ESTADO ISLÂMICO: Alto Comando e Doutrina

                           O castigo, para aqueles que lutam contra Deus e contra o Seu Mensageiro e semeiam a corrupção na  terra, é que sejam mortos, ou crucificados, ou lhes seja decepada a mão e o pé opostos, ou banidos. Tal será, para eles, um aviltamento nesse mundo, pois no outro sofrerão um severo castigo. – Alcorão, Surata 5,33.
                                                                                    
 
                                                                                                                                                             

                                                                                                                                                         Frederico Aranha
Pesquisador 
aranha.frederico@gmail.com  

                       
Al-Omran lembra de quando cursava há vinte anos a Escola de Artilharia do Exército do Iraque, ocasião em que conheceu muito bem um notório major islamita linha dura. Certa feita, ele repreendeu Omran por entrar no banheiro coletivo da Escola ostentando na camisa um boton com as cores da bandeira do Iraque e a legenda “Deus é Grande”: – É proibido pela religião trazer o nome do Altíssimo a um lugar profano como este”, disparou o major Taha Taher al-Ani. Omran só o reencontrou anos depois, em 2003. Os americanos invadiram o Iraque e avançavam rapidamente rumo Bagdá. A queda do regime era iminente.
                       
Numa base militar ao norte da capital, Omran assistiu al-Ani comandar uma operação de embarque de armas, munições e suprimentos em enorme comboio, após o que se dirigiu para esconderijos adrede preparados possivelmente na região de Tikrit, nordeste do país, zona controlada pelo clã Saddam Hussein. Detinha todo esse armamento quando se juntou a Tawid Wal-Jihad, um dos operadores da Al Qaeda no Iraque. Al-Ani faz parte agora do alto comando do Estado Islâmico informou Omran, hoje Major-General do Exército Iraquiano, comandante da 5ª Divisão de Infantaria que luta contra o EI. Ele rastreou a pista do antigo camarada de armas por meio da rede tribal do Iraque e de informações colhidas pelo serviço de contraterrorismo do governo, do qual fez parte. (Entrevista concedida por Al-Omran a repórteres da Associated Press, em 08/08/2015).
                        
Sob a liderança do jihadista iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi, autodenominado Califa Ibrahim, o alto-comando do EI é dominado por antigos militares das Forças Armadas e de agências de inteligência da era Saddam [1]. É o que afirmam oficiais sêniores do Exército do Iraque e agentes dos serviços de informações do governo que atuam na linha de frente contra o EI. A experiência que aqueles militares aportaram à organização é a maior razão de ser das vitórias do EI e consequente dominação de extensos territórios. Esses quadros profissionais imprimiram a organização e disciplina necessárias para aglutinar jihadistas de várias partes do mundo, integrando táticas terroristas, como ataques suicidas, com operações militares ortodoxas e/ou irregulares. Montaram uma forte estrutura de inteligência para espionar as forças adversárias, realizar propaganda e contrapropaganda, atuar na mídia eletrônica e mediante infiltração agitar e colher informações, ao mesmo tempo mantendo e melhorando os sistemas de armas convencionais e tentando desenvolver armamento químico.  Já empreenderam ataques com gás na frente síria.
                      
Patrick Skinner, antigo operador da CIA com longa estada no Iraque, afirma que militares e agentes de inteligência da era Sadam foram o ingrediente imprescindível para o sucesso das batalhas levadas a cabo pelo EI em 2014, provocando a transformação de uma organização terrorista em um projeto de Estado.  Os sucessos no ano passado não foram terroristas, foram vitórias militares, disse Skinner, hoje diretor de projetos especiais do The Soufan Group, empresa privada de serviços de inteligência. O fato de certa forma inusitado de oficiais do regime secular de Saddam inflarem o mais radical grupo extremista islâmico, pode ser explicado por a confluência de três acontecimentos – um programa que passou a acolher islamitas linha dura nas Forças Armadas em meados dos anos 1990, revolta dos oficiais sunitas quando o EEUU dispersou o Exército Iraquiano em 2003, e a evolução da insurgência sunita que se seguiu.
                      
Os dois vice-comandantes do EI são veteranos do Exército Iraquiano: um deles é o ex-major Saud Mohsen Hassan, conhecido pelos codinomes Abu Mutazz e Abu Muslim al-Turkmani. Hassan usou também o nome falso Fadel al-Hayal após a queda de Saddam, apurou a AP, o que não impediu sua captura. Ficou detido no campo de concentração americano Camp Bucca no sul do Iraque, principal centro de detenção de membros da insurgência sunita, onde se encontrava também o imã al-Baghdadi. Esse campo de prisioneiros foi importante incubadora para os radicais, permitindo o contato de militantes com militares iraquianos, incluindo membros das Forças Especiais, a elite da Guarda Republicana e pessoal da força paramilitar cognominada Fedayen. No barracão nº 6 do campo, al-Baghdadi fazia pregação religiosa e política e Hassan emergia como organizador, inspirando e liderando protestos dos prisioneiros para obter concessões dos carcereiros americanos.
                      
Antigos prisioneiros encontram-se hoje na liderança do EI. Entre eles Abu Alaa al-Afari, veterano militante iraquiano da Al Qaeda, atualmente chefe do Bei al-Mal, o “Departamento do Tesouro” do EI, de acordo com um quadro hierárquico obtido pela AP (dado como morto num ataque aéreo americano recente). Após os ferimentos recebidos, causados por ataque aéreo do EEUU, Al-Baghdadi reforçou os laços com o que se supõe ser o alto-comando do grupo. Acredita-se que o conselho militar do EI é composto por sete a nove membros, dos quais pelo menos quatro são militares da era Saddam. Também convocou antigos internos do Camp Bucca para seu círculo íntimo e para sua força de proteção pessoal. Veteranos iraquianos governam sete das doze “províncias” em que é dividido o Iraque pelo EI e seis das nove na Síria. O serviço de informações do Iraque lamenta a dificuldade de identificar os líderes do EI, pois muitos deles foram dados como mortos várias vezes, porém reaparecem vivos seguidamente. Acredita-se que a maioria troca de nome ou adota pseudônimos, sugerindo que novos comandantes assumem o lugar dos “mortos”.
                      
A performance militar do EI excedeu em muito o que esperávamos e a condução da batalha por veteranos de Saddam provocou um grande choque, confidenciou à AP oficial graduado da inteligência militar iraquiana.Estima-se que cerca de 100 a 200 militares da era Saddam estão em postos chave no EI. Tipicamente, se originam de áreas dominadas pelos sunitas: oficiais de inteligência, na sua maioria, da província ocidental de Anbar; oficiais do Exército da região norte de Mosul e membros dos serviços de informações e segurança exclusivamente do clã de Saddam da zona de Tikrit. Entre eles, Assem Mohamed Massu, brigadeiro general das Forças Especiais de Saddam, também conhecido como Nagahey Barakat, foi identificado comandando um assalto à cidade de Hadita, na província Anbar, em 2014. Prédios públicos e outros estabelecimentos foram tomados à custa de centena de mortos das Forças de Segurança iraquianas. Muitos desses ex-militares têm laços íntimos com as tribos sunitas ou são filhos ou familiares de líderes tribais em suas regiões, proporcionando ao EI uma vital rede de apoio e incentivando o alistamento de jovens às fileiras do grupo. Graças em parte a esses laços tribais, as forças iraquianas praticamente fugiram ou aderiram ao EI possibilitando a tomada de Ramadi, capital da Província Anbar, em maio de 2015.  Essa importante cidade, distando somente 100 km de Bagdá, que detém o controle do fornecimento da água do Eufrates para extensa zona agrícola, a mais produtiva do Iraque, foi retomada por tropas do Exército iraquiano e milícias sunitas aliadas. Apesar de expulso do centro urbano, o EI ainda tem forte presença no seio das tribos sunitas que habitam a periferia e vilarejos adjacentes.
                      
Skinner, o antigo agente da CIA (cit.), chama a atenção para a sofisticação dos oficiais de inteligência da era Saddam que conheceu e a capacidade do setor de informação do EI demonstrada em Mosul, Ramadi e na capital de fato Raqqa, na Síria. Eles praticam a infiltração clássica das operações clandestinas. Estabelecem células de informação e combate que também podem permanecer adormecidas se necessário, mas prontas para agir. E praticam assassinatos seletivos que dependem de informações, diz ele, citando a onda de assassinatos em 2013 que atingiu a polícia nacional e o exército do Iraque, líderes tribais hostis e membros da milícia sunita Sahwa armada e financiada pelo governo. Saber quem assassinar e como chegar ao alvo requer boa informação e o EI sabe como obtê-la.
                      
A notória “Campanha da Fé” de cunho estatal lançada em meados dos anos 1990, contrariando princípios seculares do Partido Baath dominante, destinada a promover a islamização da sociedade iraquiana e que plantou raízes profundas no meio militar e na nomenclatura da inteligência e informações, facilitou a adesão de veteranos de Saddam ao EI. Na ocasião, foi vista como uma proposta cínica para obter apoio político do establishment religioso depois da humilhante retirada do Kuwait em 1991 e dos ferozes levantes curdo e xiita que se seguiram. Muitos dos oficiais do exército e das agências de inteligência servindo ao EI, são aqueles que mostraram claros sinais de militância religiosa na era Saddam – a “Campanha da Fé” encorajou-os. Diante da ameaça de invasão pelos americanos, Saddam convidou mujaheeden estrangeiros a juntar-se aos iraquianos para resistir à invasão. Milhares atenderam à convocação e foram treinados por militares iraquianos; muitos deles permaneceram no país juntando-se à insurgência contra as tropas americanas. Após o colapso do regime, quadros militares enfurecidos com a decisão americana de dispersar as forças armadas iraquianas atenderam o chamamento da revolta sunita. Nesse estágio inicial, os grupos de militares eram na sua maioria seculares. Todavia, a proeminência dos militantes islâmicos, alcançada particularmente com a criação e fortalecimento da célula da Al Qaeda Iraque, forçou a adesão dos militares a uma nova realidade – o viés religioso da revolta. Alguns grupos sunitas radicalizaram sua oposição à maioria xiita, promovida pelos americanos ao poder político, acusando-a de discriminação religiosa e limpeza étnica.
                      
A Al Qaeda Iraque foi inicialmente liderada pelo jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, com a presença predominante de estrangeiros nos postos de comando. O iraquiano Abu Omar al-Baghdadi sucedeu Zarqawi morto por um ataque de forças especiais americanas e agentes jordanianos em 2006. Imediatamente passou a substituir a cúpula do movimento por religiosos e militares iraquianos. Em 2010, Abu Omar e o alto comando do grupo foram mortos por ataque aéreo americano. Assume seu lugar o clérigo iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi que nomeou só veteranos militares para a liderança operacional do grupo. Os primeiros vices comandantes de Baghdadi, os que imprimiram organização e requintada operacionalidade ao movimento, possibilitando a expansão no Iraque e na Síria, foram oficiais da era Saddam. Eram eles Sameer al-Khalifawy, coronel da força aérea, morto em 2014 na Síria, e Abdullah el-Brawy, antigo alto oficial de inteligência, morto no ataque à Mosul em maio de 2014, um mês antes da cidade cair em mãos do EI.  Foi substituído por outro militar, o ex-major Saud Moshen Hassan antes citado.
                      
Michael W.S. Ryan, antigo executivo sênior do Departamento de Estado e do Pentágono, diz que está claro que alguns deles (oficiais da era Saddam)estavam desde o começo no coração do movimento jihadistas no triângulo sunita, referindo-se à área dominada pelos sunitas, a região mais hostil às forças de ocupação americanas. Seu know-how está no DNA do EI. A combinação da experiência dos militares iraquianos com o que se pode chamar de experiência Árabe-Afegã é uma característica unicamente do EI, diz Ryan, atualmente associado da Jamestown Foundation, Washington, DC.  Essa marca registrada de competência militar tem sido vitoriosa no Iraque, onde desbancou a influência e presença da Al Qaeda, e avassaladora na Síria.                    
A DOUTRINA

O EI e a Al Qaeda atualmente são inimigos mortais, apesar de elos comuns materializados em vários manuais ideológicos, doutrinários e estratégicos. Em 2006, um dos mais assustadores que inspira a estratégia do EI foi traduzido para o inglês como The Management of Savagery: The Most Critical Stage Trough Wich the Umma will Pass (em tradução livre, “Gestão do Caos: A Etapa Mais Perigosa Pela Qual o Islã Passará Para Restaurar o Califado”). Considerado o Mein-Kampf dos jihadistas, é um extenso ensaio da lavra de Abu Bakr Naji [2] publicado em 2004 na revista eletrônica Sawt al-Jihad patrocinada pela Al Qaeda. Detalha a estratégia a ser adotada doravante pela Al Qaeda e outros grupos jihadistas, visando a criação do sonhado Califado Islâmico [o último Califado foi o dos Abássidas, em duas fases: em Bagdá (950-1258) e no Egito (1261-1519) ]. É um texto árido de difícil compreensão. O tradutor William McCants, consultor do Centro Contraterrorismo da Academia de West Point, alega dificuldades para versar o documento e avisa que não checou com o original em árabe e não revisou seu próprio texto. Não indica o documento-base para a tradução. (Disponível em https://azelin.files.wordpress.com/2010/08/abu-bakr-naji-the-management-of-savagery-the-most-critical-stage-through-which-the-umma-will-pass.pdfAcesso em 30/10/2014). Há uma versão em francês – Gestion de la Barbarie. Paris: Edition de Paris, 2007 e diversas edições fragmentadas nas redes sociais.
                      
Em linhas gerais, a obra aponta oportunidades estratégicas disponíveis para os jihadistas explorarem, criadas pelo tumulto e caos existentes nos Estados fracassados do mundo árabe como o Iraque, Síria, Líbia, Yemen e outros mais: Durante nossa longa jornada crivada de vitórias e derrotas marcadas por banhos de sangue, por esquartejamentos e crâneos esmagados, alguns movimentos desapareceram e outros permanecem. Se meditarmos sobre o fator comum do porquê da sobrevivência de alguns movimentos, constataremos que é a forte ação política somada à ação militar, diz Naji. Muitos grupos rejeitaram a prática de atividades políticas, considerando-as uma “atividade imunda de Satã”, porém estudando profundamente as ações políticas do inimigo. Naji sugere que a ação política é um mal necessário: os movimentos necessitam que os líderes trabalhem no sentido de aprimorar a ciência política da mesma forma que desenvolvem a ciência militar. Alega que a imagem pública da Al Qaeda ficou desacreditada entre os muçulmanos porque a organização falhou no embate da mídia. Sugere que O primeiro passo é pôr nosso plano em andamento com foco na justificação dos nossos atos de forma racional, com base na Sharia. Segundo, precisamos comunicar claramente essas justificativas às pessoas e à massa, de tal modo que qualquer tentativa para desfazer nossa ação na mídia seja bloqueada.
                      
Naji escreve num estilo seco, estranhamente comedido, contrariando o tom altissonante que caracteriza a propaganda e material de divulgação da Al Qaeda. E como todos os teóricos da jihad seu trabalho é inspirado no legado de Ibn Taymiyya, o teólogo árabe do século XIV cujas ideias fundamentam a tradição salafista e waahbista. Aparentemente, Naji não é muito influenciado por lideranças jihadistas, sendo um atento leitor de pensadores ocidentais: a tese do The Management of Savagery … deve seu núcleo, em boa parte, à acurada leitura do livro Rise and Fall of the Great Powers (1987) do historiador de Yale Paul Kennedy, em que ele, resumidamente, aponta causas para o declínio e a queda dos Impérios (disponível na Amazon/Kindle). Quanto aos aspectos táticos, Naji recomenda aos jihadistas se infiltrarem nas polícias, nas forças armadas, nos diferentes partidos políticos, na mídia, nas companhias de petróleo, nas empresas de segurança privada, instituições filantrópicas, etc. Manda que pratiquem sequestros e que os reféns sejam trucidados de forma terrível, impondo medo nos corações dos inimigos. Recomenda, se raptar um Cruzado ocidental for difícil, é possível sequestrar um árabe cristão que trabalhe no setor petrolífero. De igual modo, é possível raptar jornalistas ocidentais ou outro qualquer fácil de sequestrar.  Devem ser atacados sem trégua os centros econômicos vitais de países muçulmanos (alinha Norte da África, Nigéria, Arábia Saudita, Yemen e Iraque), tais como locais turísticos e refinarias de petróleo, fazendo com que os regimes concentrem suas forças armadas deixando as periferias desprotegidas. Naji prediz que a população sentindo que todos esses locais são vulneráveis por causa da debilidade estatal, perderá a confiança nos seus governos, que reagirão com crescente violência de resultado duvidoso. Eventualmente, o governo perderá o controle da situação. O caos se instalará, oferecendo oportunidade para os islamitas obterem apoio ou a passividade de uma população ávida por ordem (Naji refere como exemplo o Afeganistão antes do Taliban tomar o poder).  Ainda que os jihadistas tenham sido os causadores do caos, este fato será esquecido à medida que os militantes implementarem a segurança pública, proverem alimentos e tratamento médico e instalarem cortes de Justiça islâmicas, ensina ele. 
                      
Naji é um teórico solitário na Al Qaeda, pois é o único que se preocupa sobretudo com questões políticas, ao passo que os demais teorizam sobre aspectos militares. Sua obra se divide em cinco tópicos, desde a Introdução passando por o Prefácio, que trata de questões de política internacional, pela definição de “Gestão do Caos”, mostra o caminho para a criação do Estado Islâmico, descreve o plano de ação, aborda os mais importantes problemas a enfrentar e as soluções, encerrando com uma ameaça: Ninguém poderá se sentir seguro sem estar submisso (ao Califado)e aqueles que recusarem se submeter pagarão um alto preço. O objetivo do nosso movimento é transformar o mundo num arquipélago de “terras da promissão”, nas quais somente aqueles obedientes as nossas regras estarão em segurança.
                      
Outra voz influente na Al Qaeda é a do combatente de primeira hora e ideólogo sunita salafista Ali Musab al-Suri [3], íntimo de Bin Laden, mas com quem manteve um contencioso permanente por conta dos choques de opinião sobre a estratégia global do grupo. Na visão de al-Suri a grande perda não foi o desmantelamento da organização terrorista, mas a queda do Taliban, o que significou para a Al Qaeda a privação de um lugar para treinar, se organizar e recrutar. A expulsão do Afeganistão, escreve, foi seguida por três anos sem sentido, desperdiçados fugindo, iludindo a caçada internacional e movimentando-se de casa em casa segura e esconderijos (…). Culpa por isso os ataques de 9/11 que julga provocativos e inconsequentes. O resultado foi a violenta ofensiva americana no Afeganistão e, o que lhe parece mais grave, o repúdio internacional aos atentados de New York e Washington. Aparentemente se contradiz, quando prega violentos ataques à América, mas na verdade ele quer dizer aos “amigos” da América, mormente os europeus. Considera a Europa extremamente vulnerável, por isso campo propício a ataques terroristas.
                      
Com a cabeça a prêmio, se refugia no Irã. Em 2002, Suri começou a escrever seu trabalho definitivo Call for Worldwide Islamic Resistence (em tradução livre “Convocação para a Guerra Global do Islã”). Resultou num cartapácio de 1.600 páginas que foi publicado na Internet em dezembro de 2004. A versão em inglês acolhe apenas três seções da obra. Didático e repetitivo Suri identifica as falhas do movimento jihadista e propõe um plano para a futura jihad (Disponível em https://archive.org/stream/TheGlobalIslamicResistanceCall/The_Global_Islamic_Resistance_Call_-_Chapter_8_sections_5_to_7_LIST_OF_TARGETS#page/n0/mode/2up   Acesso em 12/12/2014).
                       
O objetivo, escreve ele, é provocar o maior número de baixas humanas e materiais à América e seus aliados. Detalha os alvos – Judeus, Ocidentais em geral, os membros da NATO, Rússia, China, ateus, pagãos e hipócritas, bem como qualquer inimigo externo (o grande número de adversários espelha a aversão da Al Qaeda a outras ideologias). Lamenta a derrota do Taliban, que ele e outros jihadistas consideram o verdadeiro governo islâmico do mundo moderno. Na visão dele, o movimento terrorista clandestino – quer dizer a Al Qaeda e suas células adormecidas – estaria morto (no que se equivoca), numa crítica direta a Bin Laden. Sugere que a fase seguinte da jihad seja caracterizada pelo terrorismo praticado individualmente ou por pequenos grupos autônomos (a que denomina “resistência sem liderança”) que vai enfraquecer o inimigo e preparar o terreno para o mais ambicioso objetivo, o do combate sem limites – guerra total por território. Ele explica, sem a confrontação no campo de batalha, logrando o controle da terra, não poderemos estabelecer um Estado, o grande objetivo estratégico do movimento. É exatamente o que o EI vem praticando, obedecendo o que reza a Sharia – sem território não há Califado.
                      
Observa-se que as ideias (ou ideais) desses importantes teóricos e ideólogos do jidahismo e figuras de proa da Al Qaeda coincidem no essencial. De modo geral, as duas teorias alimentam a grande estratégia do Estado Islâmico, para alguns uma utopia: guerra incessante contra todos e contra tudo para a restauração do Califado Islâmico nos moldes do antigo Califado dos Abássidas, empregando meios radicais até então não imagináveis. O Islã radical tradicional era homogêneo e organizado; pregava uma ideologia com a visão específica de uma sociedade não ocidental alternativa. Havia, em teoria, um caminho pacífico para chegar a ela. A ideologia da nova geração de radicais é alarmantemente vaga. O único objetivo político é o retorno aos ideais do Profeta no século VII e seus primeiros sucessores; lançam uma torrente de slogans messiânicos acerca do Califado e impõem a Sharia, sem uma clara ideia dos objetivos. Rejeitam categoricamente a possibilidade de uma existência em paz Acreditam que o mundo está dividido entre “filhos da luz” (os fiéis) e “filhos das trevas” (os infiéis ou ocidentais), e uma guerra até o fim é a vontade de Deus. Essa perspectiva está bem clara nas (supostas) palavras do líder máximo do Estado Islâmico al-Bagdhadi, auto- denominado Califa Ibrahim, em mensagem ao mundo divulgada em 24/12/2015, em que afirma, entre outras coisas, que a organização está sofrendo muito com os bombardeios na Síria e no Iraque, mas isso é um teste para os combatentes, algo que fortalecerá a determinação dos integrantes do grupo. Prossegue, tentando tranquilizar os seguidores, dizendo que a organização está bem, e com o aumento da violência dos ataques contrários,mais a vitória estará assegurada. Afirma que a batalha não é somente uma cruzada, mas uma guerra das nações do ateísmo contra o Islã. (Porto Alegre, dezembro/2015)

LEITURA RECOMENDADA: Sobre o fenômeno Estado Islâmico (EI, ISIS, Daesh), ver ensaio da US Marine Corps University, intitulado The Islamic State (IS): An Unrecognized State?. (Disponível em http://pt.scribd.com/doc/292759804/Is-the-Caliphate-Revision-Nov-2015   Acesso em 15/12/2015).
 
 
NOTAS
 
1] Órgão Central de Inteligência: Direção Geral de Informações – Mukhabarat. Seções: Diretório 4 – Serviço Secreto; Diretório 5 – Contrainformações; Diretório 6 – Segurança Interna; Diretório 7 – Centro de Interrogatórios; Diretório 8 – Central de Tecnologia; Diretório 9 – Operações Secretas; Diretório 17 – Escola Nacional de Segurança; Brigada Mukhabarat – Força de Intervenção Rápida e mais uma dezena de departamentos e seções, e escritórios regionais e internacionais, formando um cipoal burocrático altamente eficiente para impor o terror e praticar assassinatos no país e no exterior.
 
2] Naji foi identificado pelo Instituto Al Arabiya como Muhammad Khalil al-Hakaymah, representante do braço saudita na cúpula da Al Qaeda, estrategista do grupo e autor de inúmeros trabalhos postados no site Voice of Jihad patrocinado pelo Emirado Islâmico do Afeganistão, Estado criado pelo Taliban – sediado em Kabul e Kandahar (capital de fato), governou grande parte do país até 2001. Talvez seja o último teórico da versão sunita do movimento islâmico-apocalíptico. Contudo, alguns analistas, inclusive o tradutor McCants, negam a existência de Naji afirmando que se trata de um pseudônimo coletivo de vários teóricos da Jihad.

3] Ali Musab al-Suri nasceu em Alepo, Síria. O nome verdadeiro é Mustafa Setmariam Nasar, engenheiro, casado com uma espanhola. Morou na Espanha por bastante tempo. Viveu, igualmente, em Londres. Lutou no Afeganistão de 1996 até 2000. Organizou o atentado de 9/11 em New York e Washington e os ocorridos em Madri e Londres. Aprisionado no Paquistão em 2005, foi entregue aos americanos. Passou uma temporada na base de Guantánamo até o juiz espanhol Baltazar Garzon ordenar a presença dele na Espanha para averiguações. A partir daí desapareceu misteriosamente (suspeita-se que era um dos prisioneiros-fantasmas na base americana de Diego Garcia) para surgir numa prisão síria, situação confirmada por porta-voz da Al Qaeda em março de 2014. Paradeiro desconhecido. Brynjar Lia, professor e analista do Norwegian Defence Research Establishment, retrataal-Suri comoo mais brilhante e perigoso ideólogo da sua coorte de radicais, um dissidente, um crítico e um intelectual que coloca duro realismo acima das aspirações religiosas, e estratégias pragmáticas de longo prazo antes da utopia.

Fontes de Consulta
 
http://soufangroup.com/      
http://www.ap.org/
http://www.law.harvard.edu/programs/olin_center/
http://www.jamestown.org/
https://www.ctc.usma.edu/publications/sentinel
http://www.aljazeera.com/
http://www.longwarjournal.org/
http://sputniknews.com/
http://www.lawandsecurity.org/portals/0/documents/abumusabalsuriarchitectofthenewalqaeda.pdf
https://www.ffi.no/en/Sider/default.aspx 

 

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