do Estado. Esse poder de subversão – Bezmenov já o utilizava na antiga URSS – é o que impede o Estado, representado por suas polícias e agentes de segurança, de agir plenamente contra o crescimento do crime organizado. Assim, instala-se um contrato social alternativo, sustentado não só pelo medo, mas pelo controle cultural, pela manipulação de valores e pela aceitação de normas impostas pelo crime.
A grande pergunta é: o Estado reconhece esse risco e está disposto a enfrentá-lo com a intensidade que a realidade exige? A força policial não pode e nem deve ser a única a bater de frente. É necessária uma ação interdisciplinar e multidimensional para vencer essa guerra de narrativas e símbolos. Se o crime está vencendo no campo cultural, a resposta também precisa ocorrer nesse mesmo terreno — cultural, institucional e social.
Isso significa, em primeiro lugar, disputar o campo simbólico: investir em políticas culturais que resgatem valores de pertencimento legítimo, reconstruir tradições comunitárias e oferecer alternativas reais de lazer e convivência. Em segundo lugar, significa presença efetiva do Estado em seu sentido mais amplo: escolas funcionando, postos de saúde atendendo, lazer acessível, infraestrutura urbana de qualidade e segurança pública constante, ocupando os espaços que hoje são governados pelo crime.
É igualmente urgente fortalecer e investir nas polícias, criar grupos específicos e altamente preparados para o combate ao crime organizado, em integração com o Ministério Público e o Judiciário. A Polícia não pode e não deve carregar sozinha a responsabilidade de enfrentar um problema que é estrutural. Ela precisa de apoio efetivo de outros órgãos do poder público. O combate ao crime organizado exige mudanças legislativas, convênios interinstitucionais, criação de forças-tarefa multidimensionais e políticas públicas consistentes. É fundamental reconhecer que não se trata apenas de um problema da segurança pública, mas de todo o Estado: Judiciário, Legislativo, Executivo municipal e federal, todos devem atuar em conjunto. Em suma, a frase que sintetiza a ideia seria a do Major Leonardo Novo Oliveira Andrade de Araújo da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em sua obra Direito Operacional, volume 1: grande equívoco é achar que segurança pública se faz somente com polícia (ARAÚJO, 2019, p. 27)
Mais do que saber do risco, o Estado precisa decidir se terá coragem de enfrentar a disputa cultural com a mesma intensidade e determinação com que o crime a conduz. Se não o fizer, continuará perdendo espaço simbólico e institucional para facções criminosas. E, no limite, não será apenas o Estado que perderá: será toda a sociedade, que verá o crime impor-se como novo senhor da ordem e então, as pessoas realmente terão que dançar conforme a música que o crime escolher.
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