ONU lembra ataque que matou Vieira de Mello

Jamil Chade – Correspondente – O Estado de S.Paulo
 

GENEBRA – Há exatos 10 anos, um ataque terrorista matou 22 funcionários das Nações Unidas em Bagdá, entre eles o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, o chefe da missão da entidade internacional no Iraque, e deixou cicatrizes na própria organização. O atentado expôs a manipulação da ONU pelas grandes potências e, segundo funcionários, ainda impede sua participação mais efetiva em outras crises.

Documentos aos quais o Estado teve acesso indicam que o ataque dividiu a história da entidade. O atentado revelou o risco de a ONU se associar a potências, calou a entidade no Iraque e deu um ponto final ao que muitos dentro das Nações Unidas chamaram de "Era da Inocência" na organização – que hoje organiza no Rio um seminário em homenagem a Vieira de Mello.

O então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, reagiu um ano depois do ataque, chamando a guerra no Iraque de "ilegal". Como retaliação, veria o governo americano revelar a corrupção dentro da ONU, ameaçando destitui-lo e, na prática, marginalizando as Nações Unidas das grandes decisões mundiais.

Telegramas, relatórios e documentos revelam uma ONU amedrontada, sem rumo e paralisada após o atentado. Em reuniões no dia 22 de agosto de 2006, o diplomata que substituiu o brasileiro, Ashraf Qazi, admitia que a ONU "continuava a enfrentar ameaças significativas". Em maio de 2007, um documento da diplomacia americana afirmava: "As atividades da missão da ONU no Iraque estão estagnadas nos últimos dois anos e o entusiasmo se evaporou". "Os esforços humanitários, o treinamento e a reconstrução da sociedade civil desapareceram", reconhecia o documento.

"Dentro da organização, a bomba parecia ter de alguma maneira prejudicado seriamente o multilateralismo", admitiu ao Estado uma ex-funcionária das Nações Unidas que pediu para não ser identificada.

A entidade teria de esperar a posse de Barack Obama para que, em campo, as ações começassem a mudar. Numa reunião com a representante do Conselho de Segurança Nacional americano, Samantha Power, o diretor do Alto-Comissariado da ONU para Refugiados no Oriente Médio, Radhouane Nouicer, afirmou, em março de 2009: "A falta de capacidade de tomar decisões está impedindo a ONU de ser ativa no Iraque. Chegou o momento de superar 19 de agosto e começar a trabalhar de novo".

Ex-funcionários e mesmo diplomatas que ainda percorrem os corredores da entidade admitem que a bomba ainda silencia a capacidade de ação da ONU na Síria, no Egito, no Afeganistão e no próprio Iraque.

Bastidores. Em março de 2003, Vieira de Mello acabara de assumir o cargo de alto-comissário da ONU para Direitos Humanos em Genebra. Foi chamado para uma rara reunião com o presidente dos EUA, George W. Bush, na Casa Branca. Semanas depois, foi anunciado que o brasileiro assumiria o cargo de representante da ONU no Iraque. Sua nomeação foi permeada por polêmicas. Ele recusou a oferta duas vezes. Na terceira, atendeu ao pedido de Annan.

A invasão do Iraque havia ocorrido sem autorização da ONU e, para os críticos, Bush queria que Annan o ajudasse a legitimar a ocupação. Vieira de Mello comandou uma missão sem mandato. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a tentar impedir sua nomeação – o Brasil era contra a guerra.

Em 20 de junho de 2003, Vieira de Mello aproveitou uma passagem por Amã, na Jordânia, para conversar com o chanceler brasileiro, Celso Amorim. No encontro, deixou claro que estava preocupado. O pedido a Amorim era para que o Brasil ajudasse a dar uma resposta multilateral à missão da ONU no Iraque.

Um segundo atentado contra a ONU meses depois do ataque que matou Vieira de Mello faria com que a entidade abortasse sua missão e retirasse todos os seus 600 funcionários do Iraque. Levaria quase um ano para o substituto de Vieira de Mello desembarcar em Bagdá.

Abu Musab al-Zarqawi, líder da Al-Qaeda, assumiu anos depois o atentado que matou o brasileiro e reforçou o que os serviços de inteligência suspeitavam: a ONU havia se transformado em alvo de terroristas, em razão da percepção de que estava chancelando as ações de Bush.

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