Narrativa, agora levada ao nível de política de Estado é a base deste texto da Folha de São Paulo, que é similar a outros publicados nas últimas semanas em vários órgãos do Consórcio.
Cézar Feitoza
Folha de São Paulo
31 Maio 2023
A atuação das Forças Armadas na política externa brasileira, com organização de eventos e treinamentos militares com países aliados, tem gerado ruídos com o Itamaraty e assessores do presidente Lula (PT).
As principais queixas são feitas à autonomia com que os militares têm feito a diplomacia, que estaria apartada das diretrizes de política externa definidas pelo governo petista. Assessores do presidente e ministros afirmaram à Folha, sob reserva, que as Forças Armadas mantêm uma visão de que o Brasil está alinhado à Otan, a aliança militar do Ocidente, enquanto Lula finca posição com foco no princípio de neutralidade no conflito entre Rússia e Ucrânia e na aproximação com a China.
A crítica é antiga, mas só foi verbalizada ao ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, no último dia 22.
O assunto era o convite que o chefe do Comando de Operações Terrestres do Exército, general Estevam Theophilo, fez a 34 países para participarem do 1º Seminário Internacional de Doutrina Militar Terrestre, entre os quais os EUA. A China, de onde Lula voltou em abril, não havia sido convidada para o evento.
Teophilo é considerado um dos mais bolsonaristas dos generais do Alto-Comando do Exército. Segundo seus pares, ele sempre esposou as ideias do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um crítico contumaz da China. Na Força, intercâmbios com oficiais chineses sempre foram comuns.
Múcio recebeu do presidente a missão de impor um freio de arrumação e obrigar o Exército a convidar os chineses para o seminário, cujo enfoque, segundo o general Marcelo Carvalho, um dos organizadores do evento, é “verificar as tendências de ameaças em médio e longo prazos, sinalizando possíveis soluções para se contrapor a essas ameaças”. O ministro encaminhou a ordem ao comandante do Exército, general Tomás Paiva, que a repassou para Theophilo —o convite então foi feito ao adido militar da China no Brasil.
Lá fora
Generais do Exército consultados pela Folha afirmam que não há descompasso entre as Forças Armadas e os palácios do Itamaraty e do Planalto. Defendem que os militares naturalmente devem ter contato com adidos de nações aliadas e que os ruídos sejam evitados por meio de uma comunicação mais afinada.
Eles citam, por exemplo, a presença de cinco representantes das Forças Armadas para o Simpósio de Altos Oficiais da América Latina e do Caribe, realizado na Universidade de Defesa Nacional do Exército de Libertação Popular da China, em Pequim —participam do evento dois representantes do Ministério da Defesa e um de cada Força, após tratativas com o Ministério de Relações Exteriores.
Outro argumento seria a chegada de uma delegação de 20 militares da China a Brasília, na terça, para uma série de reuniões. Os chineses desembarcaram na capital uma semana após a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, visitar autoridades e fechar acordos com a Força Terrestre brasileira.
Em nota, o Exército disse “manter contato institucional com Exércitos de nações amigas por intermédio de adidos militares estrangeiros”, enquanto “contatos com o Itamaraty se dão pelo Ministério da Defesa”.
Múcio é próximo de Celso Amorim, assessor especial da Presidência em assuntos internacionais —ambos são considerados os poucos da “velha guarda” que seguem próximos de Lula. À Folha Amorim negou que haja um mal-estar do Planalto com as Forças Armadas devido a desacertos na política externa. “Os canais de contato são fluídos”, disse, em referência às conversas que mantêm com o chefe da Defesa.
Porém, além da exclusão da China do seminário, há outros pontos defendidos pelas Forças Armadas que vêm sendo criticados por membros do governo, como a realização do Exercício Combinado de Rotação e Operações (Core, na sigla em inglês), operação dos Exércitos de Brasil e EUA que ocorre anualmente desde 2021, após as Forças de ambos os países acordarem um aumento da cooperação militar.
Na semana entre os dias 15 e 19 de maio, uma delegação de militares do Exército americano viajou à Amazônia para inspecionar as instalações que farão parte do exercício deste ano, e assessores palacianos temem que esse intercâmbio possa sinalizar um alinhamento do Brasil aos EUA.
As posições também foram conflitantes quando a Ucrânia solicitou ao Brasil, em 27 de abril, autorização para exportar até 450 veículos blindados Guarani. Eles seriam usados nas versões de transporte e ambulância para auxiliar na “retirada de civis em zona conflagrada”, de acordo com ofício enviado pelo adido de Defesa da Ucrânia, coronel Volodimir Savtchenko, a Múcio. A possibilidade de exportar os blindados animou militares do Exército, já que a venda poderia aquecer a indústria de defesa brasileira.
China, terra do meio
Além da questão econômica, seria uma sinalização alinhada à Otan e em sintonia com parceiros do Brasil na produção de equipamentos de Defesa, como Suécia e Alemanha, que apoiam Kiev contra a Rússia.
“Solicitamos vossa autorização para que sejam negociados os referidos veículos, que serão comprados por meio de fundos especiais de países amigos que compreendem e compartilham nossa necessidade imediata e dor”, destacou o coronel ucraniano no ofício. A exportação, porém, foi vetada pelo governo Lula.
Outro desconforto se deu no veto do presidente ao envio de munições do Brasil para tanques de guerra ucranianos, em janeiro. O pedido havia sido feito pela Alemanha, que, após a negativa, acabou embargando a exportação de 28 blindados fabricados em solo brasileiro para as Filipinas. A retaliação foi possível porque parte do material do blindado é fabricado na Alemanha, e o país comunicou ao Brasil que os componentes de origem germânica não poderiam ser vendidos a terceiros sem sua autorização